Oi, pessoas! Bom aí? Bom aqui. Para o texto de hoje, eu convidei a Dani Almeida, redatora aqui do Deviante, para falar junto comigo! E foi maravilhoso! Espero que vocês gostem de ler nosso texto, como gostamos de fazê-lo. Vamos lá?

Você, leitor (a), gosta de ouvir estórias? E contar estórias? Já parou para perceber quais (e quantas) histórias e estórias nos são contadas e contamos ao longo da vida? E, afinal, por que sentimos essa necessidade?

Aristóteles dizia que a função da tragédia é provocar a catarse; Bergson atribuía à comédia a função de reprovar a vaidade e outras tendências que ameaçassem a adaptação da sociedade; Freud tratava o ‘contar histórias’ como preenchimento de desejo indireto ou defesa contra o autoconhecimento; Eliade alegava que a função do mito era validar o significado da existência humana. (1) As narrativas estão presentes e são objeto de discussão há muito tempo. Então, não será neste texto que vocês encontrarão uma resposta ampla e definitiva. Aliás, seria muito sem graça achar uma resposta apenas… para qualquer pergunta que seja!

Gostaríamos de abordar aqui a relação das narrativas com as representações de uma sociedade, mas antes de qualquer coisa, que tal tentarmos uma definição de representações sociais? Serge Moscovici (3) as define como “[…] sistema de valores, ideias e práticas com a dupla função de convencionalizar o mundo e serem prescritivas” (2003, p. 05). Basicamente, elas são uma forma de tentar entender “o novo”, ou seja, transformar aquilo que nos é estranho em algo familiar ou entendível, usando para isso o conhecimento anterior que já temos – o senso comum.

Quando estudando essas narrativas ao longo da história, podemos, então, entender o senso comum de determinado grupo social; entender o seu pensamento e suas representações sociais. São essas representações, localizadas em um espaço e em um tempo histórico, que ditam dentro de uma sociedade o que é belo, bom, certo… normal em determinado momento histórico.

Robert Darton (3), por exemplo, estudou o universo mental do homem comum da França do século XVIII através das narrativas (antes orais) que foram compiladas em Mamãe Ganso. Aliás, vocês sabiam que é super comum hoje historiadores usarem a literatura como fonte primária para entender o pensamento de uma época? Bom, não se analisa historicamente apenas um texto e tira-se dele todo um aparato de certezas. São vários fatores que são levados em consideração, mas quando analisa vários contos, Darton consegue ver neles representados comportamentos e identidades da época. Vejam só: as crianças, por exemplo, não eram vistas como as crianças de hoje. Primeiro porque eram vistas como mão de obra; um filho ou uma filha que não trabalhasse era um fardo. Isso foi retratado em vários contos, como alguns da Cinderela. O sexo também era visto de forma diferente, não como tabu, falava-se mais livremente. Isso tudo porque cada época histórica traz consigo conhecimentos diferentes que vão contribuir para dissolução de algumas representações para o surgimento de novas.

As representações sociais são formadas por dois universos: consensual, que seria fruto dos conhecimentos do senso comum, adquiridos no cotidiano; e o reificado, fruto do conhecimento científico. É tipo um remédio, que um dia algum curandeiro descobriu que tal planta curava tal coisa, e depois cientistas isolam o princípio ativo. Mas, diferente do remédio, em que predomina o conhecimento reificado, científico, nas representações sociais geralmente o peso maior está no senso comum, que é o que usamos de base nas primeiras interações com o desconhecido.

E a nossa época? O que as nossas narrativas dizem sobre a nossa realidade? Quais são os comportamentos e características que são reforçados e quais são marginalizados? Todas as vezes que contamos uma história nos baseamos em um conhecimento compartilhado dessas representações para descrevermos pessoas e comportamentos. O mais maluco é que absorvemos essa narrativas o tempo todo e reproduzimos tanto discursos como comportamentos esperados pela sociedade, muitas vezes, sem nem nos darmos conta (= senso comum).

Hoje, talvez, alguns dos exemplos que trarei já sejam mais óbvios, mas nem sempre o foram. Na verdade, serem óbvios é um sinal maravilhoso de que já há uma mudança acontecendo. O problema está nas narrativas em que não enxergamos problema nenhum. Quando eu, Debbie, era pequena, nenhuma princesa era negra. E ninguém nunca tinha falado sobre isso. Era normal. Assim como, quando eu era pequena, todas as princesas aguardavam ser salvas por um príncipe encantado. E ninguém contestava. Era normal. Hoje já tivemos uma princesa negra na Disney e uma princesa dos cabelos assanhados que não queria se casar. Tudo isso mostra, dentro das narrativas, uma mudança de mentalidade da sociedade.

Vale lembrar que toda representação social está ancorada em algum lugar. Então, ao “jogar essa âncora” estamos fazendo juízo de valor, rotulando coisas, pessoas ou comportamentos como forma de tentar entender o diferente. Dessa forma, podemos prender nosso barquinho da representação em vários lugares diferentes: conhecimento religioso, científico, aprendizados familiares, morais, a junção de tudo isso… o cais é grande, são muitas vagas e você pode parar em mais de uma! Conforme os tempos e normas sociais vão se alterando, os nossos lugares de ancoragem vão mudando junto.

Mesmo com essas mudanças citadas acima, há comportamentos que ainda são esperados da gente. Seja você solteira (o) ou casada (o), por exemplo, há expectativas sociais a serem cumpridas quanto à formação de uma família, e à profissão e ao corpo… e a mais um monte de coisas.

Crescemos silenciosamente imersos nessas expectativas sociais que se apresentam nos contos infantis, desenhos animados, histórias em quadrinhos, filmes, séries, livros, mas também em discursos religiosos, almoços de família e propagandas e até mesmo em processos judiciais (estes últimos eventualmente ganharam um texto só para eles, então focarei nos outros). Por isso a dificuldade de enxergar certos estereótipos que devem ser rompidos: somos criados tendo eles como modelo. Você duvida?  Vou fazer umas perguntas e gostaria que tentasse responder rapidamente:

Quando famílias felizes são retratadas nos discursos que citei acima?

Quantas delas são negras?

Quantas delas são de casal homoafetivo?

Quantas delas só tem ou o pai ou a mãe?

Quantas delas não têm filhas (os)?

Quantas delas têm pessoas gordas que não façam o papel da pessoa engraçada?

Quantas delas têm pessoas que usam óculos sem serem nerds?

Quantas delas podemos inferir que o pai ou a mãe são pobres?

Quantas mostram um parente ou protagonista com transtorno mental/ sofrimento psíquico?

Essas respostas apontam para o que seria a representação de uma família feliz na nossa sociedade. Elas ditam o “espectro de normalidade” que marginaliza (deixa à margem) boa parte da população. Parte das angústias que vivemos está em tentarmos nos encaixar completamente nesse espectro. Sou bonita(o), mas não sou bem sucedida(o); sou bonita(o) e bem sucedida(o), mas não sou casada(o); sou bonita(o), bem sucedida(o), casada(o), mas não tenho filhas(os), e por aí vai.

Quando você vê a discussão sobre representatividade, é exatamente isso que se está questionando. Quanto mais pessoas diferentes forem representadas, não em situação de superação de algo ruim, mas como felizes independente de como são fisicamente, de quem amam ou da profissão que escolheram, melhor para todas as pessoas! A diversidade representada nas produções culturais é importantíssima para questionar nossas representações sociais atuais, pensando se elas correspondem ao arranjo social atual, além de ser um modo de tentar diminuir a desigualdade gerada pela marginalização do diferente.

Por exemplo, alguém que usa o cabelo crespo e se recusa a alisá-lo somente para atender pressões sociais, além de adotar uma posição de resistência, questiona a representação social do que seria um cabelo ideal. Um gesto aparentemente pequeno, mas de grande significado para pessoas que já foram marginalizadas por ter um cabelo crespo (seja através de discursos racistas ou até mesmo com poucas opções de produtos específicos para essa fibra capilar – o que tem mudado atualmente).

Vamos repensar nossas narrativas? Vamos reinventar nossas narrativas? Todo mundo sai ganhando com isso.

Sugestões de narrativas: Greenleaf da Netflix é um seriado de protagonistas negros.  Em Atypical, também da Netflix, o protagonista tem autismo. Master of None, na Netflix, é uma comédia protagonizada por um ator indiano nos Estados Unidos, questionando exatamente os estereótipos do ramo. Eu, tu e ela coloca em cheque a forma de amar.

Só por curiosidade, coloco aqui uma versão de Chapeuzinho Vermelho retirada do livro do Darton:

Certo dia, a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de pão e de leite para sua avó. Quando a menina ia caminhando pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se dirigia.

– Para a casa de vovó – ela respondeu.

– Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou o das agulhas?

– O das agulhas.

Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue em uma garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo em uma travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na cama, à espera.

Pam, pam.

 – Entre, querida.

– Olá, vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e leite.

– Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. Há carne e vinho na copa.

A menina comeu o que lhe era oferecido, e enquanto o fazia um gatinho lhe disse: “Menina perdida! Comer a carne e beber o sangue de sua avó!”

Então o lobo disse:

Tire a roupa e deite-se na cama comigo.

– Onde ponho meu avental?

– Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.

Para cada peça de roupa – corpete, saia, anágua e meias – a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia:

– Jogue no fogo. Você não vai mais precisar dela.

Quando a menina se deitou na cama, disse:

– Ah, vovó! Como você é peluda!

– É para me manter mais aquecida, querida.

– Ah, vovó! Que ombros largos você tem!

– É para carregar melhor a lenha, querida.

– Ah, vovó! Como são compridas as suas unhas!

– É para me coçar melhor, querida.

– Ah, vovó! Que dentes grandes você tem!

– É para comer melhor você, querida.

E ele a devorou.

 

 

  • AMSTERDAM, Anthony G.; BRUNER, Jerome. Minding the Law – how courts rely on storytelling, and how their stories change the ways we understand the law – and ourselves. Massachusetts: Harvard University Press, 2002.
  • DARTON, Robert. O grande massacre dos gatos – e outros episódios da história cultural francesa. São Paulo: Ed. Graal, 1986. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2014
  • MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003.

 

Daniele Almeida

Estudante de Psicologia na UFAL – Pólo Palmeira dos Índios e entusiasta dos memes da interwebs.