A grande maioria das pessoas conhece os efeitos danosos de drogas como o álcool. Mesmo assim, além de beber constantemente, muitos ainda ostentam tanto seu consumo quanto às suas consequências (e.g. sintomas de ressaca). Falta de instrução não parece ser o problema. Precisamos de uma abordagem interdisciplinar para entender esse hábito profundamente. Curiosamente, entender por que pavões ostentam rabos chamativos por aí pode ser parte do porquê gostamos tanto não só de ingerir bebidas alcoólicas, mas também de ostentar isso por aí. O ritual social em torno da ingestão de bebidas alcoólicas pode nos levar por um passeio pela evolução humana.

Álcool, o melhor amigo do homem

As pessoas consomem grandes quantidades de bebida alcoólica. Na alegria e na tristeza, o álcool se faz presente para celebrar e para consolar. A julgar pela quantidade de milênios que parece fazer parte da vida dos Homo sapiens, o álcool é o melhor amigo do homem, não o cão.

Apesar de trazer benefícios informais, o álcool pode causar problemas indigestos. Por exemplo, as bebidas alcoólicas parecem favorecer a vida social de indivíduos em qualquer faixa etária. Desde o tiozão do jantar em família tendo que aguentar o sobrinho adolescente, até o sobrinho adolescente tendo que aguentar o tiozão, o álcool dá aquela amenizada na convivência. Também serve como “coragem líquida” para chegar em alguém na balada.

Hábitos ébrios também parecem favorecer a sexualidade. Quem bebe tem mais chances de ter sexo sem compromisso. Por exemplo, mulheres que bebem (e que fumam também) são consideradas mais atraentes para relações pouco compromissadas, e elas também, de fato, se interessam mais por esse tipo de relação. Para quem curte esse modelo de relação, não deixa de ser um ponto a favor do álcool.

Esse gráfico mostra o quanto a quantidade de álcool ingerida faz uma pessoa ser considerada bom partido para relações mais compromissadas ou menos compromissadas. Homens, no geral, são vistos como mais dispostos a relações menos compromissadas, enquanto as mulheres, a relações mais compromissadas. E para ambos, quanto maior a quantidade de álcool ingerida, mais visto como disposto a relações menos compromissadas. Fonte: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1474704917707073

Mas abusar também pode trazer inconvenientes como coma alcoólico e reações diversas de intoxicação (a famosa ressaca). Pasme, o consumo de álcool está associado a mais de 20 doenças. Em casos mais raros e extremos pode até aniquilar sua memória, caracterizando a chamada síndrome de korsakoff. Isso sem contar os danos indiretos, como o risco de dirigir bêbado. Ah, para completar, estudos mais recentes estão refutando aquela história de que consumo moderado de álcool traz certos benefícios para a saúde.

Por que, então, pessoas de todas as idades bebem tanto?

Não é tão difícil especular uma série de razões, como a fuga da realidade ou a perda de timidez, ou mesmo o aumento intencional das chances de fazer sexo. Talvez seja só vício também. Ou a estética da sensação, o famoso “gosto porque gosto”.

Pesquisas recentes vêm tentando explicar esse fenômeno de maneira mais sofisticada. Os rituais sociais relacionados à ostentação do consumo de bebida alcoólica pode ter relação com mecanismos moldados ao longo da evolução de diversas espécies.

Entender o surgimento desse tipo de mecanismo evolutivo requer bem mais informação sobre evolução do que o feijão com arroz que aprendemos no colégio. Sendo assim, o que você vai ler a seguir é um festival de subteorias que explicam mais detalhadamente o processo evolutivo, especialmente a seleção sexual, e outras teorias que esmiúçam seu funcionamento. Espero que nesse caminho fique claro, também, porque estou indo além dos motivos mais óbvios e cogitando razões evolutivas para uma prática tão cultural quanto o álcool (se não ficar, nos vemos nos comentários).

Explicações evolutivas coexistem com explicações culturais

Qualquer traço, morfológico ou comportamental, pode ser estudado por dois pontos de vista, o da esfera de análise proximal ou o da esfera de análise distal1.

Considere um comportamento simples como o choro. Podemos explicá-lo invocando os estímulos ambientais que vão provocar o choro numa criança (e.g. fome ou medo). Podemos explicá-lo por meio dos mecanismos fisiológicos que o caracterizam (e.g. áreas do cérebro ativadas, comportamento dos canais lacrimais, lubrificação ocular, expressões faciais). Essas explicações podem ser reunidas no grupo das causas proximais do choro.

Podemos explicá-lo também invocando os motivos pelos quais o choro existe na espécie humana. Por que diabos choramos quando sentimos medo ou fome (no caso de bebês)? Essa é uma questão funcional. Precisamos de uma resposta evolutiva para respondê-la. Qual a função do choro? Qual vantagem fez ele ser selecionado ao longo da evolução? Isso caracteriza a esfera de análise distal.

O mesmo se aplica aos comportamentos. No presente caso, podemos questionar as causas proximais que fazem uma pessoa beber (e.g. reforço social, crise existencial, gosto estético), mas, também, se há alguma função evolutiva que possa explicar esse comportamento por outro ângulo de análise, o distal.

Classicamente, a biologia evolutiva é a área de estudo dessa esfera, mas no estudo do comportamento, outras ciências evolutivas entram em questão, por exemplo, etologia, ecologia comportamental e, mais recentemente, psicologia evolucionista2.

Homens e mulheres, moldados evolutivamente de maneiras distintas

Muito embora homens e mulheres tenham muito mais semelhanças que diferenças, suas diferenças são decisivas. Por exemplo, em média3, universalmente, homens tendem a preferir relações menos românticas, menos compromissadas; enquanto as mulheres tendem a preferir relações mais românticas e compromissadas. As mulheres também costumam ser mais seletivas que os homens quanto à escolha do parceiro amoroso.

Em relação aos critérios de atratividade, existem semelhanças e diferenças. Por exemplo, ambos atribuem enorme peso à inteligência e generosidade do parceiro, mas homens dão mais ênfase à beleza, enquanto as mulheres parecem ligar mais para o status social do parceiro. Essas diferenças existem especialmente no contexto de relações mais compromissadas.

Quando os participantes têm maior preferência por relações menos românticas (“ficar”, sexo sem compromisso e etc), tudo muda. Ambos os sexos passam a considerar mais fortemente a aparência dos parceiros. Mulheres passam a achar mais atraentes os homens com traços mais masculinos, e homens, mulheres com traços mais femininos. O mesmo acontece quando esse tipo de pesquisa é feita em culturas com diferentes índices de prevalência de doenças. Quanto maior o risco, maior a chance de mulheres preferirem homens com traços mais masculinos.

Esses padrões são explicados pela teoria do investimento parental.

Em várias espécies, machos e fêmeas arcam com diferentes custos para se reproduzir. Por exemplo, entre os mamíferos, as fêmeas passam meses de gestação e depois dividem seus recursos orgânicos para amamentar. Durante os meses de gestação, as fêmeas não podem se reproduzir. Os machos, por sua vez, investem apenas seu material genético. Eles podem continuar se reproduzindo a seguir. Biologicamente, assim, ter filhos é bem mais custoso para as fêmeas.

Isso faz toda diferença biológica. Por isso, machos e fêmeas são “programados” para considerar mais fortemente no parceiro as características que vão compensar seu próprio nível de investimento na prole4. Como machos investem menos, as fêmeas vão ser rigorosas na escolha de um macho que tenha sinais de saúde suficiente para pelo menos gerar uma prole saudável. Enquanto isso, os machos desenvolvem mecanismos custosos que compensam seu baixo custo reprodutivo.

A teoria do investimento parental esmiúça o que Darwin chamou, em 1871, de seleção sexual. Ele tentava explicar por que em várias espécies os machos pareciam ser visivelmente muito diferentes das fêmeas. Por exemplo, o pavão com sua plumagem colorida e sua cauda barroca, eclipsando a minimalista aparência da fêmea.

Quanto mais saudável o macho, maiores as chances de ter também filhos saudáveis. A qualidade de sua cauda é a melhor pista que a fêmea pode ter de que está acasalando com um macho que vale a pena. Ela vai investir muito, mas em retorno o macho paga com seu bom material genético. Uma prole saudável fica garantida assim. A escolha das fêmeas funciona como pressão seletiva, fazendo com que os pavões que geram mais descendentes sejam aqueles com a plumagem mais extravagante.

Em relação aos seres humanos o cenário é mais complexo. Para início de conversa, o que foi descrito até agora vale para espécies não-monogâmicas. Nesses casos, como os casais não permanecem juntos e depois da cópula investem quase nada na prole (por mais que o investimento feminino seja maior que o masculino), faz todo sentido biológico que os critérios de atratividade estejam associados a sinais visuais implicitamente ligados à saúde do indivíduo. Só vale a pena que o macho pague seu menor custo com uma moeda que seja eficiente sem sua presença. Daí a eficiência dos “bons genes” (vale ressaltar que o macho também tem seu próprio conjunto de critérios, também associados à boa saúde/fertilidade/”bons genes” da fêmea).

Embora os seres humanos sejam predominantemente monogâmicos5, existem outras configurações de relacionamentos. Enquanto pavões estão no extremo do relacionamento não-monogâmico, e alguns roedores (e.g. Microtus ochrogaster) estão no extremo do relacionamento monogâmico, o ser humano fica no meio termo. Temos adaptações para nos envolver em relacionamentos mais e menos monogâmicos.

As diferenças estatísticas típicas nos critérios de homens e mulheres se mostram nas relações de longo prazo, mais monogâmicas. Atribuir maior atratividade a homens com alto status faz todo sentido biológico porque, em relacionamentos mais longos e compromissados, vai ser compensador que o homem compense seu baixo investimento parental ajudando a prole com recursos. Quanto maior o status social, mais chances têm disso acontecer.

Mas existem mulheres que fogem à média típica do sexo feminino. São mulheres que têm maior preferência por relacionamentos curtos, pouco compromissados. Elas acham mais atraentes homens com sinais mais intensos de masculinidade. Isso faz sentido, já que em tese elas não terão uma relação longa o suficiente para precisar de investimento na forma de recursos. Em relações assim, a melhor forma de investimento são os bons genes. As chances de sobrevivência da prole são aumentadas através da genética. E na espécie humana, no caso dos homens, sinais físicos mais masculinos estão associados a maior nível de testosterona, que por sua vez, se correlaciona com a saúde.

Outro ponto interessante é que quanto maior o nível de testosterona, maior o engajamento em comportamentos arriscados. Homens mais masculinos, por assim dizer, são mais imprudentes e mais violentos. O álcool pode ser considerado um desses comportamentos de risco.

Pode ser que o álcool não esteja relacionado aos níveis de testosterona. Homens e mulheres que preferem relações de curto prazo parecem beber mais e serem considerados como mais propícios a relações de curto prazo.

A semelhança entre a cauda do pavão e o consumo de álcool

A plumagem e a cauda do pavão, testosterona e álcool parecem estar ligados funcionalmente. Todos esses traços parecem ser típicos no contexto de relações não monogâmicas e todos parecem custar algo importante.

O pavão corta um dobrado para ter uma plumagem digna de chamar a atenção das fêmeas. Uma cauda gigante pode deixá-lo mais visível para seus predadores, além de dificultar uma possível fuga. Pavões muito sujeitos à contaminação também não poderiam ostentar uma frondosa cauda por muito tempo sem tê-la danificada por parasitas.

A testosterona, em níveis elevados, diminui a eficiência do sistema imunológico. Um homem que ostenta sinais intensos de masculinidade/testosterona tem um sistema imunológico bom o bastante para que sua imunidade continue dando conta do recado, mesmo afetada pelo efeito imunossupressor do hormônio. É como os ossos de adamantium do Wolverine. Seu fator de cura é tão potente que ainda o torna praticamente imortal, mesmo já operando em níveis reduzidos para dar conta da ação dos efeitos tóxicos do metal em seu organismo.

Levando em conta todos os efeitos prejudiciais do álcool, possuir hábitos ébrios parece requerer certa capacidade de arcar com seus custos também.

Outro ponto em comum em todos esses traços é sua presença em contextos de relações de curto prazo. Isso, de certa forma, corrobora o argumento do investimento parental, segundo o qual, no contexto de relações temporárias, seria adaptativo desenvolver mecanismos de sinalização de custo, especialmente para o sexo com menor investimento, mas não necessariamente.

Esses resultados mostram que os hábitos humanos, mesmo aqueles mais culturalmente específicos, podem ter uma raiz biológica profunda. Em outros termos, mesmo esses comportamentos podem funcionar de acordo com antigos cálculos biológicos moldados em tempos ancestrais para obedecer à lei do sucesso reprodutivo.

Mas é bom lembrar que raízes evolutivas não excluem causas culturais e individuais (proximais). Ainda faz sentido dizer que as pessoas bebem para facilitar a socialização ou apenas porque gostam do gosto e da sensação de uma cerveja. Mas esse tipo de explicação não diz nada sobre as funções dos comportamentos culturais.

 

1Hoje essa separação entre causas distais e proximais é considerada um artifício didático, não uma realidade de como a evolução age sobre os organismos.

 

2Daria para citar a sociobiologia nessa pequena lista, mas a visão mais rígida dessa área sobre a relação entre ambiente e biologia está sendo aos poucos deixada de lado por abordagens que dão um papel maior para a via de mão dupla entre ambos; assim, eu iria provocar a fúria dos leitores à toa, já que sociobiologia popularmente é sinônimo de eugenia, preconceito e determinismo biológico — apesar de na vida real, fora da mente dos críticos, não ser exatamente isso.

 

3Um texto justo para leigos em pesquisa quantitativa e psicologia evolucionista deveria conter um compêndium de informações estatísticas, só assim para internalizar a noção de que “média” não significa que todo homem prefere X, ou que toda mulher prefere Y

 

4O ambiente interfere no custo e benefício associado a essas variáveis. Por exemplo, em ambientes hostis, para as mulheres passa a compensar mais se reproduzir com homens que contribuam principalmente com bom material genético, não só com recursos (status social).

 

5Mesmo culturas que praticam poliandria ou poliginia, a maioria dos relacionamentos são monogâmicos.

Felipe Novaes, mestrando em Psicologia Social. Estuda a interface entre cultura e evolução. Gosta de reflexões mindblowing sobre filosofia da ciência e filosofia da mente, principalmente misturadas em doses de ficção científica. Acredita que Dataísmo pode ser  o futuro. Tentando aprimorar suas habilidades Jedi no aikido.