Observar um céu estrelado, em um lugar escuro, sem as luzes artificiais, consiste numa experiência fascinante. Na ausência de um céu limpo torna-se preciso simular o aspecto visual do céu noturno de uma forma realista. Reproduzir esta experiência é um ideal bem antigo. Nas primeiras tentativas, os primeiros observadores do céu esboçaram representações esquemáticas do que viam: mapas planos, globos celestes e mapas murais estampados em tetos com formato de cúpula.

The [projection] planetarium … made possible the realization of a two thousand-year-old idea – a perfect representation of the starry sky inside a room. (CHARTRAND, 1973)

Planetários sem planetas

Uma das mais antigas representações do céu na forma de globo é o Atlas de Farnese (século II d.C.) que se encontra exposto no Museu de Nápoles, na Itália. Um exemplo de mapa celeste de teto é o Zodíaco de Dendera inicialmente esculpido em alto relevo no Templo de Hathor (36 d.C., Egito) e atualmente exposto no Museu do Louvre (Paris, França) (VIEIRA F., 2007). Estas representações, no entanto, eram estáticas. Mais tarde, a partir do início da Idade Média, a engenhosidade humana gerou planisférios móveis portáteis (antecessores das réguas de cálculo[1]) que permitiram uma representação do céu em qualquer época do ano. Os planisférios consistiam de dois discos concêntricos superpostos que podiam ser girados de forma independente. O disco superior, onde se lia a escala de dias, continha uma máscara vazada, representando o horizonte. Esta mascara deslizava sobre um mapa celeste fixo cuja borda trazia uma escala de horas noturnas. Coincidindo o dia com a hora, a parte vazada da máscara revelava o céu visível naquele momento.

Planetários Mecânicos

Os movimentos celestes, as fases da Lua, os movimentos aparentes do Sol, as trajetórias erráticas dos cinco planetas visíveis a olho nu fascinavam os observadores atentos. Muitas das representações celestes foram sendo mecanizadas. Um exemplo são os relógios astronômicos acompanhados de mapas celestes, existem desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e atingindo seu auge na Renascença. Geralmente, tais relógios, além de mostrarem as horas, indicavam a posição dos astros.

A questão de como se dá o movimento dos planetas foi o cerne de um caloroso debate renascentista que remonta a Nicolau Copérnico (1473-1543) e que foi aprofundada depois por Galileu Galilei (1564-1642). Tal debate refletiu a disputa entre a versão experimentalista e versão teológica do que era a “verdade” científica. Esta disputa marcou esta época como a chamada Revolução Copernicana (KUHN, 1985). Segundo a visão atribuída a Aristóteles pela Igreja Medieval, a Terra era o centro do Universo e os demais astros giravam ao seu redor em órbitas circulares (modelo geocêntrico). Este modelo de universo não explicava satisfatoriamente o movimento aparente dos planetas que se dava no sentido contrário em alguns períodos, chamado movimento retrógrado. O modelo Ptolomaico[2], adotado na época, usava engenhosos recursos para explicar este movimento, contudo, mesmo assim, não era capaz de prever as posições dos planetas. Por muito tempo, este problema centralizou a atenção dos astrônomos deixando o ideal estético da busca pela simulação do céu estrelado em segundo plano. Foi Johannes Kepler (1571-1630) o primeiro a resolver o problema de forma elegante ao propor a forma das órbitas dos planetas como elipses tendo com o Sol em um dos focos. Kepler não só indicou a forma geométrica das órbitas como desenvolveu leis que descreviam o movimento planetário em termos matemáticos.

Prevento o Movimento Planetário

Thomas Kuhn, em seu trabalho sobre as revoluções científicas (KUHN, 1970), considerou a descrição kepleriana dos movimentos planetários como um “modelo exemplar”. Um exemplar é um conjunto de soluções para um problema concreto que passa a fazer parte de um campo do conhecimento considerado ciência normal ou estabelecida. A solução do movimento planetário atingiu um status de maior aceitação a partir do surgimento da Mecânica de Isaac Newton (1643-1727). A Revolução Copernicana foi bem mais que uma simples mudança de referencial da Terra (modelo geocêntrico) para o Sol (modelo heliocêntrico). Esta mudança de paradigma é considerada um marco do pensamento ocidental (KUHN, 1985).

Esta mudança profunda teórica propiciou o surgimento de dispositivos que vieram a se tornar emblemas do pensamento astronômico. Para demonstrar os movimentos dos planetas primeiramente se construiu mecanismos que usavam pequenas esferas (os planetas) presas a discos ou hastes móveis (marcando as órbitas). Este dispositivo recebeu a denominação de “planetário”, do latim Planetarium. O termo serviu para denominar qualquer mecanismo que representasse o movimento dos planetas[3] (HAGAR, 1973).

O Primeiro Planetário

Um dos primeiros registros sobre a confecção de um planetário deste tipo data de 1680. Consta que o físico holandês Christian Huygens (1629-1710) desenhou e mandou construir um modelo heliocêntrico (movido à corda) do Sistema Solar (VIEIRA C., 2007). Em 1704, George Graham (1674-1751), famoso fabricante inglês de relógios e membro da Royal Society, construiu um dispositivo mecânico que reproduzia o movimento orbital da Terra em torno do Sol (BRITTEN, 1894). O conjunto era animado por sofisticados mecanismos de relojoaria. Mais tarde, em 1713, tal artefato foi reproduzido por John Rowley, um notável fabricante inglês de instrumentos, sob encomenda de um nobre irlandês chamado Charles Boyle (1674-1731), o quarto conde de Orrery (Foto 1).

Devido à fama daquele modelo, o termo Orrery acabou por representar, por extensão, todos estes ancestrais mecânicos dos planetários. Estes artefatos se tornaram muito populares na tarefa de ensinar astronomia a partir do século 17 após a divulgação do trabalho de Newton sobre a gravitação universal em 1687. Sob este aspecto os planetários representaram a materialização da visão mecanicista do Universo conhecido durante o Iluminismo. Estas representações desempenharam um papel de reafirmação do modelo heliocêntrico e uma espécie de tributo à capacidade de prever o movimento dos astros.

Orrery original de John Rowley

Foto 1: Orrery original de John Rowley Fonte: Science & Society Picture Library (2009)[4].Direitos de imagem: Science Museum.

Artefatos do tipo orreries são encontrados em acervos de vários museus modernos. Estes aparatos ao se tornarem cada vez mais complexos passaram a representar planetas e seus satélites em suas respectivas órbitas. Um bom exemplo é o encontrado no Observatório de Armagh na Irlanda (Foto 2). A escolha deste tipo de representação reafirma visualmente o modelo copernicano em uma perspectiva exterior ao Sistema Solar.

Orrery de 1809

Foto 2: Orrery de 1809, Acervo em exposição no Observatório Armagh[5]. Fonte:Observatório Armagh . Direitos de Imagem: Gilkerson.

Planetário para entrar dentro

Paralelamente, o objetivo de simular o aspecto do céu noturno, visto a partir da Terra, não foi esquecido. O objetivo era colocar o expectador em uma situação de imersão que simulasse de forma mais real possível a observação do cosmos a ponto de estimular seus sentidos. A partir do século XVII, algumas experiências, ainda primitivas, foram testadas. Estas experiências foram realizadas com câmaras ou recintos escuros com orifícios, ou luzes embutidas, distribuídos nas posições das estrelas que poderiam ser movidos de forma a mostrar o céu de determinada época do ano para poucas pessoas em seu interior. Alguns conseguiam simular o Sol, a Lua e os cinco planetas visíveis como a Esfera de Gottorp descrita abaixo.

Entre 1644 e 1646, o mecânico Andreas Busch, seguindo as indicações do matemático Olearius, construiu o globo terrestre e celeste de Gottorp. O mecanismo foi feito a pedido do Duque Federico III da Holsacia. A esfera era feita de cobre com um diâmetro de 4 metros e pesando 3,2 toneladas. Em seu interior foi colocado um assento para até 10 pessoas de onde se viam desenhos representando as estrelas fixas e as constelações. No exterior estampava-se a superfície terrestre. O globo contava com um eixo fixo inclinado de 54,5° e rodava por ação de força hidráulica reproduzindo os movimentos dos astros. Além disso, as duas representações, celestes e terrestres, eram feitas com relação aos dois hemisférios, naquele momento já bem conhecidos. (BARRIO, 2002)

O Planetário Atwood

No entanto, o efeito não era realista o suficiente e o número de espectadores limitado. Datam do início do século XX os derradeiros recintos deste tipo, os quais recriavam o aspecto visual dos céus estrelados. Um exemplo foi a esfera de Atwood, produzido pela Academia de Ciências de Chicago, em 1913, que está descrita a seguir e representada na Foto 3.

Com um diâmetro de cerca de cinco metros mostrava 692 estrelas e possuía ainda um bulbo claro móvel representando o Sol. Apresentava ainda aberturas que podiam ser fechadas, de modo a representar aproximadamente a posição dos planetas em várias datas. (FARIA, 2008, p.6)

Assim, como descrito anteriormente, dispositivos que procuravam simular os aspectos e movimentos celestes existem desde o início da Antigüidade. Todos estes dispositivos, tão diferentes entre si, receberam a denominação geral de planetário. Contudo, a forma e o uso destes dispositivos ainda estava longe da concepção moderna do que é um planetário.

 Esfera de Atwood

Foto 3: Esfera de Atwood de 1913
Atualmente em exposição no Planetário Adler em Chicago, EUA. Fonte e Direitos de imagem: Adler Planetarium[6].


  • [1] Já as réguas de cálculo, posteriores, possuem duas retas numeradas que deslizam lado a lado. Através da comparação das escalas se obtém os resultados. São consideradas os primeiros computadores mecânicos.
  • [2] Cláudio Ptolomeu (90 – 168 AC), sábio grego de Alexandria, Egito.
  • [3] A palavra “planeta” é originária do grego com o significado de “errante, vagabundo”, uma referência ao aparente movimento irregular destes astros em relação às estrelas ditas fixas.
  • [5] http://star.arm.ac.uk/orrery/mdpopescu_armobs_orrery.jpg. Data de acesso: 25/04/2009.
  • [6] http://www.adlerplanetarium.org. Data de acesso: 09/11/2009.

    VIEIRA, C. L. A invenção do planetário. In: G. PESSOA(Coord.), Memória do Planetário do Rio, Astronomia para Todos . Rio de Janeiro: Fundação Planetário do Rio de Janeiro, p.35-54, 2007.

    VIEIRA, F. O Céu. In: G. PESSOA(Coord.), Memória do Planetário do Rio: Astronomia para Todos, p. 13-34. Rio de Janeiro: Fundação Planetário, 2007.

    KUHN, T. The Structure of Scientific Revolutions (2 ed.). Chicago: Chicago University Press, 1970.

    ______ The Copernican Revolution, Planetary Astronomy in the Development of Western Thougt. Cambridge: Harvard University Press, 1985.

    HAGAR, C. F. History of the Planetarium. The Planetarian, v.2 n.3 p.1,1973.

    ______ Planetarium, Window to the Universe. Ed. Carl Zeiss, Oberkochen, West Germany, p.96, 1980.

    ______ IPS Survey of the World’s Planetariums Part I (Major Facilities). The Planetarian, v.11 n.4 p.11-13, 1982.

    BRITTEN, F. J. Former Clock and Watchmakers and their Work, London, E;F.N. Spon., p.89-99, 1894.BARRIO, J. El Planetario- Un Recurso Didáctico Para La Enseñanza De La Astronomía. Tese (Doutorado em Didática das Ciências) Facultad de Educación y Trabajo Social Universidad de Valladolid, Valladolid, 211p, 2002.

    FARIA, R. Meio século depois. ABP em Revista , n. 0, p.4-14, 2008.