Vinte e sete pessoas mortas. Rostos amassados. Mãos, joelhos e costelas quebradas. Uma grávida amarrada e deixada para morrer no chão de um belo lago do Quênia. Pode parecer uma cena atual, afinal a África subsaariana vem sofrendo há anos com grupos terroristas e fundamentalistas que protagonizam a pior onda de conflitos armados desde a descolonização, na década de 60 e 70.
Grupos como o Boko Haram na Nigéria, a Al Qeada no Magrebe islâmico e o Al Shabab na Somália, além de promover massacres e atentados, fomentam o aumento da repressão governamental em diversos países africanos. Isso significa a violação deliberada de liberdades individuais e direitos humanos da população por seus governantes.
Mas, felizmente ou não, essa matança foi um quadro pintado por caçadores-coletores há mais de 10 mil anos. O “ou não” pode parecer cruel, afinal temos mais empatia por nossos companheiros de espécie que vivem em nossa era, mas não é. Se fosse um caso atual poderíamos traçar uma série de possíveis causas modernas que, por óbvio, nossos amigos coletores não tinham. Assim, quem sabe, pensar que de algum modo somos bons em nosso estado natural, como disse Rousseau. Não é o caso.
Essa talvez seja a mais antiga evidência de um massacre humano. Foi encontrada num sítio arqueológico próximo ao Lago Turkana, Quênia. Um lugar chamado notting hill Nataruk.
Pesquisadores da Universidade de Cambridge registraram os fósseis de 27 indivíduos, incluindo pelo menos 8 mulheres e 6 crianças. Doze esqueletos estavam relativamente completos, e 10 desses mostravam claros sinais de morte violenta: traumas por força bruta (provavelmente causado por um tipo de porrete) na parte de cima da cabeça e nas maçãs do rosto (zigomático); costelas, joelhos e mãos quebradas; pedaços de rochas afiadas (usados provavelmente em lanças) alojados no crânio e no tórax. Ou seja, a surra foi feia.
Outros 4 estavam em posições que indicam que suas mãos foram amarradas. Inclusive, foram recuperados os ossos de um feto (6 a 9 meses) de dentro da cavidade abdominal de uma mulher achada com os joelhos quebrados e com as mãos e pés amarrados. Provavelmente, foi deixada nessa posição ainda viva, quando o grupo agressor terminou o serviço.
“Esses fósseis registram a morte intencional de um pequeno grupo de coletores e fornece evidência única de que a guerra foi parte do repertório nas relações entre grupos de caçadores-coletores pré históricos”, afirma a paleoantropóloga Marta Mirazon, que dirige o projeto IN-AFRICA e lidera o estudo sobre Nataruk, publicado na Nature.
Recursos demais e proteção de menos
Segundo os pesquisadores esse pode ter sido um conflito por recursos, visto que essa área, em volta da lagoa, seria um ótimo lugar de moradia. Hoje, é uma região desértica, mas há 10 mil anos era uma região abundante com fácil acesso a água potável e pesca. Consequentemente, era uma posição cobiçada. Além disso, a presença de objetos de cerâmica indicam provável armazenamento de alimentos.
O interessante é que noutros achados arqueológicos do encontro entre grupos de caçadores-coletores “rivais”, geralmente resultava em alguns homens mortos, mulheres e crianças incorporados pelos vencedores. Porém, aparentemente, em Nataruk ninguém foi poupado.
Evidências reforçam que foi um grupo externo que promoveu esse massacre, como os 3 artefatos encontrados dentro de 2 dos fósseis. Eram pedaços de obsidiana (rocha vulcânica) afiada, provavelmente restos de uma lança. O ponto é que esse tipo de rocha raramente é encontrada em sítios arqueológicos dessa região.
Portanto, talvez, embalados pelo dito popular de que “antigamente não era assim tão violento [quanto hoje em dia]”, entraremos num regresso mental ad infinitum à procura de tempos de paz.
Ou não…