Hey Judes!

Seguimos a vida em quarentena. Sigamos na prevenção já que, como diz o ditado, é melhor que remediar. Até porque não temos estruturas que deem conta de todas as demandas insurgentes. Em outras palavras, a despeito de toda evolução ou progresso que tenhamos alcançado, fomos contrapostos a um desafio que testa nossos limites. Over and over again.

É típico da nossa cultura estrutural maniqueísta sempre eleger inimigos a serem combatidos de dentro de uma concepção explícita de superioridade inquestionável (e, nesse sentido, o cristianismo ajudou bastante). De quebra, o homem ocidental parece ter levado bem a sério a suposta posição de domínio sobre tudo. Errou feio… Errou rude! Se pela essência do domínio, perdeu a proeminência na expulsão do jardim; se por dotar razão… é, matou seu deus. Talvez seja até melhor que seja o polinésio o correto, pois me parece menos pior errar na opção do que assassinar a escolha.

Enfim, literal ou metaforicamente, o fruto condenatório sempre orbitou o saber. Como já dizia Melanie Klein, “quem come do fruto do conhecimento é expulso de algum paraíso”. No nosso caso, a ideia de superioridade ironicamente anunciou nossa queda pela soberba precedendo a ruína, e a arrogância precedendo a queda. O que nos fez superiores nos alçou a uma autoconfiança luciferiana, que nos expulsou e continua a expulsar de todos os paraísos que nos propomos a construir.

Mary Shelley também fez o alerta através de seu cientista e sua criatura e, assim, domamos a natureza, controlamos a vida – e a morte. Nos tornamos senhores de nós mesmo e desse mundo. E de quantos mais seremos? Im-pa-rá-veis! Eis o ser humano; o animal que ousou ser deus e esqueceu de ser… humano.

Victor subverteu a ordem e fez-se senhor da vida. A natureza respondeu com violência – ou veemência? A excessiva fidelização à razão fez saltar, portanto, a noção de que não precisávamos mais de deus e de diabo; eram agora meras invencionices representativas. O bem e o mal estiveram e estão dentro do próprio homem, afinal tudo sempre tratou do homem. Uma expulsão, um dilúvio, um heliocentrismo, uma bactéria, um vírus não significam nada (?). O fim. Enfim, a última barreira da escalada à deificação.

Os dias de quarentena são resumidos em uma só palavras: medo. Medo de morrer, medo do futuro, medo das incertezas, medo do colapso, medo da perda, medo da renovação. Em meio a uma pandemia de temor, não de vírus, foi literalmente olhando pela janela que comecei a entender a lição, a mensagem da transformação. Não, não como um Zaratustra ou ecce homo, mas à luz da derrocada dos ídolos cultuados e antes inabaláveis.

Foi nítido o aumento das borboletas naquele terreno abandonado ao lado do prédio. Sempre estiveram ali, nunca tantas. Pássaros, corvos (?) e até uma pomba branca – ou pombo. E aí um lobo-guará em Volta Redonda, capivaras não sei aonde, o ar mais limpo nas grandes cidades e então aquela atmosfera densa escondendo um niilismo espectral. Em outras palavras, digo que esse ciclo pandêmico não é de pânico ou de esperança, mas, à luz da filosofia nietzscheana, é uma mensagem de raiz niilista metamorfoseando-se em existencialista em um salto de fé kierkegaardiano.

É entender que a razão não nos fez nem faz superiores e, se fez, olha o tio Ben aí: com grandes poderes vem grandes responsabilidades. É uma mensagem clara de ponto final no nosso vício metonímico de tomar a parte pelo todo e a sinalização de que, principalmente em reinvenção, somos principiantes com um ego frágil demais. Logo, a crítica nietzscheana à modernidade nunca se fez tão atual. Se o século XVIII foi “das Luzes”, então certamente o século XIX foi o ponto de inflexão na curva desenvolvimentista humana.

Tem dúvidas? Recorra à ajuda dos universitários para acertar a pergunta de 1 milhão. Hobsbawm definiu o século seguinte sob o signo da brevidade – a despeito da crítica metafísica à razão cientificista, duas guerras mundiais. O século atual era então aquele que tinha tudo para dar certo. E tem sido o que mais deu errado. A disputa tecnológica nos faz mais técnicos e menos humanos. Mais recentemente o quase golpe final: para quê Ciências Humanas? Ataques diretos e certeiros à História, à Filosofia, à Sociologia, etc. Afinal, por qual motivo, razão ou circunstância subsidiar, investir e incentivar áreas que só fazem olhar para trás e refletir? Para frente que se anda! Ordem e Progresso. O século XIX foi mesmo o ponto de inflexão de uma queda proporcional à expectativa primeva de ascensão: luciferiana.

Até que um vírus derruba os deuses da economia, da política e do poder lembrando da possibilidade de Rousseau estar certo: a sociedade corrompe o homem bom por natureza. Mas, o que garante que Hobbes não estivesse com a razão em assumir que o homem é seu próprio predador, é mau por natureza exceto quando precise ser bom? Certeza mesmo temos, então, a partir do senso comum, que os nãos justificam – suficientemente – os meios. Honestamente não é possível encontrar a verdade que buscavam os primeiros filósofos e, por isso, nada nos libertará. Vai que teria sido melhor que o deus tivesse escolhido os dinossauros.

A mim, parece seguro apenas assumir que opto pelas borboletas concluindo que, se um vírus tem tanto a ensinar, quanto mais não necessitamos e devemos aprender? Segundo o cristianismo, o arrependimento é a chave da salvação. Quem sabe não seja aí que Nietzsche encontre Deus.

Aqui, como uma nota de rodapé, convido à música Segundo Sol, de Nando Reis, na voz de Cássia Eller.

Cassia Eller – Segundo Sol

Depois de pensar nesse texto, pareceu ressignificada. E caso não tenha ficado claro as referências nietzscheanas: Crepúsculo dos Ídolos; Ecce Homo; Humano, demasiado humano; Assim falou Zaratustra; A Gaia Ciência; Além do bem e do mal.

 

Nota da Editora:

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