Hoje eu estou publicando um texto do meu colega Rafael Pinotti muito interessante que tem a cara do Esquina Espacial.
O Cair de Noite – A astronomia de um dos contos mais famosos de ficção científica
por Rafael Pinotti – Mestre em Físico-Química pela UFRJ, e, atualmente, doutorando em Astronomia.
Um dos contos mais famosos de Isaac Asimov, e de todos os tempos na ficção científica, foi O Cair da Noite, escrito em 1941, e publicado primeiramente na revista americana Astounding Science Fiction. O conto foi transformado em novela em 1990 com Robert Silverberg como coautor.
Asimov imaginou um planeta chamado Lagash, que faria parte de um sistema de seis sóis, sendo que pelo menos um deles estava sobre o horizonte a qualquer instante. Ou seja, o planeta não conhecia a noite, e seus habitantes viviam na ignorância de que o universo tinha mais do que seus sóis e planeta.
Entretanto, arqueólogos começaram a observar, através de sedimentos, que a cada dois mil e tantos anos a civilização entrava em colapso, com todas as cidades queimadas. Ao mesmo tempo, num observatório, um astrônomo descobriu um satélite do planeta, não por observação, visto que o mesmo estava sempre na fase nova, mas por seus efeitos gravitacionais. Além disso, seus cálculos mostraram que a cada cerca dois mil anos ele eclipsaria, por algumas horas, o único sol acima do horizonte.
O que seria a noite? E como ela causaria a devastação da civilização?
[Alerta de Spoiler]
O astrônomo ouviu relatos de que um novo brinquedo de um parque de diversões, onde um carrinho passava por um túnel escuro por alguns minutos, deixava todos aterrorizados, e alguns enlouquecidos. Os habitantes desse planeta não sabiam o que era o escuro, e aparentemente reagiam mal a ele. Desconfiado, levou seus parente e amigos ao observatório no dia do eclipse, e os escondeu num quarto com velas acesas.
O eclipse veio, e o céu escureceu. Mas as estrelas que apareceram não foram as que vemos na Terra, pálidos pontos dispersos. Eram gigantescas, como se o nosso céu estivesse coalhado de Vênus, Jupiters e objetos ainda mais luminosos. A população, ao ver aqueles milhares de fantasmas no céu, enlouqueceu de terror e, na ânsia de conseguir luz, incendiou as suas cidades. Mesmo o astrônomo, que se sentia preparado para o que fosse acontecer, tendo resolvido observar o fenômeno enquanto os seus se escondiam, acabou perdendo a razão.
Existem regiões no espaço onde as estrelas realmente se amontoam às centenas de milhares ou milhões, tão perto umas das outras que a visão do conto seria possível. Chamam-se aglomerados globulares, com forma aproximadamente esférica. A nossa galáxia, Via Láctea, contém cerca de 150 deles; a Figura 1 mostra a imagem do maior deles, Ômega Centauri, com mais de um milhão de estrelas num espaço de apenas 86 anos-luz. E, de fato, Asimov, profundo conhecedor de astronomia, localizou seu planeta imaginário justamente em um aglomerado globular.
À parte o tributo à imaginação prodigiosa de Asimov, e o prazer da leitura do conto, cabe também, nesse aniversário de 75 anos, a pergunta: essa estória é factível, à luz da astronomia do século XXI?
Quanto aos numerosos sóis, nada demais. Já se sabia, na primeira metade do século XX, que o nosso Sol é uma exceção no quesito companhia: a maioria das estrelas do universo tem companheiras unidas gravitacionalmente, formando sistemas duplos, triplos, e mesmo sêxtuplos. Nossa estrela vizinha mais próxima, Alfa Centauri, que a olho nu parece uma única estrela, é na verdade um sistema triplo, formado por uma estrela muito similar ao nosso Sol, uma outra um pouco menos brilhante, e uma estrela vermelha muito pequena e pálida.
Já a existência de planetas em outras estrelas era especulação em 1941. Muitos astrônomos acreditavam que o processo de formação planetária era comum no universo, mas as técnicas observacionais da época não permitiam descobrir planetas extrassolares, pelo simples fato de que o contraste entre o brilho das estrelas e o brilho refletido de seus supostos planetas ser grande demais. Essa situação só mudou a partir de 1995, quando dois astrônomos suíços, Michael Mayor e Didier Queloz, descobriram o primeiro planeta ao redor de uma estrela parecida com o Sol, 51 Peg, que significa a estrela 51 da constelação do Pégaso. A técnica que usaram não foi a de observação direta, pois isso ainda constitui um desafio tecnológico, que só deverá ser superado com a inauguração de novos telescópios em terra e no espaço, como o ELT (Extremely Large Telescope) no deserto de Atacama, a ser inaugurado na próxima década, e o James Webb Telescope, a ser lançado ao especa ainda nessa década. A técnica usada por Mayor e Queloz é resultado da influência da força de atração gravitacional mútua estrela-planeta na luz emitida pela estrela, envolvendo o efeito Doppler nas linhas espectrais (ver Figura 2). O uso dessa técnica e de outras, com destaque para a técnica de trânsito (ver Figura 3), usada pela sonda Kepler para a descoberta de milhares de planetas, nos permitiram descobrir, de 1995 até 2016, mais de 3400 planetas extrassolares (o catálogo completo pode ser encontrado na página mantida por Jean Schneider – http://exoplanet.eu/). Cabe notar que, desses milhares de planetas, menos de 100 foram descobertos por observação direta. São exceções que se constituem, geralmente, de planetas muito grandes, jovens e muito distantes de suas estrelas. O fato de serem jovens faz com que sua alta temperatura emita um brilho em infravermelho substancial, cujo contraste com o brilho em infravermelho da estrela é bem menor que no visível, propiciando portanto a observação em infravermelho.
Dentro do rol de planetas descobertos, há também planetas em torno de estrelas binárias, tanto planetas girando em torno de uma estrela, que gira em torno de outra, como planetas que giram em torno de duas estrelas, em uma órbita mais externa do que a órbita estrela-estrela. Esse fato dá crédito à possível existência de um planeta como Lagash. Planetas rochosos e pequenos, do porte da Terra, também encontram-se no catálogo atual de planetas extrassolares descobertos. Alguns situam-se na chamada Zona de Habitabilidade, uma região em torno de cada estrela onde um planeta tipo terrestre, com atmosfera suficientemente espessa, poderia suportar água líquida em sua superfície. E água é considerada um pré-requisito universal para a vida, não apenas por ser assim na Terra, mas também por questões de abundância dos elementos hidrogênio e oxigênio – que formam a molécula de água – no universo, além de propriedades química únicas dessa molécula.
Um problema potencial no Cair da Noite
Um problema potencial da astronomia moderna à estória de Asimov – e deve-se frisar que é, como acontece freqüentemente em ciência, um porém potencialmente temporário – é a existência, até o momento, de apenas um planeta descoberto em um aglomerado globular, apesar de pesquisas de observação direcionadas especificamente a esse tipo de objeto. Há dois possíveis impedimentos teóricos à formação de planetas em aglomerados globulares. O primeiro diz respeito à abundância de elementos pesados necessários à formação planetária. Planetas rochosos como a Terra, Vênus, Marte e Mercúrio são formados principalmente por elementos pesados – oxigênio, silício, ferro, níquel – que só apareceram no universo após algumas gerações de estrelas, que os produziram em seu interior e os lançaram ao espaço ao final de suas vidas. Mesmo planetas gigantes como Júpiter e Saturno – Júpiter tem 318 vezes a massa da Terra – que são formados principalmente por hidrogênio e hélio, elementos abundantes desde o início do Universo, começaram com um embrião planetário de 5 a 20 massas terrestres feito de elementos pesados. Ocorre que aglomerados globulares são, via de regra, associações de estrelas muito antigas, que possuem uma proporção de elementos pesados muito menor do que estrelas de gerações mais novas. E, como a composição das estrelas espelha a composição dos discos protoplanetrários que formam os planetas, visto que provêm da mesma nuvem gasosa, infere-se que a probabilidade de formação planetária nessas regiões deve ser bem menor do que em estrelas mais jovens do disco da galáxia. Por outro lado, sabe-se da existência de planetas em torno de estrelas de baixa “metalicidade” (para astrônomos, o termo “metal” refere-se a todos os elementos da tabela periódica, menos o hidrogênio e o hélio) na vizinhança solar, logo, essa não deve ser uma restrição muito forte.
O outro possível impedimento de formação planetária em aglomerados globulares deve-se ao fato de que, nesses ambientes, a distância média entre estrelas é muito pequena – o que aterrorizou os habitantes de Lagash – e, como as estrelas estão em constante movimento relativo, a chance de encontros próximos é muito grande, e a força de atração gravitacional de uma estrela invasora poderia destruir o disco protoplanetário das estrelas enquanto jovens, impedindo consequentemente a formação de planetas, ou ejetando para o espaço os planetas que tiveram chance de se formar.
Uma possível resolução natural para as duas restrições mencionadas refere-se ao fato de que os aglomerados globulares ficam, na maior parte do tempo, no halo da Via Láctea e das galáxias em geral, uma região mais ou menos esférica longe do disco; entretanto, as suas órbitas interceptam o disco de estrelas mais novas que formam os braços espirais, e nesses encontros podem capturar estrelas, bem como ceder algumas ao disco. E algumas estrelas capturadas poderiam orbitar o aglomerado a uma distância segura contra encontros próximos. A Figura 4 ilustra um planeta nas cercanias de um aglomerado globular.
A Grande Questão do Cair da Noite
Finalmente, existe a questão – A Grande Questão – sobre a possibilidade de civilizações extraterrestres. A nova disciplina de Astrobiologia, que é multidisciplinar e procura responder questões sobre o aparecimento e evolução da vida no Universo, dispõe, por enquanto, apenas de um espaço amostral de 1, a Terra. Muitos cientistas inferem, levando em conta cada etapa da evolução da vida ao longo dos bilhões de anos em que ela existe aqui, e as circunstâncias no tempo, tanto astronômicas, físicas, químicas e biológicas, que a vida complexa no Universo deve ser rara, tão rara que mesmo um número absurdamente grande de planetas habitáveis não serão habitados, salvo no caso de vida a nível microscópico. As técnicas atuais não nos permitem perscrutar os planetas descobertos para sabermos se há vida lá; no máximo, em uns poucos casos, poderemos saber, através da análise da composição da atmosfera, se merece a suspeita de alguma atividade biológica na superfície. Na Terra, por exemplo, a existência de metano na atmosfera (em proporção muito baixa, na ordem de partes por bilhão em volume), que é rica em oxigênio (21% em volume), indicaria a um cientista extraterrestre que algo está continuamente injetando metano na atmosfera, possivelmente de natureza biológica, pois o metano reage rapidamente com oxigênio e não deveria estar presente. E, de fato, são atividades biológicas com rotas anaeróbicas que fazem essa injeção contínua.
Para consubstanciar essa visão pouco otimista, existe também o dado empírico trazido pela busca sistemática de sinais de rádio de civilizações extraterrestres, que, depois de mais de meio século de escutas com radiotelescópios, não obteve nenhum sinal comprovadamente de natureza artificial.
Por outro lado, estamos apenas começando esse tipo de estudo, e a Natureza pode nos surpreender a qualquer momento. A imaginação do conto de Asimov ainda pode encontrar eco no nosso conhecimento estabelecido, mesmo no seu aniversário de setenta e cinco anos.
O Cair da Noite – Isaac Asimov – Editora Arte & Letra, 2014