Sejam bem-vindos a mais um #desafioredatoresdeviante, em que nossos ouvintes crianças maiores de 15 anos perguntam e os redatores do portal respondem! Hoje recebemos a pergunta do André Trapani e eu não vou ter um trabalho simples para explicar a dúvida dele:
“Como é isso de uma crise econômica global? Todo mundo fica mais pobre? Ou se o povo está ficando mais pobre, alguém tem que ficar mais rico? E o contrário? Dá para ficar todo mundo mais rico sem ninguém ficar mais pobre?”
Primeiro, eu gostaria de desmistificar a ideia de que a economia é um jogo de soma zero: isto é, quando alguém ganha, não necessariamente alguém precisa perder. Na verdade, podemos pensar no capitalismo como uma roda dentada em que cada um dos dentes é um fator econômico: emprego, demanda, consumo, preços, etc. Todos os fatores trabalham juntos para garantir que a roda continue girando e um fator ajuda a impulsionar o seguinte.
Outro conceito que alguns de vocês já devem ter ouvido é que um dos alicerces mais interessantes do capitalismo moderno é a ideia de multiplicação do capital ao longo do tempo. Vou dar um exemplo do que isso significa: O André trabalhou e conseguiu economizar R$2 mil reais para viajar. Enquanto ele não faz a sonhada viagem, o dinheiro foi investido em alguma coisa no banco, para render juros. Logo, o André está ganhando com essa ação, multiplicando seu capital. No nosso sistema atual, os bancos têm liberdade para pegar uma parte dos R$2 mil reais e emprestar a outra pessoa. Vamos imaginar que a Debbie queira expandir sua padaria e precisa de R$1,8 mil para isso. Ela vai ao banco, pega o dinheiro emprestado e faz as reformas necessárias. Nesse empréstimo o capital está se movimentando bastante e vamos observar: o banco está ganhando juros sobre o empréstimo, a Debbie está aumentando sua capacidade de produção – o que aumenta seu lucro mesmo depois de pagar o empréstimo – e o dono da loja de material de construção acabou de ganhar mais um cliente. É possível continuar quase que indefinidamente se pensarmos no lucro da olaria que fez os tijolos, do salário dos trabalhadores na fábrica de canos, no motorista do caminhão de transporte…E isso tudo sem afetar os R$2mil reais na conta do André. Essa é a roda do capitalismo girando. Se você parar para pensar, o banco acabou “criando” os R$ 1,8 mil que a Debbie pegou emprestado (porque os R$2 mil do André continuam registrados da conta dele) e esse poder que os bancos têm de literalmente criar dinheiro é chamado efeito multiplicador do crédito. Ele é uma das principais engrenagens que mantém o dinheiro circulando e os negócios em crescimento.
Mas essa lógica de empréstimo e investimento só funciona porque o investidor imagina um futuro mais positivo para gastar com a viagem, porque a empresária da padaria decide expandir pois vê mais pessoas gastando dinheiro e tem uma visão mais otimista do futuro, e porque o banco vê que as vendas estão crescendo e imagina que a dívida poderá ser paga com certa facilidade. O que garante toda essa movimentação é um otimismo e expectativa de crescimento.
Mas o que acontece se uma dessas partes começa a ter uma visão pessimista? Quando o cenário econômico é mais nebuloso, como estamos vendo com os impactos da Covid-19, as pessoas se tornam mais conservadoras nos investimentos e no consumo, fazendo com que a roda pare lentamente de girar. Vamos voltar ao nosso exemplo: o André até poderia fazer o investimento dele, mas talvez em algo mais conservador, o que lhe rende menos juros. A dona da padaria não espera mais consumo de seus clientes e por isso não tem motivação para pegar o empréstimo. O banco pode não ter a solicitação de empréstimo ou pode escolher não emprestar por ver grande risco de calote (com o consumo estagnado ou caindo, como a empresária conseguiria arcar com as parcelas?). O dinheiro nunca chega à loja de material de construção e assim por diante. E isso tudo causado por incerteza e medo.
Quando a pandemia de Covid-19 forçou o isolamento social e com isso o fechamento de grande parte dos negócios em todo o mundo, o que vimos foi um “ataque” a vários dos dentes da roda capitalista ao mesmo tempo: os negócios se viram sem fluxo de rendimentos, demandando menos matéria-prima e tendo que demitir pessoas. Com a queda no emprego, há queda na renda e no consumo. A falta de previsibilidade fez os bancos e as empresas reduzirem investimentos e empréstimos. E, acima de tudo, a ausência de um panorama claro de quando e como vamos sair dessa crise deixa todos cheios de incerteza, paralisando os movimentos na economia.
Um dos fatores que movimenta a economia não são as notícias de hoje, mas a perspectiva coletiva de como será o dia de amanhã. Previsões mais pessimistas levam a menos consumo, menos investimento, menos movimentação, criando automaticamente um ciclo vicioso. É praticamente uma profecia auto-realizável: eu acho que as coisas vão mal, há menos gastos, a economia realmente vai mal e assim por diante. Pensando desta forma, fica mais fácil entender como uma crise como essa está afetando tanto a economia mundial e todos – ou praticamente todos – estão saindo perdedores dela.
E eu digo praticamente todos porque talvez, quando o André tenha pensado nessa questão, ele estivesse pensando no mercado financeiro: tem alguém ganhando dinheiro na bolsa? A resposta é: provavelmente sim. É possível ganhar dinheiro com a crise financeira apostando contra o sistema, operando “vendido”. Você vende alguma coisa hoje apostando que o preço vai cair no futuro, aí você recompra mais barato e embolsa o lucro. É mais complexo do que isso, mas vai ficar para outro texto.
Mas se pensarmos no cenário mais amplo da bolsa, a maioria dos investidores sai perdendo, porque a queda no preço de uma ação reflete o valor que os investidores dão àquela empresa. Uma crise faz com que o valor coletivo percebido das empresas dos lucros futuros diminua. Quem investiu naquelas ações vê o valor automaticamente reduzidos, sem ninguém ter ganhado esse valor em contraposição. Com as perspectivas negativas, as empresas não têm incentivos para investir na produção ou capacitação dos seus funcionários (e nem os bancos e investidores têm interesse em emprestar dinheiro) travando melhoras na produtividade e reduzindo o desembolso para pesquisa e desenvolvimento. Mais uma vez, a crise só deixou perdedores: a empresa não produz mais nem melhor, os funcionários não ganham aumento ou podem até serem demitidos, os investidores perderam dinheiro e a economia está em situação pior que anteriormente.
A diferença desta crise para outras é que esta é uma crise de economia real: a causa vem do consumo dos cidadãos de todos os dias e não nos escritórios das torres mais altas de Nova York (que foi o que aconteceu com a crise de 2008). Esta é uma crise tão profunda pois os efeitos da pandemia foram devastadores em praticamente todos os elos do sistema capitalista ao mesmo tempo: desemprego, queda no consumo e renda, expectativas futuras negativas, falta de liquidez no mercado de crédito.
Pode ser que alguns leitores entendam que a culpa por grande parte dos efeitos nefastos da pandemia está no sistema capitalista que temos – e eu não discordo totalmente desta afirmativa. O que precisamos entender é que, com o choque causado pelo Covid-19, nem mesmo os empresários mais ricos estão passando incólumes e que há muitos fatores que levam a resultados desiguais e perversos sobre algumas camadas da população. Mas eu gostaria de parafrasear um dos meus ídolos da história. Churchill dizia que a democracia era o sistema menos pior, e eu acredito que o mesmo seja verdade para o capitalismo. Se você quiser aprofundar o debate sobre o futuro do capitalismo como o conhecemos, eu recomendo que você escute uma conversa que a equipe do SciCast desenvolveu no episódio sobre as Revoluções Industriais porque lá a conversa foi bem mais completa e multidisciplinar do que eu poderia desenvolver aqui. Um modelo econômico mais igualitário certamente estaria distribuindo o fardo de forma mais homogênea entre os diversos setores da sociedade – ao invés de afetar desproporcionalmente os mais pobres, como estamos vendo – mas não seria capaz de evitar praticamente nenhum desses efeitos.
A realidade dessa crise é que há uma supressão enorme da nossa economia em muitas frentes, e não há como solucionar tudo ao mesmo tempo. Quando há choques dessa magnitude é normal que fiquemos sem saber por onde começar ou como corrigir, mas a grande novidade dessa crise é que o mundo jamais será como antes, não voltaremos ao normal porque haverá um novo normal. E a economia também terá que encontrar seu novo ponto de equilíbrio.