O que motivou os vikings a saírem da Escandinávia em grandes expedições para leste a oeste é um mistério que ainda precisa ser muito estudado. Pouco a pouco começam a surgir respostas de abordagens interdisciplinares que unem história, arqueologia, psicologia e evolução — sim, evolução darwinista mesmo. Pode parecer uma parceria improvável, mas introduzir um toque evolutivo em explicações sobre fenômenos culturais é muito eficiente. A expansão viking pode estar ligada a sistemas de casamento que operavam na cultura nórdica na época, como a poliginia, um tipo de poligamia, em que homens podem se casar com mais de uma mulher.
Por uma história interdisciplinar dos vikings
Sei que tecnicamente nem todos os nórdicos eram vikings. Mas nesse texto vou usar nórdico e vikings como sinônimos.
O fato é que esses guerreiros e navegadores lendários possuem legados desconhecidos, apesar do seu lugar cativo no imaginário popular. Foram, possivelmente, os “descobridores” do Novo Mundo.
A língua inglesa deriva do Old Norse, nórdico antigo — aquele presente no poema Beowulf — e do Anglo saxon, com pequenos resquícios de línguas célticas.
A Copa do Mundo de 2018 aconteceu na Rússia, mas passa desapercebido de todos que o nome “Rússia” vem do termo Ródr’, que mais tarde virou Rus’ e outras variações, que se referiam aos remadores em uma série de idiomas do leste europeu. Parece que os próprios nórdicos se referiam a si mesmos como Rus quando estavam longe de sua terra natal.
Sabe-se pouca coisa sobre quem eram os vikings, mas sabe-se ainda menos sobre o que motivou sua saída da Escandinávia, seja para ameaçar a Europa cristã, seja para realizar trocas culturais e comerciais com árabes e outros povos a leste e oeste.
Esse buraco provavelmente não vai ser preenchido sozinho pela história ou pela arqueologia. É preciso um pouco mais de “consilence“, isto é, explicações interdisciplinares que oferecem modelos mais eficientes para responder determinada questão.
A psicologia é por excelência uma área interdisciplinar por estar no meio termo entre dois grandes reinos epistemológicos: a biologia e o ambiente. Estudar o comportamento é estudar como organismos são afetados pela sua própria constituição biológica, e como o ambiente cultural, social e ecológico no qual estão embebidos geram, no final das contas, o tal do comportamento. Um olhar baseado na evolução parece ser especialmente sensível a essa necessidade de unir numa explicação coesa todos esses fatores.
Esse olhar evolucionista pode ser uma boa forma de alinhavar explicações históricas, etnográficas e arqueológicas. Em linhas gerais, explicações evolucionistas enxergam os fenômenos por um ângulo de análise distal, isto é, o fenômeno é explicado levando em conta sua função. Função tem sempre a ver com evolução, e modelos explicativos evolucionistas fazem análises quantitativas para verificar se a variação de uma determinada característica gera mais ou menos sucesso reprodutivo.
Acrescentar essa esfera distal de explicação, junto com a esfera proximal (e.g. cultura) pode esclarecer o porquê da saída dos vikings da Escandinávia. Pelo menos é nisso que acreditam o arqueólogo especializado em história dos povos escandinavos, Ben Raffield, e o antropólogo Mark Collard, segundo um artigo de 2017. E, aparentemente, tudo isso teria a ver com a poligamia nórdica.
Você não iria querer viver na poligamia viking
Segundo os autores, essa empreitada teria sido um resultado de um timing complexo entre momento histórico, condições ecológicas e padrões culturais. Segundo as evidências apontadas no artigo, há motivos para supor que as primeiras expedições vikings foram motivadas por escassez de recursos.
A atual escandinávia era um lugar muito frio e de terreno pouco fértil. Era difícil plantar. Grande parte dos recursos (e.g. terras e ouro) disponíveis eram monopolizados por líderes extremamente poderosos. Além disso, esses poderosos concentravam outra fonte de disputas: mulheres. Quanto mais poderoso, maior seu harém. Os vikings que resolveram executar o plano em direção ao desconhecido eram em sua maioria homens atrás de riquezas e…mulheres.
É o que acontece em sociedades políginas — em que homens podem casar com mais de uma mulher. Poucos homens vão acumular muita riqueza e mulheres, o que acaba aumentando a competição tanto por recursos quanto por mulheres (isso não significa que conscientemente as pessoas saibam dessas dinâmicas, é apenas um padrão populacional que se revela).
Você deve estar pensando que isso é machismo puro, que mulheres não são objetos para que homens corram atrás delas! Bom, você está certíssimo! Mas, se hoje ideais progressistas não são lá o mainstream, imagina naquela época.
Que absurdo! Os vikings eram tão igualitários que as pessoas eram mais livres sexualmente e existiam até mulheres guerreiras e líderes de exércitos e clãs inteiros! Eu sei disso porque conheço a Lagaertha, de Vikings! (não sei se existem acadêmicos que defendem isso, mas é o sentimento que a internet passa)
Você está certíssimo novamente! Cadáveres de escandinavos mortos nas terras cristãs mostram que havia mulheres entre os guerreiros. Escritos nórdicos também parecem mostrar que existiam mulheres no comando. Mas o grosso ainda era de homens. E também é verdade que existiam diferenças no papel social da mulher em comparação com a Europa cristã. Mas dificilmente esse “diferente” se traduz numa panacéia feminista — pelo menos segundo os autores do artigo.
Isso é o esperado de uma sociedade poligâmica.
Indícios mostram que as sociedades do norte eram políginas e ainda aceitavam um sistema de concubinato. Homens poderiam se casar com mais de uma mulher, e também ter um relacionamento não oficial com outra mulher, ou não ser casado de forma alguma e se relacionar com uma mulher não oficialmente — é bom observar que não existe consenso sobre no que consistia exatamente a prática do concubinato naquela época.
Essas mulheres poderiam casar por vontade própria ou não. Muitas eram capturadas em sociedades rivais para virar escravas — às vezes sexuais também. Mas o concubinato permitia que elas pudessem virar esposas mais tarde, oficialmente ou não. Por exemplo, The Saga of the People of Laxardal e The Saga of the People of Vatnsdal são explícitas em citar reis que tinham numerosas mulheres, e homens que compravam (ou roubavam) mulheres em suas viagens e as levavam para a terra natal.
Depois da conversão ao cristianismo, os nórdicos preservaram suas práticas amorosas, digamos, pouco cristãs. A cultura nórdica também parece ter sido mais permissiva com adultérios (inclusive de mulheres) do que as sociedades cristãs. Tanto que na Idade Média muitas leis dirigidas aos cristãos nórdicos proibiam a poligamia e o concubinato e condenavam o adultério, o que indica que eram práticas comuns.
Como se formam sociedades poligâmicas?
Bom, as pessoas não nascem já monogâmicas, poligâmicas ou o que for. Os seres humanos são muito flexíveis e por isso esses modelos de relacionamento emergem diante de influências individuais e ambientais. Isso acontece de tal modo que estatisticamente é possível montar padrões.
Por exemplo, sociedades poligâmicas parecem emergir em lugares onde há mais homens que mulheres — o que parece valer para primatas em geral. Além disso, a poliginia, especificamente, parece ter deixado marcas perenes no Homo sapiens não só no âmbito físico, mas também cultural. Há um leve dimorfismo sexual na espécie humana, ou seja, homens e mulheres são levemente diferentes: por exemplo, homens tem mais massa muscular, maior altura e maior força física do que mulheres. Há até pesquisadores que acreditam que as tradições monoteístas se inspiraram na poliginia, com um homem, um macho alfa, detendo grande poder e monopólio da violência no grupo.
Culturas poligâmicas tendem a ser mais agressivas, violentas, a ter mais guerras e mais mortes nos conflitos (veja aqui evidências conflitantes) — daí o dimorfismo sexual: se os homens competem mais entre si, rola uma pressão seletiva para que fiquem mais fortes e fisicamente assustadores.
Essas competições ocorrem por status social. Isso porque quanto mais riqueza, mais status social. E quanto mais status social/riqueza, mais esposas um homem pode ter — é sempre uma minoria que pode ter várias esposas, por isso mesmo em sociedades poligâmicas a monogamia é a forma de relacionamento mais comum.
Contextos assim geram pressão especialmente sobre os homens para monopolizar o máximo de recursos e mulheres que puderem. Homens sem riqueza suficiente para comprar dotes de várias esposas tentam roubar mulheres, nem que seja para serem escravas sexuais. A competição é uma constante. É de quem chegar primeiro.
As mulheres sofrem as consequências disso, para o bem e para o mal. Elas podem dar a sorte de serem desposadas por um cara rico, e elas podem ainda ser a número um do harém. Mas o risco do fim das mordomias de primeira esposa sempre existe, já que esposas bem mais jovens podem chegar e roubar seu lugar.
Conclusão, sociedades políginas são muito mais desiguais do que sociedades monogâmicas. Sociedades monogâmicas parecem ser menos violentas e ter menos crimes do que sociedades políginas. Pode parecer meio estranho, mas estatisticamente existe correlação (não implica causalidade) entre nível de criminalidade e número de homens solteiros. Sociedades políginas têm mais homens solteiros e níveis bem mais altos de criminalidade.
Um exemplo concreto dessas relações estatísticas é a comunidade de mórmons. O nível de competição intrassexual masculina diminuiu drasticamente quando o governo americano impôs limites à poliginia praticada pelos mórmons no século XIX. (Para uma extensa revisão sobre diferenças entre esses sistemas sociais de casamento, clique aqui).
Os ataques vikings ampliaram a oferta e procura no mercado amoroso
Mas o que se faz quando há escassez de recursos e acessá-los começa a ser cada vez mais difícil, já que existe muito na mão de poucos, e quase nada na mão da maioria? Tentar a sorte no além-mar não parece nada mal.
Aliás, os vikings não são nem os primeiros a sair atrás de aventuras nesse tipo de contexto. Os Yanomamö invadem outras tribos com os mesmos objetivos: roubar recursos e levar mulheres como escravas.
Quem viu Vikings sabe que a saga de Ragnar começou com a promessa de terras e fortuna em terras desconhecidas a oeste. Se ele achasse esses tesouros, tomaria o lugar do Earl que dominava a região — um homem que conseguiu monopolizar muitos recursos e virar uma espécie de senhor feudal local (muitas aspas aqui hein).
Matá-lo seria uma opção, mas não uma boa ideia, pois seu exército provavelmente era tão grande quanto seu ouro e terras pudessem comprar.
Por que sistemas de casamento e estratégias reprodutivas têm a ver com evolução?
Você deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com interdisciplinaridade e com teoria da evolução, todo aquele papo que eu disse no início do texto.
Acontece que essas associações previsíveis entre proporção entre homens e mulheres, disponibilidade de recursos, níveis de agressividade e criminalidade, e surgimento de diferentes sistemas de casamento são associações estatísticas previstas por teorias evolucionistas. O sucesso explicativo dessas teorias é tão alto que associações semelhantes são observadas em insetos, crustáceos, peixes, serpentes, aves e mamíferos.
A teoria em questão aqui é a teoria do mercado amoroso (mate market). Essa teoria não se chama mercado amoroso à toa. Utiliza-se um raciocínio parecido com a lógica de mercado: os agentes vão competir mais por recursos mais raros, porque raridade implica maior valor.
Antes de imaginar o quão desconfortável é pensar em pessoas como recursos, é bom ter em mente que essa teoria foi feita para explicar fenômenos populacionais, não individuais. É uma abstração para tratar dados quantitativos, dinâmicas populacionais.
A analogia é que, como vimos, o sexo em menor quantidade — mais raro — numa população vai ser mais disputado pelo sexo em maior quantidade, que por sua vez vai competir mais entre si. A maior competição significa maior engajamento em comportamentos de risco, daí a elevação da violência e do crime.
Culturas com essas configurações não parecem ser as mais agradáveis para as mulheres. Na medida em que existe muito mais homens do que mulheres, estar casado significa estar em posse de recursos raros e altamente desejados. Por isso é muito comum que grandes impérios históricos tenham haréns vigiados por funcionários especialmente habilitados para o cargo — eunucos que não representem perigo.
Guardas eunucos vigiam as esposas do imperador de ameaças externas e ao mesmo tempo eles mesmos não representam ameaça alguma. Além disso, nessas configurações sociais, a violência contra a mulher acaba sendo outra estratégia usada para se prevenir contra possíveis puladas de cerca — sempre me pergunto por que esses caras não pensam que tratar bem seria uma estratégia muito melhor.
Esse texto foi uma tentativa de explicar o que motivou as invasões vikings no século VIII. Segundo o que defendem os autores do estudo original, a poliginia e o concubinato existentes na região naquela época geraram uma quantidade de homens muito maior que a de mulheres na população. Isso dificultava os casamentos e a ascensão social masculina necessária para casar, especialmente com mais de uma esposa. O resultado disso foi o engajamento de homens mais desfavorecidos socialmente em práticas de alto risco, como adentrar o mar rumo ao desconhecido atrás de riquezas. Depois de um tempo, as invasões viraram uma maneira da elite assegurar seu próprio status social — o que também se encaixa muito bem no que é esperado de homens monopolizadores de uma sociedade polígina altamente competitiva.
Esses achados mostram que os seres humanos não respondem separadamente a variáveis que vêm da cultura e da biologia. Mais do que um interacionismo entre entidades separadas, os seres humanos são sistemas biológicos que se desenvolvem individual e culturalmente junto com o ambiente, seja na forma de variáveis ecológicas ou culturais. Por isso, o entendimento cada vez mais acurado dos fenômenos deve levar em conta esse aspecto.