Como o título já aponta, essa é a continuação do texto sobre sistemas caóticos, disponível aqui. No texto passado, vimos que é possível extrair um comportamento caótico a partir de um sistema determinístico muito simples, como o modelo de crescimento populacional. Hoje vamos explorar o histórico dessa área da matemática e falar com mais profundidade sobre algumas características do sistema caótico mais importante: o sistema de Lorenz.
Antes do texto, algumas ressalvas. A ideia para esses dois textos já vem de muito tempo, portanto não poderia prever algumas coisas relacionadas aos tópcios aqui descritos. Aqui vão algumas explicações:
- O sistema de Lorenz e o conceito de caos foi citado extensivamente no SciCast do dia 26/04/2024, sobre determinismo. Corro o risco de repetir algumas coisas aqui, mas como disse, esse texto já estava pronto antes de eu ouvir o programa. Acredito que o texto servirá para demonstrar alguns conceitos de maneira mais prática, complementando as explicações dadas no podcast, ainda mais que eu posso aqui usar imagens e gráficos, algo muito importante nessa área, como já vimos no texto passado
- O que eu não poderia ter deixado passar é que já existe um podcast sobre a Teoria do Caos aqui da casa. É na verdade uma gravação de uma palestra no Pint of Science de 2017 e, novamente, esse texto servirá como um complemento para os tópicos ali tratados.
- Não foi de caso pensado (eu nunca conseguiria escrever um texto tão rapidamente) em que a parte histórica começaria com o tema do Problema de Três Corpos, nome de uma série recente da Netflix com mesmo nome. No meio tempo entre pensar e terminar o texto, a série foi lançada, um burburinho foi feito e uma segunda temporada foi sumariamente cancelada. Eu não a vi, então não sei quanto ela impacta no texto, se alguma boa alma puder deixar nos comentários eu agradeço.
- E por fim, spoiler do texto, mas o Sistema de Lorenz é um modelo matemático que descreve a evolução do clima no tempo. Verdade seja dita, ele é mais importante para a matemática do que para as ciências climáticas mas, eu preciso comentar que no momento que eu estou escrevendo (11/05/2024) o meu estado, o Rio Grande do Sul passa pela maior catástrofe climática da sua história. Já estou preparando um texto sobre o assunto, mas de qualquer forma gostaria de deixar aqui minha solidariedade para todos os habitantes afetados e ressaltar para a posterioridade (afinal, textos na internet são eternos, não?) o descaso e a falta de preparo das forças políticas que estavam no poder.
Depois desse momento com a positividade lá no alto, vamos para o texto.
Senta que lá vem a história
Vamos retroceder um pouco para entender do que estamos tratando. Na verdade retrocederemos bastante, até a época de Issac Newton (1642 – 1726), que dispensa apresentações. Ficou trancado em casa, inventou o cálculo; viu uma maçã caindo da árvore, bolou as leis básicas da mecânica; no final da vida abandonou a ciência e virou ministro das finanças do Rei.
O que nos interessa aqui é o desenvolvimento da mecância celeste e do movimento dos planetas. Começando pelo caso mais simples, ele estudou a interação entre dois corpos, como por exemplo a Terra e a lua, ou a Terra e o Sol. Com essa simplificação ele já foi capaz de desenvolver muito da sua teoria da Gravitação universal.
Na mesma época ele tentou atacar um problema óbvio que aparecia: e a influência de um outro corpo? Esse ficou conhecido como o Problema de 3 corpos e supostamente tirou o sono do rapaz Newton e lhe deu “dores de cabeça” intensas. Há algum esboço de resolução no Principia Mathematica (o livro onde ele descreve as três leis da mecância clássica) mas nada definitivo.
Com o passar dos séculos, vários matemáticos se debruçaram sobre o problema, porém foi apenas no final do século 19, quando o Rei da Suécia ofereceu um valioso prêmio monetário, que o problema foi “resolvido”. O francês Henri Poincaré (1854 – 1912), reconhecido como um dos maiores matemáticos da sua época, ganhou o prêmio, mesmo não resolvendo inteiramente o problema. No entanto sua análise trouxe muitos avanços para entendimento do problema e foi a primeira a descrever o comportamento aparentemente “caótico” das órbitas.
(Uma outra dificuldade era que Poincaré tinha muitos problemas de visão e dificuldades em desenhar, além de escrever quase em fluxo de consciência. Seus trabalhos nessa área, que basicamente exigem desenhos complicados, não foram facilmente compreendidos).
Apesar desse problema ser um clássico para os matemáticos da época, logo depois da resolução de Poincaré surgiu um outro tópico entre os estudiosos: a mecânica quântica. Não tinha mais tanta graça resolver esse tipo de problema ligado à mecânica clássica. O Caos teria que esperar.
O sistema de Lorenz
Alguns avanços foram feitos na teoria dos sistemas dinâmicos no início do século XX, em diferentes problemas do mundo real que exigiam esse tipo de equações. Mas, desenvolvimentos muito mais poderosos só aconteceriam com a chegada do computador.
Percebam que, na nossa análise do primeiro texto, eu gerei gráficos e dei as respostas facilmente com o uso de um software. No caso de Poincaré, por exemplo, era necessário resolver as equações analiticamente, ou seja encontrar uma solução, ou um conjunto de soluções, para elas, como nos problemas de álgebra do colégio (x + 2 = 5, por exemplo, x vale 3). Para confirmar com os dados e desenhar os gráficos era preciso muita precisão nos cálculos manuais, algo que dificultava muito o trabalho.
Edward Lorenz (1917-2008) era um matemático e meteorologista que estava trabalhando em modelos computacionais da atmosfera. Ele se propôs à simples missão de fazer a previsão do tempo de maneira mais acurada. Ele estava crente que poderia descrever a natureza se tivesse acesso a todas as variáveis (algo muito bem explicado no SciCast sobre Determinismo). No início dos anos 60 ele desenvolveu um modelo que continha 12 parâmetros do tempo (como temperatura, pressão, velocidade do vento, etc.) e estava rodando um sistema parecido com o da nossa análise do primeiro texto (os valores se atualizavam a cada iteração). O programa mostrava o valor de cada um dos 12 parâmetros a cada passo do tempo em uma linha de uma tabela. Portanto, as colunas simbolizavam o tempo passando.
Em um certo momento Lorenz decidiu refazer uma análise, partindo de um certo ponto no meio do sistema (como na vigésima repetição do programa, por exemplo). Ele utilizou esses valores como valores iniciais e rodou o programa.
Após um certo tempo ele percebeu que os valores divergiam dos valores do outro teste. E divergiam muito. Algo que não fazia sentido, pois eram as mesmas equações sendo aplicadas nos mesmos valores. Após provavelmente achar que estava ficando maluco, Lorenz percebeu que tinha inserido os valores com três casas decimais, como era exibido no resultado, porém o computador calculava com seis casas decimais. Portanto, o que ele viu como 0,506 por exemplo, na verdade era 0,506127. E essa pequena variação, de menos de 0,1 % talvez fosse a responsável pelo erro, que obviamente havia sido amplificado de alguma forma.
Lorenz simplificou seu modelo de 12 equações para um com apenas 3 equações e 3 variáveis e alguns parâmetros. Essas equações tinham uma base real na física dos fenômenos atmosféricos (convecções, movimentos de massas ar, etc.).
Com esse modelo ele pôde estudar o comportamento com diferentes parâmetros e, em um artigo de 1963, demonstrou e provou a amplificação das pequenas variações nas condições iniciais no resultado final e cunhou o termo Caos para designar esses sistemas.
Os resultados do tempo podem ser apresentados como uma trajetória em um espaço de três dimensões, uma para cada variável. Cada ponto do espaço é um conjunto de três valores para cada variável do sistema naquele instante t, o que chamamos de diagrama de fases. Esses valores de x, y e z têm um significado real na análise do clima, porém isso não é o mais importante! No seu trabalho de 63, Lorenz demonstrou que esse tipo de sistema caótico é puramente matemático, uma propriedade intrínseca das equações. Se escolhermos os parâmetros e uma posição inicial qualquer (ou seja, se pegarmos 3 valores de x, y e z ao acaso e começarmos a repetir a equação) o resultado graficamente será o seguinte:
PARECE AS ASAS DE UMA BORBOLETA, NÃO? Pode buscar o seu cérebro, tenho certeza que ele está escorrendo no chão depois dessa explosão de cabeças. Foi justamente esse desenho que o inspirou a criar a frase “o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode causar um tornado no Texas”, que na verdade é uma licença poética dele, como também é muito bem explicado no SciCast 198 sobre o Caos. O que ele quis dizer é que esse conjunto de equações é muito sensível às condições iniciais.
Se traçarmos as trajetórias de dois pontos partindo de valores iniciais muito próximos, veremos que elas seguem juntas por um tempo até se separarem e seguirem rotas totalmente diferentes (as curvas de diferentes cores no gráfico abaixo). Apesar disso vemos que elas “circulam” dois polos (as “asas” da borboleta) e em alguns momentos trocam de polo. Isso é um comportamento clássico desse tipo de sistema e é chamado de ATRATOR ESTRANHO (eu admiro muito os nomes que as coisas têm nessa área), mas isso é papo para outro texto.
No entanto, esses trabalhos geniais de Lorenz foram publicados nos anos 60 no “Journal of Atmospheric Sciences” por se tratar de um modelo inicialmente atmosférico. Para facilitar a visualização, Lorenz havia diminuindo o sistema de 12 para 3 variáveis (pois permite uma visualização em 3D), mas para isso precisou simplificar e desconsiderar vários fatores. Com isso, os trabalhos foram criticados por serem péssimos modelos climáticos, e o estudo matemático do Caos ficou dormente por mais algum tempo.
Nos anos 70 os trabalhos foram redescobertos e estudados mais intensamente pela galera da matemática. Por exemplo, a análise da equação populacional que eu trouxe no primeiro texto foi proposta em 1976 por Robert May na Nature, que, por ser uma revista muito mais conhecida e lida por pessoas de várias áreas, trouxe luz para esse tipo de modelo.
O ápice da popularidade
No entanto acho que um feito desproporcionalmente grande que o estudo de sistemas dinâmicos e do caos teve foi a inclusão do personagem Ian Malcom, vivido por Jeff Goldblun, numa das obras primas da sétima arte: o filme Jurassic Park de 1992.
Isso é algo impensável para qualquer outra área do conhecimento. Temos hackers, cientistas genéricos etc. Mas o Dr. Ian Malcom era um matemático que estudava sistemas dinâmico, era marrento e “cool”. Obviamente a obra toma alguma liberdades poéticas nas suas falas, mas cabe ressaltar que a cena da gota da água na mão da Ellie (a paleontóloga vivida pela Laura Dern) é impressionantemente acurada na explicação da sensibilidade às condições iniciais.
A magia do cinema é que ele consegue explicar em uma cena de 5 minutos o que eu precisei de mais de 4000 palavras dividas em dois textos. Mas vocês estavam avisados que seria da forma “menos” interessante possível.
Referências e Links Legais
Scicast #589 Determinismo. Como eu disse, as duas obras (esse texto e o podcast) se complementam bem. Aqui há uma discussão mais profunda do sistema de Lorenz e as imagens enquanto lá foi feita uma abordagem mais filosófica, muito interessante inclusive.
Scicast #198 Teoria do Caos. Aqui a turma fala mais sobre as implicações práticas do caos e menos sobre como ele aparece matematicamente, que foi o propósito desse texto.
Vídeo com o desenho do Retrato de Fase do sistema de Lorenz, para ficar mais claro a visualização.