E se você conseguisse ser mais produtivo nos estudos ou no trabalho? E se fizesse mais coisas em menos tempo? E se não precisasse dormir tanto? E se tivesse dopping para o cotidiano? Renderíamos mais e teríamos mais tempo, mas será que é isso que nos falta?

Desde que comecei o curso de Psicologia que presencio debates sobre os benefícios e prejuízos do uso de medicamentos no tratamento de transtornos mentais/ sofrimento psíquico. Mas, antes de continuar esse texto, quero fazer duas observações: 1) Não sou contra o uso de psicotrópicos e reconheço o avanço que eles representaram no tratamento de diversos quadros diagnósticos em saúde mental; 2) Não sou farmacêutica e nem médica, por isso pretendo trazer nesse texto outros fatores envolvendo a prescrição e uso de psicotrópicos que muitas vezes deixamos passar nesse debate.

De acordo com uma abordagem da Psicologia chamada Análise do Comportamento, nossos atos são influenciados por 3 fatores: filogênese – relativa a herança evolutiva comum à espécie humana –, ontogênese – compreendida como o histórico de aprendizagens e reforçamento de um indivíduo – e a sociogênese – entendida como os fatores culturais e modo de vida de determinada sociedade.

Podemos entender então que nossos comportamentos influenciam e são influenciados pela cultura em que estamos inseridos. Em outras palavras, construímos e aprendemos os fatores culturais. Justamente por isso que é interessante falar um pouquinho sobre alguns modos de vida e a forma que interferem no cuidado à saúde.

Atualmente, temos observado o desenvolvimento de um modelo de vida mais imediatista – em parte proporcionado pelo avanço tecnológico, que tornou muita coisa mais rápida. Não estou aqui para dizer se isso é bom ou ruim, mas o ritmo de vida acelerado traz consigo, além de vantagens, necessidades.

Imagine a situação: um amigo te manda uma mensagem no Whatsapp ou Telegram dizendo que precisa te contar alguma coisa, mas não pode ser agora e que mais tarde vocês conversam. Essa pessoa “some” e não te diz mais nada, mesmo depois de você já ter respondido a mensagem.  A depender do seu nível de curiosidade, vai ser uma árdua tarefa esperar a resposta do amigo…

Quantos Haroldos você já deixou de ouvir porque tinha trabalho a fazer?

Essa cena e muitas outras semelhantes, ilustram nosso modo urgente de existir. Isso trouxe, para a maioria de nós, uma dificuldade em lidar com as angústias, sofrimentos e limitações do cotidiano. Em um mundo com um compartilhamento imediato de informações, os sentimentos adquirem uma proporção ainda maior, principalmente quando assistimos àquela enxurrada de postagens espetacularmente felizes, enquanto observamos e questionamos por que temos uma vida tão comum… Mas calma, essa angústia de “não ser” tem que passar rápido, afinal não podemos perder tempo, certo? E, a nossa saúde mental, onde fica nessa história?

Quando se fala em saúde mental, vemos a prevalência da psiquiatria e do tratamento medicamentoso. Em parte, reproduzimos a ideia de que “doença se trata com remédio” e esquecemos a importância da mudança de hábitos. São comuns casos de pacientes acompanhados por psiquiatras e psicólogos que abandonam a psicoterapia depois que a medicação faz efeito e diminui os sintomas iniciais que geraram a queixa. Nosso organismo busca a economia de esforço, ou seja, mudar as contingências ambientais, as condições e hábitos que contribuem para nosso adoecimento psicológico são um gasto energético muito maior do que apenas ingerir a medicação. No entanto, a base do tratamento está em trabalhar ambos os fatores.

Pensar e planejar contingências em longo prazo é trabalhoso e um pouco difícil, afinal isso é tarefa para o “eu do futuro”, não é? O ponto chave, meus amigos, é não querer pegar o atalho e buscar fazer uma análise funcional da situação, se perguntando o que está ocorrendo, por que, quais as consequências disso e o que se pode fazer para mudar.

Esses fatores – e muitos outros que não consegui abordar aqui – contribuem para o uso abusivo de medicações, até mesmo por aqueles que dela não necessitam. Podemos relacionar aqui também o conceito de medicalização da sociedade, em que questões de esferas multifatoriais (culturais, históricas, políticas, etc) são reduzidas apenas a aspectos fisiológicos, desconsiderando o contexto que envolve o adoecimento e atribuindo como único modo de melhora ou cura o uso de fármacos.

Enquanto estudante de Psicologia, vejo o psicotrópico como ferramenta para estabilizar quadros graves de pacientes, para que estes tenham condições de fazer um acompanhamento com outros profissionais, dentre eles, o psicólogo. Trabalhar as causas do sofrimento/transtorno e buscar a mudança de hábitos nocivos é fundamental para uma melhora na qualidade de vida e isso inclui a diminuição do uso do medicamento, e até mesmo sua retirada, quando for possível.

Fazer uso de fármacos atualmente vai além do tripé saúde-doença-cuidado. Além de sua função curativa, alguns tipos de remédios são usados como forma de se esquivar de situações aversivas. Isso pode fortalecer um padrão comportamental nocivo de não enfrentamento de situações.

Vamos a um exemplo: João gasta mais do que ganha e está com muitas dívidas, por isso começou a trabalhar mais para garantir uma renda extra. Ao final do expediente normal ele já está muito cansado, mas, para conseguir trabalhar as horas extras, ingere medicamentos. Essa situação dura 3 anos, o débito nunca foi quitado e João está cada vez mais cansado.

Nesse exemplo fictício, uma possível análise é que João teria de enfrentar sua dificuldade em gerenciar suas finanças. No entanto, a renda extra que ele conseguia fortalecia o seu padrão comportamental de gastos elevados, contribuindo com a manutenção de sua dívida e para um ritmo de vida acelerado, pautado pela produtividade.

O que seria necessário para ser o melhor?

Esse é o cenário do documentário “Take your pills”, lançado esse ano (2018), que debate o uso abusivo de medicações como Adderal e Ritalina para aumento da produtividade acadêmica, no trabalho ou até mesmo em festas.

Com uma visão que vai além de discutir o uso de substâncias e englobando um debate sobre a cultura de produtividade norte-americana, neurologistas, psiquiatras, psicólogos e pessoas com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) são entrevistadas de maneira franca, nos fazendo repensar sobre a forma que medicamentos como Adderal e Ritalina, que deveriam auxiliar pessoas com TDAH a ter uma melhor qualidade de vida, se transformaram em um dopping na corrida do cotidiano.

Apesar de o documentário ser recente, o uso inapropriado de metilfenidato e similares, principalmente por universitários que buscam aumentar seu rendimento escolar, não é um fenômeno novo. Algumas pesquisas têm sido realizadas a nível nacional e internacional buscando traçar um perfil e as possíveis consequências do uso não prescrito da substância.

Nesses estudos alguns fatores comuns foram encontrados: o uso do medicamento como forma de aumentar o rendimento nos estudos, principalmente em períodos de estresse e alta carga de trabalho – como em semana de provas – e a facilidade na compra, tendo em vista a existência de um mercado paralelo de venda da substância.

Em 2012, Pasquini realizou uma pesquisa no estado de São Paulo, abrangendo 30 campi universitários (18 públicos e 12 particulares) e cursos dos eixos de ciências humanas, exatas e biológicas. Dos entrevistados, 44,1% fizeram uso de metilfenidato mesmo sem diagnóstico de TDAH. Todos os estudantes afirmaram que a razão para o uso do fármaco foi o aumento de rendimento escolar, muitas vezes associando mais de um medicamento.

Também tem aumentado a compra e o repasse de metilfenidato e similares pelo SUS -SP. Como no estudo realizado em 40 entidades de saúde e educação no país, que registrou um aumento de 54,9%. (SHIRAKAW, TEJADA E MARINHO. 2012)

Diante de tudo isso, cabe a reflexão sobre o uso que temos feito de medicamentos, principalmente os psicotrópicos. Será que estamos nos enchendo de substâncias e fugindo do enfrentamento de nossos problemas? Ou será que isso é justamente uma tentativa de romper com as limitações de sermos humanos?

Fica a dica de documentário. E se me permitem mais uma: analisem a função dos vários tipos de usos do medicamento apresentados. Pega a pipoca e vamos desacelerar um pouquinho?

 

REFERÊNCIAS:

BRANT, Luiz Carlos; CARVALHO, Tales Renato Ferreira. Methylphenidate: medication as a “gadget” of contemporary life. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.16, n.42, p.623-36, jul./set. 2012.

CRUZ, T. C. S. C. et al. Uso não-prescrito de metilfenidato entre estudantes de medicina da Universidade Federal da Bahia. Gaz. méd. Bahia 2011;81:1(Jan-Jun):3-6

ESPOSTI, Hugo Cardoso. O Uso Abusivo de Anfetaminas por Estudantes Universitários. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Edição 04. Ano 02, Vol. 01. pp 05-14, Julho de 2017.

PASQUINI, Nilton Cesar. Uso de metilfenidato por estudantes universitários com intuito de turbinar o cérebro. Biofar, Rev. Biol. Farm. Campina Grande/PB, v. 9, n. 2, p. 107-113, junho/agosto, 2013.

SHIRAKAWA, Dálize Mayumi; TEJADA, Sérgio do Nascimento; MARINHO, César Antonio Franco. Questões atuais no uso indiscriminado do metilfenidato. Omnia Saúde, v.9, n.1, p.46-53, 2012