Trabalho num planetário que tem um serviço semanal de observação do céu. As pessoas vibram ao saber que o planeta Marte está no céu e querem vê-lo. O nome Marte traz sempre uma carga emocional enorme. Geralmente acontece uma grande decepção ao notar a imagem pequena e nada vermelha no campo do telescópio de médio porte. No máximo, surge uma bolinha levemente alaranjada com um pontinho branco (a calota polar).
A “culpa” do sucesso marciano vem de algumas histórias e personagens interessantes. Um deles foi o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli (1835-1910), um dos primeiros a tentar fazer cartografia visual do planeta vermelho a partir de um possante telescópio. A imagem do telescópio Schiaparelli era melhor do que aquela que vemos no telescópio do planetário, mas não muito melhor. Certamente não se compara ao que temos hoje a partir de grandes telescópios em terra e no espaço. Como não havia ainda dispositivos fotográficos, os seus mapas desenhados tinham muito de subjetivo. Ele via manchas na superfície que sugeriram canais de irrigação que mudavam de cor sazonalmente. O americano Percival Lowell (1855-1916), investiu em um observatório com um céu excelente. Lowell reforçou as ideias de que os tais canais existiam de fato e eram obra de uma civilização lutando contra a desertificação de seu mundo.
“Não há dúvida de que o aspecto geométrico das linhas é devido a inteligência. O único problema é saber de que lado do telescópio está a inteligência.”
Carl Sagan.
Como a ficção imaginou Marte?
Sob a influência destes astrônomos “visionários” não era difícil esperar que a literatura sonhasse alto, muito alto. Marte passou a ser o alvo para imaginação humana: o mundo “habitado” mais próximo de nós.
Em seu livro Guerra dos Mundos de 1889, H.G. Wells (ver SciCast 85), descreve o planeta vermelho como um mundo moribundo. No enredo, os habitantes marcianos são avançados e invadem a Terra em busca de água. A versão em áudio deste livro feita para o rádio por Orson Welles (1915- 85), causou pânico em 1938. Welles descreveu de forma jornalística os marcianos invadindo uma cidade norte-americana. Muitos acreditaram ser real.
Edgar Rice Burrouhgs, ao escrever o livro Princesa de Marte (1912), cria um personagem chamado John Carter que se transporta de uma forma meio mágica para o planeta Barsoon (nome que os marcianos batizavam seu mundo natal). Burroughs, desenvolveu suas histórias de capa e espada em aproximadamente uma dúzia de livros até 1942. O mais legal do personagem John Carter vem agora: ele vira uma espécie de super homem pois seus músculos, acostumados a gravidade terrestre, tornam-se poderosos na baixa gravidade de Barsoon.
Os marcianos continuaram e continuam habitando, não Marte, mas a mente humana. Geralmente verdes e cabeçudos. Quase sempre belicosos. Até o famoso quadrinho Watchmen faz referência ao planeta vermelho. Você deve lembrar qual Watchmen vai para lá a fim de ficar sozinho.
1971, Marte finalmente revelado
A partir da corrida espacial finalmente começa a mudar a imagem que fazemos do planeta vermelho. Mas não foi nada fácil: uma sucessão de sondas perdidas criou um certo tom de mistério ao redor do planeta. A União Soviética (URSS) perdeu nove sondas entre 1960 e 1969. O ano de 1964 marcou o início da missões Mars (URSS) e Mariner (EUA). A princípio as sondas apenas sobrevoaram o planeta tirando fotos de baixa resolução. Marte tem uma atmosfera bem ativa que de vez enquanto se enche de tempestades de areia que podem toldar uma parte considerável do planeta. O primeiro sobrevoo com sucesso foi feito pela sonda Mariner 4 em 1965.
O que me inspirou a escrever este papo de esquina foi uma leitura que fiz a muito tempo: Marte e a Mente do Homem – Ray Bradbury, Arthur C. Clarke, Bruce Murray, Carl Sagan e Walter Sullivan, Ed. Artenova, 1973.
Em novembro de 1971, pouco antes da sonda Mariner 9 chegar a Marte, um grupo interessante de pensadores se reuniu para discutir como este planeta tem influenciado a mente humana. O grupo incluía dois escritores de ficção científica famosos: Arthur C. Clarke (1917-2008) e Ray Bradbury (1920-2012). Completando o grupo tínhamos dois cientistas: Carl Sagan (1934-96), o otimista, e Bruce Murray (1931-2013), componente da equipe da Mariner 9. O jornalista Walter Sullivan, agiu como uma espécie de moderador do grupo.
O livro é bem datado mas exatamente isso faz dele um leitura interessantíssima. Retrata um época em que a guerra fria estava próxima ao seu fim, o programa Apollo ainda ressoava no imaginário americano e a exploração planetária era algo ainda pioneiro.
Ray Bradbury foi o autor do famoso livro As Crônicas Marcianas que teve várias edições em várias línguas: uma visão extremamente poética de um futura colonização de Marte. As crônicas de Bradbury sugerem claramente uma metáfora da conquista do oeste americano. São contos muito interessantes e uma leitura prazerosa. Eu recomendo muito.
A Mariner 9 foi a primeira sonda espacial a entrar em órbita de um outro planeta. Tirou umas 1700 fotos da superfície marciana revolucionando a visão que se tinha do planeta. Descobriu vulcões, vales, calotas de gêlo sêco e dunas. As primeiras fotos dos satélites Deimos e Phobos também foram resultado desta sonda reveladora. O livro “Marte e mente do homem” têm debates anteriores a chegada do sonda, algumas fotos na sua parte central e textos dos debatedores comentando o efeito posterior daquele evento histórico. Até hoje a sonda Mariner 9 deve estar lá ao redor de Marte inerte como um monumento espacial.
No mesmo mês de novembro de 1971 a sonda soviética Mars 3 conseguiu ser o primeiro artefato humano pousar suavemente em outro planeta mas não pode enviar muitos dados, pois entrou em colapso logo depois.
Em 1975, duas sondas gêmeas, Viking 1 e 2 (EUA), pousaram suavemente na superfície marciana e enviaram dados por mais de mil dias cada uma. Foram as primeiras a realizar complexos experimentos biológicos. Infelizmente seus resultados não foram nada conclusivos em relação a existência de vida microbiana.
Desde então, sonda espaciais cada vez mais avançadas pousaram em Marte. O primeiro rover a funcionar no planeta foi o Sojouner que viajou a bordo da sonda Mars Pathfinder, em 1996.
A imaginação humana não deixou de visitar as areias marcianas desde então. Dois filmes me chamam a atenção especialmente: Missão Marte (2000) e Planeta Vermelho (2013). Foram muito realistas ao representarem a tecnologia para viagens de longa distância e uso de força centrífuga para simular gravidade.
O que a Ciência descobriu em Marte?
“Nós queremos que Marte seja como a Terra.”
Bruce Murray, 1971.
Marte é um mundo frio, seco e poeirento. A atmosfera marciana é extremamente rarefeita que não permite a existência da água em estado líquido na superfície. Isso foi o que as sondas, desde a década de setenta até agora, nos revelaram sobre o planeta vermelho. Sem canais de irrigação mas com leitos secos escavados por água corrente há centenas de milhões de anos. Recentemente, se identificou indícios promissores de água salgada marcando certos lugares por algum tempo. Não chegam a ser rios, mas certamente era água líquida existindo por alguns instantes e marcando o solo com sais exóticos. A possibilidade de água subterrânea também é bem grande.
“Mesmo que agora não haja vida em Marte, haverá ao terminar este século.”
Arthur C. Clarke.
“Se a Lua foi um passo gigantesco dado pela humanidade, Marte é o próximo passo, maior ainda.”
Ray Bradbury.
Para fechar com chave de ouro convém mencionar o quanto o planetinha vermelho continua na nossa mente (tanto nos sonhos como nos pensamentos mais realistas). O livro Perdido em Marte (que acabou virando filme recentemente) faz ficção científica hard (bem ao estilo do mestre Júlio Verne). Ver SciCast 102.
Atualmente temos cinco sondas orbitando o planeta vermelho em funcionamento (três americanas, uma europeia e outra indiana) e mais dois rovers ainda ativos: Curiosity e Opportunity (ambos americanos).