Já parou para se perguntar como nosso sistema imunológico consegue saber o que faz parte do nosso organismo e o que não nos pertence? Por qual motivo podemos desenvolver uma doença autoimune? Como nossas células de defesa sabem quem devem atacar ou não?
Primeiro, é necessário entender alguns mecanismos que atuam para que nossas células do sistema imune não ataquem nossos tecidos e órgãos.
As primeiras células de defesa se desenvolvem no fígado fetal, e posteriormente na medula óssea. Assim, vamos nos focar em um tipo específico de glóbulo branco, que são os linfócitos. Também, para auxiliar, vamos dividir os linfócitos em T e B.
Durante o desenvolvimento dessas células, são produzidos em sua membrana dois tipos de receptores principais, os quais vão reconhecer as moléculas que devem combater.
Esses, presente em Linfócito T e B, respectivamente, são chamados de TCR (T Cell Receptor) e BCR (B Cell Receptor).
Agora, imagine o seguinte. Esses receptores são produzidos durante o desenvolvimento dessas células, certo? Esse processo – o de “montagem dos receptores” – é feito de forma aleatória. Temos uma quantidade de, mais ou menos, 107 ou mais de clones dos linfócitos com receptores diferentes. Ou seja, nosso corpo tenta produzir receptores para TODAS as moléculas que vamos encontrar ao longo da vida. Logo, teoricamente, já temos receptores contra a bactéria da sífilis, o vírus da hepatite B, de algum protozoário que nunca entraremos em contato e, inclusive, de uma proteína presente em nosso dedão do pé.
Bom, vale lembrar que esses receptores estão intimamente ligados às nossas respostas imunológicas. Por exemplo, se eu tiver um linfócito T com um TCR contra uma proteína que está sendo expressa em meu coração, esse linfócito T irá gerar uma resposta contra essa proteína em questão, acarretando uma doença autoimune.
Entretanto, como doenças autoimunes não são tão comuns, provavelmente nosso organismo tem algum mecanismo para nos livrar dessas células, as que iriam nos “atacar”.
De fato, há um conjunto de mecanismos que desenvolve a chamada Tolerância Imunológica. Esses, são capazes de “treinar” nosso sistema imune e fazer com que diferenciemos o que pertence ao nosso organismo, e o que não pertence e deve ser combatido.
Bom, ainda pensando no linfócito T, podemos dividir a tolerância imunológica em duas partes: Tolerância Central (TC) e Tolerância Periférica (TP).
Após o Linfócito T estar “crescidinho”, ele precisa entrar na adolescência. Ou seja, precisa amadurecer, pois é muito imaturo para ir direto à corrente sanguínea e nos defender. Assim, esse processo de amadurecimento ocorre em um órgão específico chamado de timo.
Uma vez que o Linfócito T está no timo, ele precisa ser “treinado”. Como dito anteriormente, ele pode apresentar receptores que irão reconhecer microrganismos que vamos entrar em contato ao longo da vida (ou não), e podem desenvolver receptores específicos, cuja função é se ligar em moléculas (antígenos) que nós produzimos. Isso ocorre, pois o processo de “montagem” de receptores é aleatório.
Contudo, precisamos nos livrar dos linfócitos T que irão nos atacar ao chegar até a corrente sanguínea. Para isso, então, vamos treiná-los. Mas, como fazemos isso?
Basicamente, essas células vão passar por uma bateria de testes. A primeira parte ocorre no timo. Essas células tímicas, por sua vez, têm a capacidade de expressar vários antígenos (moléculas) proteicos que são encontrados apenas em alguns tecidos periféricos. Para realizar essa expressão e apresentação dos antígenos específicos, vamos precisar de uma proteína nuclear denominada de AIRE (autoimune regulator). Ela, por sua vez, controla a expressão de diversos genes específicos de diferentes tecidos no timo.
O gene da proteína AIRE é tão importante que, caso sofra alguma mutação, pode desenvolver uma síndrome chamada de poliendócrina autoimune (APS). Esse grupo de doenças é caracterizado por lesões em diversos órgãos endócrinos, incluindo as paratireoides, suprarrenais e ilhotas pancreáticas.
Nessa sequência de testes ou apresentações feitas pelos linfócitos T, podemos separar em 3 situações.
Na primeira, se não ocorrer a ligação de forma alguma, a célula vai morrer. Caso a ligação entre o Receptor da Célula T (TCR) e o antígeno próprio (pertencente ao nosso organismo) for muito forte, a célula em questão será destruída ou irá se transformar em outro tipo celular chamado de Linfócito T regulador (LTreg).
Agora, por outro lado, se a ligação for considerada fraca, a célula vai sofrer um estímulo para sobreviver, e posteriormente irá para o tecido periférico.
A partir do momento que o Linfócito T chega aos outros órgãos linfoides (linfonodos e baço), ele ainda pode nos “atacar”, pois sempre há uma chance de a tolerância central falhar.
Por esse motivo, há ainda a outra tolerância chamada de periférica, pois ocorre em tecidos periféricos. Essa é dividida em Anergia, Supressão pelas células T reguladoras (que comentei anteriormente) e a deleção de células T por apoptose.
Claro que, se tivermos alguma falha em algum desses mecanismos, podemos vir a ter o desenvolvimento de uma doença autoimune. Assim, por meio dessas técnicas é que o corpo consegue distinguir o que nos pertence (self) do que não faz parte de nós (não-self).
Se esse antígeno vier de um meio externo, ainda podemos desenvolver uma tolerância a ele, mas há alguns fatores, tais como a persistência, a forma de entrada, se há presença de adjuvantes e as propriedades das células apresentadoras de antígenos.
Por fim, há várias nuances sobre doenças autoimunes, sobre as quais vou escrever no meu próximo texto, focando, especificamente quando ocorre a quebra dessa tolerância imunológica.
Até a próxima!
Referências:
ABBAS, Imunologia Celular e Molecular. 7ª Edição. 2012.