Acredito que todos tem conhecimento e usam regularmente a palavra “caos” para se referir a um evento desordenado ou fora dos padrões. Também acho que está no imaginário popular a expressão “efeito borboleta” para se referir a pequenas variações que implicam grandes resultados futuros — e também um filme meia boca dos anos 2000. E, por fim, creio que todos que tiveram aulas de geografia no colégio se lembram do fatídico “crescimento Malthusiano”, um modelo matemático apocalíptico proposto pelo economista Thomas Malthus (1766-1834) no fim século 18.
E se eu contasse que todas essas coisas se reúnem numa só área do conhecimento, que parece bem legal à primeira vista devido à essas aplicações práticas mas que exige um conhecimento sólido de cálculo diferencial e integral e equações diferenciais, além de uma certa habilidade em desenhar gráficos? Então, se preparem e sejam bem vindos ao estudo dos Sistemas Dinâmicos e a Teoria do Caos, onde descobriremos que existe imprevisibilidade em sistemas aparentemente previsíveis; entenderemos o que um pendulo duplo tem de especial e porque a previsão do tempo pode se arvorar nesse conceito para errar as suas previsões muito distantes.
Esse é o primeiro de dois textos sobre o assunto. O próximo pode ser encontrado aqui:
O MODELO POPULACIONAL
Para começar iremos analisar um certo modelo populacional. Um modelo populacional é uma ou mais equações que utilizando alguns parâmetros permitem estimar a população futura, se baseando na atual. Lembrando aqui que uma população pode ser qualquer grupo de indivíduos, não necessariamente a população de um país.
Como já comentei, o mais famoso modelo de população vem do senhor Malthus, que propôs o crescimento exponencial da população a cada tantos períodos de tempo. A quantidade de tempo não era tão importante para ele, mas o fato de que, no mesmo período a produção de alimentos cresceria de maneira linear, muito menos rapidamente.
Malthus usou os dados populacionais britânicos que ele tinha em mãos na época, mas eles não eram vastos. O censo nacional foi estabelecido na Inglaterra após a publicação de seu artigo sobre o assunto, sendo uma contribuição direta. E mesmo Malthus tendo elencado algumas variáveis que atrapalhariam o crescimento no longo prazo, ele não as colocou no modelo.
Entra em cena um rapaz Belga chamado Verhulst (1804-1849) que em um artigo de 1838 se propôs a melhorar o modelo de Malthus. Tendo em mãos dados mais abrangentes — as populações da França entre 1817-1831, da Bélgica entre 1815-1833, do condado de Essex na Inglaterra de 1811-1831 e da Rússia de 1796-1827 (embora esses últimos ele não garantia a autenticidade porque não sabia como tinham sido coletados) — ele tentou modificar a equação original, colocando um tipo de “freio” populacional.
Tanto ele como Malthus entendiam que nenhuma população conseguiria se expandir indefinidamente, por razões de espaço, competição, etc. Ele buscou uma equação que atingisse um mínimo após um certo tempo. Conforme ele diz no artigo, ele testou várias e no fim acabou ficando com uma que um colega dele tinha sugerido, um freio quadrático (o quadrado da população), análogo à uma fricção mecânica. Ele novamente avisa que não confiava muito nessa hipótese (afinal, ela não tinha muitos argumentos), mas decidiu testar e os dados foram bem correlacionados.
Agora é uma boa hora de mostrar as equações. A equação de Malthus é simplesmente uma função exponencial:
yt+1 = r*yt (1)
A equação de Verhulst tem o freio quadrático adicionado:
yt+1 = r*yt*(1 – yt) (2)
Essas equações sempre fornecem o valor da população do tempo seguinte em função da população no tempo atual e do parâmetro r, que é a taxa de crescimento. Lembrando que aqui o y corresponde à razão do tamanho da população e o seu valor máximo, sendo um valor entre 0 e 1 portanto, e o t ao período de tempo, podendo ser um mês, um ano ou qualquer período.
O procedimento é simples. Começamos no tempo t=0 e escolhemos um valor inicial de população. Colocamos esse valor na equação e termos o resultado do próximo tempo. Esse resultado é utilizado novamente na equação, e permite descobrir o valor do termo subsequente. Esse procedimento é repetido a quantidade de vezes desejada.
Vamos pensar o que ocorreria com alguns valores. Se nosso primeiro valor de y fosse igual a zero obviamente não haveria crescimento. Agora, se começássemos com yt = 0.6 e, digamos, uma taxa r = 0.5, o que aconteceria com os valores de yt, o tamanho da população?
Começamos com 60 % da capacidade populacional e nosso crescimento é de 0,5, ou seja, a cada período nossa população diminui de tamanho até chegar a zero.
Se testarmos outros valores de y inicial com esse r chegaríamos no mesmo resultado, mesmo que o tempo para chegar fosse um pouco diferente, como podemos ver abaixo:
Vamos testar outros valores de r, seguindo com o nosso valor inicial de yo = 0,6. Estaremos variando apenas o parâmetro r, que nesse exemplo representa a taxa de crescimento da população.
Primeiro vamos testar o valor r = 1.2. Nesse caso vemos que ainda temos uma queda, mas que o valor não tende a zero, se estabilizando em um valor especifico. Isso acontece porque agora temos um crescimento, o r é maior que 1. Mas o termo de “freio” ainda tem muito peso e puxa o gráfico para baixo, o crescimento não é suficientemente grande:
Também podemos ver que conforme subimos o valor de r temos o mesmo desenho de gráfico mas um ponto de estabilização diferente e para valores de r maiores que 2,5 temos o primeiro valor final superior ao nosso valor inicial:
Verhulst certamente não variou muito seu r, pois sabemos que populações humanas não exibem variações tão drásticas. Nem era o objetivo dele avaliar esse parâmetro, ele estava feliz com a sua equação que se adequava bem aos dados. No entanto, nós vamos fingir que restrições não existem e continuar aumentando o valor de r.
Vamos testar o valor de r = 3,1:
Vemos uma oscilação entre dois valores, que nunca se estabilizam em um valor específico como antes. O crescimento inicial é muito rápido (puxado pela grande população inicial), levando à uma superpopulação, que precisa diminuir, vertiginosamente. O modelo segue indefinidamente circulando entre esses dois valores.
Para a próxima tentativa usarei r = 3,5:
Agora vemos 4 pontos alternando periodicamente. Vamos aumentar mais uma vez, agora para r = 3,6 (percebam que os incrementos de r estão ficando cada vez menores):
Claramente temos uma periodicidade na resposta, porém é mais difícil perceber entre quantos termos estamos circulando. Por fim, testaremos r = 3.9 e qualquer valor mais elevado que esse tem o seguinte resultado:
Aqui, não conseguimos encontrar mais periodicidade nas oscilações. Eu até aumentei o número de iterações para evidenciar esse fato. Obviamente elas estão circulando em torno de uma “linha imaginária” mas não conseguimos perceber nenhum padrão específico.
Esse tipo de gráfico tem sua utilidade, mas não conseguimos perceber totalmente o que está acontecendo, não temos muito material para analisar.
No entanto, podemos gerar um outro gráfico com os mesmo dados que nos ajudará a entender melhor o sistema.
Façamos um gráfico com valor de y após muitas iterações na vertical (no nosso caso serão 30) contra os valores de r na horizontal. Teremos então o valor que y tende após várias iterações dependendo do valor de r.
Se rodarmos um programa simples podemos testar vários valores de r e computar os valores finais de y e plotá-los.
Para os valores de r entre 0 e 1 o y sempre tende a zero, portanto temos uma linha horizontal em cima do eixo das abscissas:
A partir de 1 até 3 vemos o valor de y crescendo a cada incremento de r, mas diminuindo de velocidade ao se aproximar do 3:
Quando chegamos em 3,2 vemos uma bifurcação. São justamente os dois valores que encontramos na nossa primeira análise gráfica.
Esse comportamento segue até mais ou menos o 3,5, quando vemos mais uma bifurcação, referente aos quatro pontos de oscilação. A partir de 3,5 até 4 (que é limite do r, mas isso é outra discussão), o seguinte gráfico impressionante emerge:
E não, não é uma falha no programa, um gato pisando no teclado ou um esboço de uma pintura do Jackson Pollock. Realmente esse é o comportamento que obtemos utilizando essa análise. Cada ponto simboliza um ponto de estabilidade e eles estão distribuídos de maneira desordenada, desorganizada, sem padrão específico… me parece que falta uma palavra que descreveria exatamente esse comportamento: CAÓTICO.
Sim, esse gráfico, chamado de Diagrama de Bifurcação, é uma das maneiras que conseguimos visualizar o aparecimento do caos em um sistema. Lembrem-se: começamos a nossa análise com uma equação muito simples, uma equação quadrática, que vemos no ensino médio. Pior ainda, a análise, mesmo que utilizando algumas modificações representava bem um fenômeno real relativamente simples, que é o crescimento de populações.
Fazendo uma análise mais rigorosa, há outro ponto importante de se considerar. Ao contrário de sistemas como os da física quântica, onde temos uma imprevisibilidade inerente, ou sistemas que sabemos que possuem flutuações aleatórias, como uma bolsa de valores, nosso modelo era determinístico. Esperaríamos que o comportamento da equação fosse constante e previsível para quaisquer valores, quando na verdade ele é justamente o contrário, imprevisível.
Se nada faz sentido até agora, não se preocupe, é assim que funciona. Esse é um tipo de conteúdo que é preciso “sentir” mais que entender.
Após esse exemplo ilustrativo (vagamente inspirado em uma artigo de 1976 e um vídeo do youtube) veremos na parte 2 a história do descobrimento do caos, alguns exemplos de sistemas caóticos (o famoso “efeito borboleta”) e lembraremos da maior honraria que um campo de estudo pode receber: ser colocada como trama do Jurassic Park!
REFERÊNCIAS E LINKS LEGAIS
Artigo de 1976 que demonstra e explica mais profundamente o comportamento dessa equação.
Vídeo do canal Veritassium, inspirado no artigo e que por sua vez me inspirou à escrever esse texto