Não é novidade para ninguém que estamos enfrentando uma pandemia global. Muito provavelmente, quando este texto for publicado, ele estará desatualizado a respeito dos efeitos que a expansão do “coronavírus” tem causado no mundo. Porém, este é um medo que não me aflige (o de ficar desatualizado!), até porque, a minha preocupação nessas linhas que seguem volta-se para o passado.
Logo que fiquei sabendo do surgimento do vírus na China e como ele se alastraria rapidamente pelo mundo por conta de nossos modernos sistemas de transportes – que conectam pontos remotos da terra em questão de horas -, pensei que este era um dos efeitos colaterais da globalização. Porém, é evidente que pandemias não são um “privilégio” da modernidade. Vale lembrar que a epidemia mais famosa de todos os tempos, a Peste Negra, data de meados do século 14 e, apesar de ter solapado milhares de vidas europeias, possuía suas origens fora do “velho mundo”, muito provavelmente na Ásia.
No entanto, a expansão dos europeus pelo globo, a globalização do “modo de vida” ocidental levou tal problemática a um grau mais complexo. Afinal, a descoberta da América marca um ponto central na história da humanidade que vai muito além daquelas que usualmente elencamos. A notícia do encontro com homens e mulheres em terras além-mar impôs a necessidade de se criar até mesmo novas linguagens literárias para se compreender tal evento. Para dar vazão a sua perplexidade, Michel de Montaigne se viu obrigado a encontrar outras maneiras de se colocar no papel os impactos que a descoberta de novos povos provocou em sua compreensão do mundo. Assim, deu luz ao “ensaísmo”.
Ao mesmo tempo em que o escritor francês dedicava traços de sua pena para entender o nativo americano, novos produtos, plantas e animais cruzavam o Atlântico em caravelas na busca de outras apropriações e novos paladares. A América daria ao mundo as batatas, a pimenta, o tabaco, o chocolate, o milho, o tomate, entre muitos outros, criando novos pratos nacionais para as culinárias europeias. O trigo europeu mudaria a paisagem americana para sempre, assim como o cavalo e o boi imporiam um ritmo mais acelerado ao plantio e às formas de pastoril. Criaríamos até mesmo nossa própria maneira de lidar com o gado, rodeando os animais e “inventando” o rodeio na Nova Espanha.
A base do mundo como conhecemos agora tem suas origens nesse processo do encontro entre o universo europeu e o americano e que se aprofundou ao longo dos séculos após 1492. Este processo foi consagrado com o nome de Columbian Exchange pelo professor multidisciplinar Alfred Crosby Jr. em seu livro de igual título e lançado no já longínquo ano de 1972. As páginas escritas por Crosby são categóricas em dizer que as trocas promovidas por Colombo não se limitaram a pessoas, plantas e animais, mas, também às doenças. De certa maneira, seriam elas que facilitariam o avanço dos europeus pelo continente, afinal, ao contrário do que se imagina, as bactérias e vírus foram mais letais para dizimar as famílias ameríndias do que as armas dos conquistadores. E os números são realmente assustadores.
Segundo Nathan Wachtel, em Os índios e a conquista espanhola, corroborando as informações de Crosby, ao longo do século 16, a população nativa da região da América Central caiu de 25 milhões para 1,9 milhões. Na região andina, no mesmo período, a queda foi de 10 milhões para 1,5 milhões de almas. Como se explicam tais números? Segundo Wachtel (2004, p. 201), “a causa principal foram as doenças. Os europeus trouxeram consigo novas doenças (varíola, sarampo, gripe, peste) contra as quais os índios americanos, isolados por milhares de anos do restante da humanidade, não tinham defesa”.
Desta feita, a doença circulou pelo continente mais rápido que os cavalos do conquistador. Huayna Cápac, senhor dos quéchuas, seria vítima da varíola em 1524, antes mesmo de seu filho Atahualpa ter um encontro pessoal com Francisco Pizarro, em 1532. Sua morte seria responsável pelo início de uma guerra civil sangrenta entre incas dos quatro cantos do império e que somente encontraria um fim com a chegada dos espanhóis. Como diria Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro (1995), uma verdadeira guerra biológica teve início com o desembarque dos europeus ao Novo Mundo.
Porém, como o encontro e as trocas presumem a relação bilateral, caberia aos “americanos” legar aos europeus alguns de suas armas secretas: a sífilis. O estupro de homens e mulheres nativos resultaria na expansão da doença pelo velho mundo. Até mesmo Nietzsche seria uma vítima tardia dessa invasão às terras e aos corpos ameríndios. Somente no século 20 encontraríamos vacinas e remédios para tantas dessas doenças, adiantando o tempo que nossa imunidade levaria para se adaptar a tais males e torna-los inofensivos a nosso corpo.
Se por um lado, “viver no futuro” traz o ônus que é o de uma doença se alastrar pelo globo em pouco mais de um mês, por outro lado ele traz a perspectiva de que esforços coletivos de cientistas também ganham uma dimensão global. A troca de conteúdos online e o mapeamento do genoma do vírus disponibilizado em plataformas open source de pesquisa, demonstram que as possibilidades abertas pelas trocas colombianas possuem um lado positivo na balança.
Assim, podemos nos aproveitar da capacidade humana de produzir conhecimento, apostarmos na ciência como fonte da superação de problemas e trabalharmos coletivamente pelas caravelas que cruzam o mundo pelos cabos de fibra óticas que levam mais do que terabytes de esperanças por dias melhores, num futuro não tão longínquo quanto o horizonte que se desenhava na nau do viajante veneziano.
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Bibliografia:
WACHTEL, Nathan. Os índios e a conquista espanhola. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: a América Latina Colonial. Vol I. São Paulo: Edusp; Brasília, DF: Fundação Alexandre Gusmão, 2004, p. 195-239.
Nota da Editora:
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