“Vinho é a bebida obtida pela fermentação alcoólica do mosto simples de uva sã, fresca e madura.”
(essa é uma piada que provavelmente só os meus companheiros enólogos vão pegar).
Hoje, aqui nessa coluna, vamos lidar com um problema sério: a não possibilidade de produzir vinho em certos lugares. Essa é uma questão que, se não aflige, deveria afligir todo o cidadão de bem do mundo. Tudo bem, posso estar exagerando.
Todos sabemos que o vinho vem do supermercado e tem supermercado em 99% dos lugares que tu for. Então tudo certo, deixemos os chilenos e os franceses fazendo vinho que eles sabem direitinho e seguimos comprando nos carrefoures da vida. É, mas e a diversão de fazer com as próprias mãos? E a impáfia de contrariar a natureza? E a birra e a teimosia típica do ser humano? Jesus, existe inclusive… e eu tenho até medo de citar uma coisa dessas… KIT DE FAZER VINHO EM APARTAMENTO! É de fazer os enólogos mais antigos se revirarem no túmulo. Se bem que eles faziam na garagem deles, o que é quase a mesma coisa. A questão toda é (e se preparem essa vai ser a tese q a gente vai tentar quebrar aqui nesse texto): existem lugares onde é permitido pela natureza fazer vinho.
Como assim permitido? Existe um tipo de polícia enológica que é acionada fora das regiões permitidas? Não. Além do mais, tem como fazer vinho em qualquer lugar, já que é só esmagar a uva, fermentar e por fim engarrafar (pelo amor de deus que nenhum ex-professor meu leia isso). Na prática não é bem assim. O vinho tem q ser feito o mais próximo o possível do pé de uva (que se chama parreira ou videira) para preservar o frescor das frutas (até daria para fazer longe mas, acreditem em mim, voces não iriam gostar). Então só dá pra fazer vinho onde dá pra plantar uva. E aí é onde mora o problema.
A uva é uma planta enjoadíssima. É uma das culturas vegetais mais desgraçadas de trabalhar e esse texto vai servir também pra mostrar por quantos perrengues o homem é capaz de passar apenas para se embriagar. A nossa frutinha rosada e redonda exije condições muito específicas para crescer devidamente e desenvolver as caracteristicas organolépticas desejadas. Então clima, solo, adubação, posição solar, terreno tudo isso influencia diretamente na qualidade da fruta, e mais que isso, esses fatores devem ter um padrão minímo necessário para a planta resolver começar a trabalhar. Para entendermos isso um pouco melhor acho que temos de fazer uma rápida distinção entres os tipos de uva.
As uvas mais comuns pertencem todas ao gênero Vitis e a duas espécies: Vitis vinifera e Vitis labrusca. As Vitis viniferas são originárias da região do Cáucaso, possuem bagas menores e mais delicadas e são mais doces, motivos pelos quais são utilizadas na produção de vinhos finos (aqueles vinhos que o cara vem, cheira, funga, bochecha e fala umas besteiras enquanto toma – juro que um dia eu faço um texto explicando todas essas frescuras). Já as Vitis labruscas têm sua origem na América do Norte, são mais robustas e possuem a polpa mais carnuda, sendo por isso mais indicadas para a produção de sucos, geleias e consumo in natura. Então aqueles nomes de uvas escritos na garrafa de um vinho, como Merlot, Cabernet Sauvingon e Chardonnay são de Vitis vinifera e os que se compram a granel são Vitis labrusca.
Tudo bem mas agora o que eu quero é plantar elas. Calma lá que vai ser complicado. As Vitis vinifera tiveram um importante papel na história acompanhando o homem durante a antiguidade e a idade média. Mas eles deram sorte. Calhou dos grandes centros civilizatórios da Europa e do Oriente Médio serem em regiões de condições extremamente favoráveis para o plantio, como na Grécia e em Roma. O problema maior começa quando o pessoal precisa de uvas frescas perto da onde se está. Como no Brasil. Durante a colonização portuguesa, logo em 1535, repito 1535, muito cedo no processo de colonização a produção de uvas foi introduzida na capitania de São Vicente. Logo se percebeu que vinho e as uvas produzidas aqui não ficavam iguais as da metrópole, o que eu aposto que deve ter deixado a galera extremamente triste de ter que comprar a bebida fermentada de outro lugar ou trazer de casa. Foi só com outros excelentes bebedores de vinho – os italianos – que o Brasil finalmente teria uma produção própria. Os imigrantes se situaram na Serra Gaúcha e logo perceberam que o clima e o terreno lá era relativamente parecido com sua terra natal.
O clima era favorável pois é muito quente no verão e muito frio no inverno, essencial para a videira. A temperatura deve ser relativamente alta no verão para favorecer a fotossíntese e baixa no inverno pois do contrário induziria a brotação da planta, o que não é desejado durante esse período. Isso é um fator determinante para a produção de uvas de qualquer tipo. Uma diferença gritante era o período de chuvas. Enquanto na Itália, e nas regiões produtoras de uva da Europa em geral, o inverno é chuvoso e o verão é seco, aqui nós temos uma pluviosidade relativamente constante o ano inteiro, além de ser bem mais alta. Isso acarreta uma dor de cabeça absurda até hoje para os agrônomos da região que é a alta incidência de doenças fúngicas (aaaaa eu tenho que fazer um texto sobre doenças – tem muita coisa para se falar de uva e vinho estou até impressionado). Isso poderia acabar com o sonho de produção brasileira mas não, nem pensar, nada pode parar o homem e sua vontade de se embriagar. A tradição europeia de cultivo de videiras indicava que a altura do pé deveria ser a menor possível. Por isso na Europa se vê imagens assim:
Imagina só colher isso. A galera deve ter muitos problemas nas costas. Então era natural que aqui também se plantasse dessa maneira. Não demorou muito para perceberem que os tais fungos se lambuzavam com os frutos perto do chão úmido. Mas os sábios viticultores arcaicos contornaram esse problema conduzindo os ramos com os cachos para alturas maiores. Isso leva a uma fruta de menor qualidade geral, mas com menor incidência de doenças.
Essa é apenas uma dos inúmeros “jeitinhos brasileiros” que os agricultores gaúchos (e depois os técnicos foram comprovando ceintificamente) fizeram para enganar a planta. A mudas de Vitis viniferas que os imigrantes italianos conseguiram com os imigrantes alemães no fim do século XIX por exemplo, não resistiam as doenças de solo do país. As Vitis labruscas trazidas dos EUA por serem mais resistentes não tinham esse problema. A grande ideia de algum visionário foi plantar uma Vitis labrusca e enxertar a uma altura de um metro um ramo de Vitis vinifera. Resolvido o problema. A parte que tem raízes não permite a passagem das doenças para a copa, que por sua vez produz uma uva de maior qualidade. Isso é tão útil que hoje em dia é utilizado na Europa (mas a culpa deles precisarem disso é meio nossa porque nós exportamos umas doenças. Agora nós estamos quites).
Chamam a Serra gaúcha de pequena Itália por um motivo: uma adoração velada ao fascismo uma semelhança de terreno e clima. O solo da Serra Gaúcha por exemplo é muito parecido com o de algumas regiões do norte da Itália, muito propício para uvas para a produção de espumante. Portanto o terreno aqui não seria adequado para o plantio de uvas para vinho, mesmo assim nós plantamos e apesar de todas as adversidades produzimos bons vinhos reconhecidos internacionalmente inclusive. Entretando, hoje o Brasil apresenta uma queda no consumo de vinho nacional e aumento no de vinhos importados, espumante e suco. O que pode ser muito vantajoso para a Serra Gaúcha encontrar um filão para realmente se especializar.
Mas deu de falar de jeitinhos simples de plantar videiras em lugares que não foram feitos para ela. Eu vou comentar duas experiências muito mais malucas e divertidas: o caso do nordeste e do sudeste.
Uva no nordeste? Uva no sudeste? Que bruxaria é essa? Se tu prestou atenção no texto viu que eu falei que em primeiro lugar o clima tem que ser propício, e um clima propício é tipo o da França (todos os requisitos prenchidos) ou o da Serra Gaúcha (precisa dar uma enjambrada mas até que vai). Qual lugar do nordeste ou do sudeste tem um clima remotamente parecido com esse?
Vamos começar com o nordeste. A quase totalidade da produção está situada na chapada diamantina e no vale do rio São Franciscno. Essa região possui clima tropcial semi-árido, o que não foi historicamente utilizado para produção de uva. O maior empecilho é a quantidade de água. A videira é além de toda cheia das nove horas, uma pessoa, digo, planta seca – não precisando de muita água durante seu ciclo vegetativo. Mas no nordeste praticamente não chove, o que inviabilizava a produção. Quem solucionou a questão dessa vez foi o rio mais querido da galera o Seu Chico. Utilizando de irrigação por gotejamento foi possível dosar estrategicamente a quantidade de água que a planta precisa durante suas fases. E como no nordeste nunca faz frio, a planta não precisa “hibenar” como no Sul e com isso se abre a possibilidade de colher uva em qualquer época do ano. E é assim que funciona lá, as plantas são podadas de maneira a amadurecerem em blocos, possibilitando uma produção mais ou menos constante. Geralmente se fazem 2,5 safras por ano. e porque não cortam todas as parreiras do Rio Grande e as levamos para lá? A alta insolação e o clima seco permitem a produção de uvas muito doces – suficientes até para a passificação – mas que acabam sendo deficientes em acidez e taninos (explicarei num exto futuro esse termo tão dito por metidos a entendedores) fatores importantes na elaboração de vinhos mais chiques.
E para finalizar, o pulo do gato mineiro. No sul de Minas, o clima do inverno é bem parecido com o clima das grandes regiões produtoras de vinho no verão. Ou seja, daria para fazer a colheita nessa época. O único problema é que é no mês errado, em junho, quando a planta não está completamente desenvolvida. A Epamig (Empresa de pesquisa agropecuária de Minas Gerais) desenvolveu um pulo do gato: a dupla poda. A poda é uma técnica indispensável na produção de uvas pois ela permite controlar o tamanho e o formato da planta, permitindo escolher onde os cachos fiacarão posicionados e também controlar a produção (se a produtividade for muito alta a qualidade cairá). A técnica da dupla poda consiste em podar normalmente a planta no inverno por volta de agosto, e depois novamente em janeiro. Com isso se retarda a colheita para o inverno e todo mundo fica feliz colhendo sua uva fazendo seu vinho.
Bom esse foi um texto simples, mais para mostrar as maneiras que a tecnologia e a ciência consegue nos ajudar a driblar a natureza. E também de quebra conseguir tomar uma bebida legal.