Bom dia! Boa tarde! Boa noite! Você está ligando para o Serviço de Atendimento à Ciência, o SAC. Você pode estar dizendo o tópico de interesse em voz alta, clara e de forma pausada, por favor?
E na nossa primeira ligação, nossa linha direta vai até São Paulo/SP para falar com a nossa querida Thaís Boccia, redatora do Deviante e integrante da equipe de biológicas do Scicast, para conhecer um pouco mais sobre o mundo da Imunologia e entender como as vacinas são a forma que os humanos encontraram para ensinar as células do próprio corpo a se defender.
SAC: Para começar… Imunologia é, tipo, o estudo das pessoas imundas, mas com problemas de falar certas letras?
Thaís: Hahahaha, gostaria que fosse! Imunologia é o estudo da resposta que os organismos têm frente ao que acham perigoso. Se o seu sistema achar que uma bactéria é perigosa, a imunologia vai estudar a resposta gerada contra a bactéria, por exemplo. Se o seu corpo acha que o seu pâncreas é perigoso, ele também luta contra o órgão (explicando de forma bem didática).
SAC: Espera aí! Existe realmente a chance do meu corpo lutar contra o meu próprio pâncreas?!
Thaís: Sim! São as doenças autoimunes. Por isso, não podemos falar que o sistema imune luta contra patógenos, protegendo todos nós, todo o tempo. Ele pode errar o alvo e achar que uma parte sua é o problema, começando uma luta interna.
SAC: Patógeno? Uma espécie nova de pato que eu não conheço?
Thaís: Hahahaha, não! Patógeno é o organismo causador de alguma doença (a palavra vem do grego páthos, que pode significar doença). É o vírus, a bactéria, o parasita…
SAC: Entendi! Então, tudo que causa doença é um patógeno, certo?
Thaís: Não necessariamente. Há várias doenças que não são causadas por patógenos. As doenças em que o sistema imune é mais estudado são as infecciosas, que necessariamente estão associadas a um patógeno.
SAC: E como vocês estudam isso? Escolhem uma pessoa e ficam jogando um monte de bactéria dentro dela pra ver o que acontece?
Thaís: Fazemos isso com linhagens de células (humanas ou de camundongos, pois o sistema imune deles é bem parecido com o nosso) ou com os próprios camundongos mesmo.
SAC: Mais uma palavra estranha! “Linhagem” é o que, exatamente?
Thaís: Lembra das células do sangue? Existem as hemácias (chamadas de glóbulos vermelhos) e os leucócitos. Dentro do mundo dos leucócitos, tem vários nomes mais confusos, hehe. Essas células contêm vários componentes do sistema imune e elas vivem no sangue para poder ir atrás do problema. Se o problema estiver no pé, elas correm até lá. Se estiver no pulmão, correm para lá também. São essas células que a gente usa para os experimentos no laboratório. Só que elas são isoladas, um tipo de célula por vez. Assim, nós estudamos como cada tipo de célula reage quando jogamos um certo vírus ou uma certa bactéria.
SAC: E o que vocês observam durante os experimentos (além dessa versão bacteriana de Game of Thrones)?
Thaís: Uma das coisas que a gente consegue ver é como essa célula reage: se ela muda de forma, de tamanho ou se produz uma certa substância, por exemplo. Mas o principal é que o sistema imune tem memória! Ele consegue montar uma resposta contra um vírus e, se ele encontra o mesmo vírus 10 anos depois, a resposta é a mesma e muito mais rápida. Então, um dos parâmetros que a gente vê é se o animal fica protegido. Por exemplo, vamos dizer que eu dei uma “sopa de vírus” para o animal (eu realmente bati eles no liquidificador) e o bicho faz uma resposta em 1 ou 2 meses. Quando eu infecto esse animal depois desse tempo, ele está protegido e não morre.
SAC: O que você quer realmente dizer com “montar uma resposta ao vírus”
Thaís: É assim: uma célula pega esses “pedaços” de vírus, chama uma célula especializada, que reconhece esses pedaços, e coloca essa célula especializada para funcionar. Esse “funcionar” envolve a montagem de um exército de células especializadas para que, quando o vírus aparecer, tenha alguém que consiga matá-lo. O truque da vacina é ensinar o organismo a fazer isso SEM ocorrer a infecção real. Assim, quando ela acontecer, esse exército já está pronto.
SAC: São vocês da Imunologia que trabalham para produzir essas vacinas
Thaís: Sim! Nós estudamos as formas de como ensinar o sistema imune da melhor forma, para proteger das doenças.
SAC: Então, vocês são quase… professores de células!
Thaís: Hahahahah, que maravilha de analogia! Somos isso mesmo, que lindo.
SAC: Mas por que eu tenho que ficar tomando várias vacinas para a mesma doença de tempos em tempos? Vocês que gostam de ver a gente tomando agulhada ou as células não são alunos tão bons assim?
Thaís: A segunda alternativa, hahahaha. De vez em quando, o sistema imune precisa de uma prova de recuperação, uma DP, que garante que ele vai responder bem depois, quando a infecção acontecer.
SAC: E por que isso acontece? Eles ficam usando o ~celular~ durante as aulas?
Thaís: Hahahahah, acontece porque, geralmente, você não encontra o vírus no meio tempo entre as duas doses e ele precisa recordar como ele é. É como se você desse os livros para ele estudar de novo e ele dizer: “ah, eu lembro disso, espera que eu já resolvo essa equação”. Pode não funcionar com todas as pessoas, mas uma vacina só é liberada quando se tem eficácia comprovada em muita gente (mais de 60% das pessoas).
SAC: Então, em tese, se eu tomar uma destas vacinas que precisa de reforço, mas acabar encontrando o vírus antes de tomar a segunda dose, esse encontro serve como uma “segunda dose” sem querer?
Thaís: Sim e não, hehe. Pode ser que ele venha e suas células ainda estejam preguiçosas, voltando das férias… No fim, tudo é estatística, tem gente que cai no grupo que vai responder lindamente como uma segunda dose, mas tem gente que vai responder como se nunca tivesse ouvido falar naquele vírus. Por isso, as doses são importantes demais! Quem planejou o calendário de doses pensou no tempo exato que as células precisam para não esquecerem tanto do vírus.
SAC: Como vocês controlam isso? Agora, com as vacinas de febre amarela, eles decidiram “fracionar” as doses, precisando desse reforço, mas o que é fracionar? É literalmente dar uma gotinha a menos ou tem mais coisa envolvida?
Thaís: O controle disso é feito, geralmente, com os estudos em camundongos. Você controla semanalmente se o animal ainda tem anticorpos para o vírus e planeja a dose para quando eles começarem a cair. O fracionamento da vacina da febre amarela está acontecendo para garantir que a população vai receber, pelo menos, alguma coisa. O ideal é a dose completa, que não precisa de reforço. Mas com esse surto não reconhecido pelo governo, as pessoas estão correndo aos postos de saúde e as doses estão acabando. Para garantir que a população tome a vacina e se proteja, a dose foi fracionada ― literalmente quebrada em pedaços ― para que você tome outro reforço em menos de 8 anos. Só que eles garantem proteção durante esses 8 anos, o que já melhora bastante a situação nesse momento. Alguns estudos fora do Brasil falam que essa proteção é só de 1 ano, mas viram que a população daqui está protegida há 8 anos com a dose fracionada. Mas, de toda forma, é melhor assim, porque dá tempo de produzir mais vacina sem deixar de proteger a população.
SAC: E vacina protege contra tudo? Vírus, bactéria, protozoário, procrastinação, terra plana?
Thaís: As vacinas que temos até hoje são muito boas contra vírus e bactérias. Tem MUITO estudo por aí tentando fazer vacina também para parasitas, como os que causam malária, leishmaniose ou a doença de Chagas, por exemplo. Mas ainda não temos nada disponível. Eu acho que é porque os parasitas são organismos diferentes, tem fases de vida dentro do ser humano, o que complica a vida do sistema imune (ele é bom, mas não é perfeito). Imagina alguém que vai para uma festa e toda hora fica trocando de roupa, é o que os parasitas fazem no nosso corpo. Ai o sistema imune, coitado, tem que ficar reconhecendo cada hora uma “pessoa diferente” e fica complicado… Não tem vacina para parasitas, mas tem muita gente tentando!
SAC: Como é o processo para descobrir uma nova vacina?
Thaís: Geralmente, para fazer uma vacina, você tem que saber como aquele vírus ou bactéria se comporta no hospedeiro. Então, camundongos são usados para estudar isso bem detalhadamente. Nesse caso, você pode estudar só um pedacinho desse vírus (que pode já gerar a resposta que você quer), ou o vírus morto ou bater tudo no liquidificador. Nessa parte, você já imuniza o bicho com esse pedacinho (já se usa o termo “imunizar” nesse ponto). Quando você garante que o camundongo tem, por exemplo, anticorpos contra esse pedaço do vírus, você tenta um desafio: infecta o animal com o vírus vivo, intacto. Nesse processo, a gente descobre se precisa de mais uma dose, se a quantidade que a gente escolheu funciona e outras mil coisas. Se funcionar, é festa! A próxima fase é a dos primatas. Nada que vai ser administrado para humanos é liberado sem passar por primatas. Eles testam a mesma vacina em macacos e, se der certo, festa de novo! Se não, volta para a bancada do laboratório e tenta algo diferente. Esse processo leva tempo, infelizmente, e é feito por alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado, pós-doutorado, tudo ANTES de chegar na parte da produção em massa.
SAC: No fim de toda a pesquisa, quando você sabe que está pronto para a produção em massa?
Thaís: Geralmente, nesse ponto, já tem uma empresa de olho em você, rs. Esse trabalho de pesquisa rende várias publicações e as empresas estão de olho nisso o tempo todo. Você cria uma patente da vacina e a empresa produz.
SAC: E como é feita a produção? Não me parece uma coisa que dá pra ser feita no fundo do quintal…
Thaís: Na hora que chega na indústria (ou no Instituto Butantan), eles têm toda a segurança para fazer a pesquisa com os patógenos. O armazenamento varia de acordo com o conteúdo da vacina. Se for a “sopa de vírus”, é mais fácil armazenar só em geladeira, mas se for o vírus vivo, precisa de mais cuidados. As doses são vendidas para o governo, que distribui aos postos de saúde.
SAC: De vez em quando, aparecem alguns vídeos nas redes sociais falando sobre uma resistência grande a vacinas nos Estados Unidos, com pais que não querem que os filhos sejam vacinados de jeito nenhum. Essas coisas estão começando a aparecer no Brasil também, aos poucos. O que acontece com essas pessoas? Não está provado por A + B que as vacinas funcionam e são essenciais?
Thaís: Ah, sim, os anti-vaxxers. Eles existem sim, e estão crescendo muito. O que acontece é que, nos EUA, é mais fácil isso ganhar fama, porque lá você invoca a emenda número X e fala que não é obrigado a se injetar nada, que não é obrigado a fazer o que não quer. A falta de informação da população é grande demais e mesmo uma coisa que, para nós, parece fácil de entender, não é fácil para muita gente. Por isso, aqui no Brasil a vacinação é obrigatória e as pessoas que não vacinam seus filhos geralmente não se identificam nesses grupos anti-vaxxers, não contam para o pediatra que não vacinou… É obrigatório, mas a fiscalização não é aquelas coisas, então não tem como ir na casa das pessoas com a vacina num isopor, como fazem as pessoas que vão ver se tem mosquitos na sua casa…
SAC: E quanto isso prejudica a saúde pública de um país?
Thaís: Prejudica demais! Quanto mais gente não se proteger, maior é a chance de surtos de doenças que chamamos de imunopreveníveis (que tem a chamada imunoprevenção). Você falar que não vai vacinar porque não tem ninguém com sarampo perto do seu filho é péssimo, pois a ausência do surto está relacionada diretamente com a vacinação. Nos dias de hoje, o que mais precisamos é de educação, uma das coisas mais difíceis de entregar para uma população dividida, com opiniões fortes sobre absolutamente tudo, sem nenhum embasamento científico…
SAC: E aquelas correntes que passam no WhatsApp, falando que os vírus são conspirações das grandes empresas pra vender mais vacina? Qual é a opinião de uma imunologista sobre isso?
Thaís: Eu acho que teorias da conspiração são divertidas, mas só isso. Não dá para imaginar que empresas querem adoecer a população para vender remédios. Só de vender remédios para condições que eles não criam, eles já são milionários! É triste ver que a população acredita em coisas sem prova nenhuma de maneira tão fácil…
SAC: Nosso momento Capacitor de Fluxo: o que vocês veem para o futuro da Imunologia?
Thaís: Pessoalmente, eu acho complicado os estudos com parasitas, então infelizmente acho que pode demorar para acharmos uma vacina. Mas não é por isso que não devemos investir mais tempo, dinheiro e conhecimento na área. O campo das imunizações é lindo (rs) e com provas científicas tão convincentes que a educação da população é o que falta para avançarmos mais, e não só nesse campo.
SAC: Para terminar, como estamos com a imunologia no Brasil? E onde e o que as pessoas que ficaram com os olhinhos brilhando quando você falou tudo isso podem fazer para saber mais?
Thaís: A imunologia no Brasil tá precisando de atenção como todas as áreas da ciência. Mas quem se interessou pode procurar os professores do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, que é onde eu trabalho. Várias outras universidades no Brasil também fazem pesquisas de qualidade na área, então, bora lá, minha gente! Bora vacinar esse Brasil!
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