Faz basicamente um mês do lançamento da 4ª temporada de Black Mirror, na qual nos deparamos com um dos episódios mais distantes de nossa realidade atual (ou não). Sim, estou falando aqui do primeiro episódio dessa nova temporada, o USS Calister. Neste episódio nós acompanhamos um jogo de imersão em que era possível construir clones virtuais de qualquer indivíduo usando unicamente seu material genético. Uma simples análise de DNA permitia não somente copiar os traços físicos, como também a personalidade e as memórias. Neste momento, começa a frase típica desta série que já é usada para muitas outras coisas: Isso é tão Black Mirror. E como sempre, acompanhado das letrinhas subindo na tela, ficou o questionamento: nossa personalidade está de alguma forma ligada ao nosso DNA?
No senso comum, costumamos usar o termo “personalidade” de forma bem genérica. É comum ouvirmos frases do tipo “é o jeito de Fulano” ou “é a personalidade de Fulano”, quando notamos padrões no comportamento das outras pessoas. Tecnicamente, personalidade é um conjunto de traços psicológicos relativamente estáveis ao longo da vida, isto é, que variam muito pouco ao longo do tempo. Por exemplo, algumas pessoas podem tender a ser mais sociáveis do que outras; podem ser mais disciplinadas e organizadas na vida cotidiana do que outras e por aí vai. Essas diferenças individuais tendem a acompanhar esses indivíduos por toda a sua vida, por mais que eles consigam mudar um pouco.
A personalidade possui uma estrutura de 5 fatores, o que dá o nome da teoria mais empiricamente bem corroborada, a Big Five ou Teoria dos 5 Grandes Fatores da Personalidade, sendo eles: extroversão (que está associado à capacidade de conversar e ao nível de atividade), agradabilidade (que é utilizado para medir a cooperatividade), conscienciosidade (que indica o nível de autodisciplina), neuroticismo (que está associado à instabilidade emocional) e abertura à experiência (que é a disposição de se expor a experiências inéditas e se estimular intelectualmente). Esses fatores são as 5 formas possíveis das várias características de personalidades se agruparem. Esses grupos são contínuos, por exemplo, algumas pessoas vão ter maiores níveis de extroversão, outras vão ter menores níveis, como as introvertidas.
Mas enfim, como pode nossa personalidade estar ligada ao DNA?
Para responder a esta pergunta temos que relacionar traços de personalidade com nossos genes. Para isso é necessário um grupo amostral enorme, ou seja, para alcançar esta relação temos que estudar muitas pessoas. Foi exatamente isso que a equipe do pesquisador Chi-Hua Chen da Universidade da Califórnia fez quando conseguiu analisar o genoma completo de mais de 172 mil indivíduos. A partir deste grande grupo de amostras fornecido por diversas empresas de sequenciamento genético, foi possível encontrar genes associados aos 5 grandes traços de personalidade e ainda relacioná-los com alguns transtornos psiquiátricos.
Em seu trabalho publicado pela revista Nature Genetics, o pesquisador e seus colaboradores descrevem os genes aos quais foi possível associar os traços de personalidade. Por exemplo, variantes nos genes WSCD2 e PCDH15 foram associadas à extroversão e as variantes no cromossomo 8p23.1 e no gene L3MBTL2, ao neuroticismo.
Além da relação entre genes e traços de personalidade, também foi possível correlacionar os traços com transtornos psicológicos. Por exemplo, foi encontrada uma alta correlação entre a extroversão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).
Em outras palavras, assim como nossos traços de personalidade estão fortemente associados ao nosso DNA, algumas características em genes específicos nos tornam mais predispostos a ter esses 5 traços de personalidade de forma mais ou menos intensa, e também nos predispõem a desenvolver certos transtornos psicológicos.
E, de fato, estudos psicométricos mostram que a personalidade é um dos objetos de estudo da Psicologia que é mais intensamente explicados pela genética (inteligência é outro exemplo popular). Esses estudos mensuram a chamada herdabilidade dos traços psicológicos. Em outros termos, estudos populacionais são capazes de medir o quanto a variação de determinado parâmetro numa população varia devido a fatores genéticos e fatores ligados ao meio. Ou seja, isso não significa que o ambiente não possui nenhum papel causal, apenas que a parcela explicada pela fenótipo (ou seja, a expressão dos seus genes capaz de ser visível) é incomumente alta para uma variável psicológica.
Até aqui vimos que há ligação entre nosso DNA e nossa personalidade, no entanto, no episódio em questão, algo além disso foi utilizado para construir um clone virtual: estamos falando das nossas memórias. Como não há relação entre nosso DNA e a formação da nossa rede de memórias, podemos respirar aliviados, pois não há possibilidade de replicar este episódio, estamos seguros, não é mesmo? Não, as coisas não estão tão distantes do episódio assim. Sente um pouco que agora as coisas vão ficar mais assustadoras.
Ao tratar a extração das memórias a partir do DNA, a série tomou uma grande licença poética (esperamos, pois eles parecem tomar um cuidado com informações científicas em outros aspectos), e, dado a temática do episódio, esse ‘deslize’ pode ter sido até uma espécie de homenagem às séries clássicas de ficção de antigamente, que costumavam cometer muitos erros do tipo, pois não prezavam tanto pela acurácia científica ou não tinham recursos para buscar essas informações. No entanto padrões de memórias podem sim ser acessados de outras formas, como fez o pesquisador neurocientista cognitivo Janice Chen relatado no Spin de Notícias #97.
Chen utilizou imagens cerebrais para identificar os padrões envolvidos na criação e recuperação de uma memória específica. A partir dos seus resultados, foi possível verificar que, mesmo quando dois indivíduos possuem interpretações diferente de uma mesma situação (exemplo, tratar alguém como culpado ou inocente), o perfil da memória construído na rede de neurônios apresentava um padrão. Eles agora estudam como reconstruir esses padrões após sua recuperação. Prontinho, agora você pode dizer: Isso é tão Black Mirror.
Estamos apenas no início da caminhada para entender a genética da personalidade e sua relação com transtornos psicológicos, assim como também são os primeiros passos da compreensão de como nossas memórias são armazenadas e da possibilidade de reconstruí-las. Muito caminho ainda vai ser percorrido pela ciência para que um dia possamos criar um clone virtual capaz de simular perfeitamente um ser humano usando unicamente informações biológicas, pois devemos lembrar que, mesmo que traços de nossa personalidade e marcas de nossa vivência (se passamos fome, fumamos, etc) possam ser identificados analisando o DNA, memórias específicas e qualquer tipo de aprendizado cognitivo (por exemplo, aprender a andar, falar, hackear…) não ficariam gravados nele. O processo de aprendizado e memórias é uma cadeia de ativação de neurônios, que, através da ativação recorrente, são ‘reafirmadas’ e podem ser facilmente ‘relembradas’ quando necessário. Essa informação não chega ao DNA. Desta forma, reconstruir este episódio necessitaria não somente do material genético, como também informações extraídas desta cadeia de neurônios, ou de um upload mental.
Por fim, é importante ressaltar que, apesar dos resultados mostrando a relação personalidade/genética, os fatores ambientais, incluindo as experiências vividas, também apresentam sua força sobre nossas características, então não adianta mostrar este texto para família como desculpa por passar a hora do jantar na frente do computador.
Referências:
https://en.wikipedia.org/wiki/Big_Five_personality_traits
https://www.nature.com/articles/ng.3736
http://www.deviante.com.br/podcasts/spin/spin-de-noticias-97/
Este texto foi desenvolvido em parceria com o redator Felipe Novaes.
Felipe Novaes é formado em Psicologia e doutorando em Psicologia Social. Nerdeia sua vida com referências da cultura pop, livros, quadrinhos e filmes.