Quando David Julius, pesquisador na Universidade da Califórnia – São Francisco – precisa de novos lotes de veneno, ele geralmente liga para um australiano. O que faz todo sentido, o país está literalmente infestado de animais venenosos. Julius possui centenas de amostras, caixas sobre caixas contendo frascos com venenos de aranhas, escorpiões, cobras e até mesmo de algum ornitorrinco ocasional. Uma geladeira cinza em seu laboratório mantém toda a coleção refrigerada a -80º Celsius.
Durante a última década, ele e sua equipe pesquisam a vasta biblioteca dos venenos com o objetivo de descobrir novas toxinas. Não que eles queiram envenenar alguém, muito pelo contrário. Julius é um fisiologista que estuda a dor, e as toxinas desses venenos fazem o corpo humano sofrer de maneiras diferentes. Ao analisar sobre como e onde essas toxinas atacam as diferentes partes do sistema nervoso, ele e sua equipe tentam encontrar algumas que poderiam ser utilizadas para o desenvolvimento de analgésicos mais eficientes.
A dor é a reação do sistema nervoso a determinados estímulos. Há, portanto, diversas maneiras de sentir dor. Existe a dor que ocorre quando você se queima ou mergulha em água gelada, classificadas como dores térmicas. Existem as dores químicas, como aquela que ocorre quando o ácido lático acumula-se nas pernas durante uma corrida. Há, também, as chamadas dores mecânicas, aquelas que sentimos quando levamos uma pancada naquela partida de futebol. Ou quando uma tarântula gigante afunda suas presas em nossa mão e, como se não fosse o suficiente, depois ainda presenteia nosso sistema nervoso com suas doses de veneno.
Aterrorizante? Sim. Mas os venenos são especialmente úteis para a investigação da dor, porque eles estão cheios de centenas de toxinas, que reagem aos diferentes tipos de sistemas nervosos. “Basicamente, eles estão procurando novas maneiras de infligir dor”, diz Chris Ahern, um biofísico da Universidade de Iowa.
Julius e sua equipe isolaram dois tipos de toxinas do veneno de uma tarântula chamada de Heteroscodra maculata, e identificaram que elas provocam dores mecânicas, que é o que nós sentimos quando nosso corpo fica bem comprimido ou tenso.
As chaves aqui são os chamados canais de sódio, estruturas moleculares existentes nas membranas dos neurônios, que permitem a essas células o envio de sinais elétricos que acionam todos os tipos de respostas do sistema nervoso, incluindo a dor. Uma vez que esses canais são tão importantes para o normal funcionamento do sistema nervoso, alguns venenos evoluíram para desorientá-los. Algumas toxinas agarram-se aos canais de sódio e não os soltam, o que acaba sobrecarregando os nervos. Outras, como a tetrodoxina dos baiacus, simplesmente desligam esses canais, causando paralisia. Daí a importância de você só comer baiacus em restaurantes que tenham o certificado de preparo desses peixes (ou simplesmente não comer, o que acho bem mais seguro).
As toxinas das tarântulas, no entanto, visam um tipo muito específico de canais de sódio. Uma vez que os cientistas descobriram isso, puderam deduzir que esses canais podem controlar a dor mecânica. Essa ligação pode ser a chave para o desenvolvimento de novos analgésicos. “Os cientistas antes negligenciavam os canais de sódio, ignoravam as nuances entre os nove tipos de canais, mas essas nuances são muito importantes. É uma espécie de renascimento para os canais. As empresas farmacêuticas iriam gostar de direcionar os canais de sódio especificamente para chegar a alguns tipos de dor e outros não”, diz Ahern.
No entanto, o laboratório de Julius não está interessado em analisar toxinas que podem ser clinicamente promissoras. Ele e seus colegas têm a intenção de descobrir como é que funciona a dor. Claro, eles vão estar profundamente atentos para qualquer descoberta médica que possa ter se originado das suas pesquisas, mas eles estão pesquisando este material porque, bem, é legal. Por que você não iria querer saber tudo sobre venenos?
Ainda assim, o trabalho é eminentemente prático. “A dor é universal”, Julius aponta, “E é algo que todo mundo é visceralmente interessado. Em um nível fundamental, ela molda como nós experimentamos o mundo”. Embora a experiência de uma picada de tarântula possa ser uma que você queira ficar a um mundo de distância.