Oi, pessoas! Bom aí? Bom aqui! Vocês lembram do texto “Por que e como estudar gramática” ? Bom, lá eu faço um preâmbulo da importância social de se estudar gramática e dou um exemplo superficial de como deveria ser ensinada. Na teoria é fácil, não é mesmo? Tenho certeza que algumas pessoas leram, pensaram (mas não comentaram): Quero ver colocar isso em prática!
Bom, este texto é para isso.
Não é uma solução mágica (até porque há dificuldades estruturais e conteudísticas na própria escola que fogem ao alcance de quem vos escreve), mas, se você já é professora ou professor ou pretende ser, imagino que este texto possa te ajudar bastante. E se você não for, nem quiser ser, eu tenho certeza que o texto vai te dar uma consciência maior para escrever e interpretar melhor.
O primeiro problema com o ensino de gramática é a fragmentação do sistema. As línguas são sistemas em que tudo está relacionado, consequentemente, a ideia de sistema se perde se separamos o ensino em blocos, por exemplo, estudar os tipos de sujeito e, separadamente, os tipos de predicados. O segundo problema é que se termina ignorando que a aluna ou aluno tem um conhecimento prévio deste sistema (explicado no texto citado acima) que a/o ajudará a compreender melhor como se dão as relações.
Se quiserem uma série de posts em que analiso textos cada vez mais complexos, comentem aí embaixo!
Primeiro passo: Análise social do texto
Todo texto que é produzido quer comunicar alguma coisa para alguém. Além disso, ele vai ter uma forma específica para se adequar ao meio em que é veiculado e essa forma deve servir para alcançar mais efetivamente seu objetivo comunicacional. Vamos analisar uma tirinha:
Para que serve, então, uma tirinha? Qual seu objetivo comunicacional? Tratar de temas do dia-a-dia de maneira engraçada, divertida. Neste caso, trata da inocência da criança e dos encargos de uma vida adulta.
E qual a forma da tirinha? Ela tem aproximadamente três quadrinhos que mostram o decorrer da narrativa e a graça está sempre na quebra de expectativa do último quadrinho. Essa quebra de expectativa pode se dar de várias formas, neste exemplo que estamos analisando, o autor brinca com a ambiguidade da palavra “conta”, mas também com a mudança drástica de assunto.
A tirinha é sempre feita com imagens e essas são um texto tão importante quanto (ou mais que) o texto escrito. As crianças estão com a mesma roupa e estão carregando mochilas. Isso contextualiza a conversa sobre contas (palavra principal desta tirinha). O sorriso inexistente do Camilo, no último quadrinho, reforça a quebra de expectativa.
Essa análise é importante para que entendamos que todas as escolhas gramaticais feitas servem aos objetivos apontados acima. Em uma tirinha talvez isso não fique tão claro, mas é preciso criar o hábito desta pré análise sempre!
Segundo passo: PASSOS DA CHER
Para explicar esse próximo passo tenho que explicar para vocês os Passos da CHER. As professoras que estudam gramática gerativa na Universidade de Brasília, em especial a professora Eloísa Pilati, estudam há anos uma forma de ensinar gramática que seja condizente com a ideia da língua como sistema. Eloísa Pilati (1) defende, então, que as análises gramaticais se baseiem em quatro pilares: CONCORDÂNCIA, HIERARQUIA, ESTRUTURA e REGÊNCIA. A ordem não necessariamente é essa, mas assim eu posso chamar de Passos da CHER e achei que ficaria engraçadinho.
Tendo em mente estes quatro pilares, os Passos da CHER (kkkkkkkkkkkkkk), você é capaz de analisar quase todos os aspectos gramaticais. Então vamos à explicação de cada pilar:
HIERARQUIA: O substantivo será sempre o mais importante. Ele é o rei! Mas, no campo das orações, o verbo é o elemento em que devemos focar. Eu diria que se o substantivo faz o papel do rei, o verbo é seu primeiro ministro. Ainda vai se curvar em respeito ao rei, mas é o verbo que comanda as paradas.
CONCORDÂNCIA: Ela sempre se dá em função do substantivo, o rei, o todo-poderoso. Seja no campo das orações, em que ela se dá entre o rei e o primeiro ministro, seja em nível micro entre o rei e seus súditos (adjetivos, artigos, pronomes…)
ESTRUTURA: No campo das orações, a estrutura básica é SUJEITO-VERBO-COMPLEMENTO – SVC (sejam estes complementos os objetos direto e indireto, seja o predicativo). Qualquer mudança nessa estrutura acarretará alguma alteração (um exemplo pode ser o uso de vírgulas). Em um nível micro, temos que, por exemplo, o artigo, o numeral, o pronome, sempre vêm antes do substantivo.
REGÊNCIA: É a necessidade ou não de verbos, substantivos ou adjetivos serem acompanhados de uma proposição. Simples assim (o uso da crase, por exemplo, é explicado pela regência, mas isso fica para outra análise).
Vamos aplicar os Passos da CHER na nossa tirinha, então?
Primeiro quadrinho:
Como a HIERARQUIA me diz que o verbo é o que manda nas paradas, é ele que devo encontrar primeiro: SOMOS. Ok?
Pela CONCORDÂNCIA, eu já sei que SOMOS está conjugado: “[nós] somos”, certo? Que elementos na oração equivale a “nós”? MEU PAI E EU. Achamos nosso sujeito porque a concordância sempre se dará entre o substantivo (ou pronome, que substitui o substantivo) que funciona como sujeito e o verbo. Orações sem sujeito, nunca terão verbos no plural, por exemplo: “Há casos e casos” ou “Chove muito em Brasília em dezembro”.
Pela ESTRUTURA, depois do verbo temos o complemento. Vamos identificar que tipo de complemento este verbo pede: se um complemento relacionado ao verbo ou se o verbo apenas faz a ponte para um complemento relacionado ao sujeito. Levando em conta que a CONCORDÂNCIA diz que os substantivos (e no caso pronomes, que substituem substantivos) são os reis, todo-poderosos, você consegue ver que o complemento PARECIDOS está concordando, no plural, com o sujeito MEU PAI E EU? Então temos um predicativo do sujeito e não um objeto direto, por exemplo. É essa relação com o sujeito que vai fazer com que esse predicado seja classificado como predicado nominal e não predicado verbal, porque o foco está no nome, não no verbo! ; )
Pela REGÊNCIA, eu consigo analisar que “parecido” pede uma complementação “em quê?”. Se o Armandinho parasse a fala com apenas “Meu pai e eu somos parecidos”, sem nenhum contexto prévio, o Camilo teria que perguntar “Parecidos em quê?” ou “Parecidos como?” ou “Como assim parecidos?”… Enfim, não seria possível a compreensão total da oração. Isso significa que PARECIDOS demanda um complemento nominal: EM MUITAS COISAS. Vocês conseguem ver que entender a relação entre as partes é que faz com que compreendamos a oração? Ótimo!
E CAMILO, Debbie?
Bom, lembram lá da ESTRUTURA, em que eu disse que o que sai de SVC sofre alguma alteração na estrutura? Perceberam que tem uma vírgula antes de CAMILO? Pois bem, é porque ele é um elemento extra que está direcionando a fala para o colega que está a sua frente, o Camilo. Chamamos isso de vocativo.
Debbie, então toda vez que eu usar o nome de alguém a quem estou me dirigindo eu devo usar vírgula?
Sim. Isso mesmo. Exatamente.
Continuemos a análise:
Segundo quadrinho:
HIERARQUIA: Qual é o verbo? GOSTO
CONCORDÂNCIA: Com quem ele concorda? EU
ESTRUTURA: Eu sei que o que vem depois do verbo é o complemento. Esse complemento se refere ao verbo ou ao sujeito? Ao verbo, o que faz dele um objeto e não um predicativo (como foi o caso da oração da primeira tirinha).
REGÊNCIA: O verbo gostar pede necessariamente a preposição DE, quem gosta, gosta DE alguma coisa. Certo? Sendo, então, mais precisa, DE CONTAS DE MATEMÁTICA é objeto indireto, pela presença da preposição.
Debbie, são dois objetos, então? DE CONTAS e DE MATEMÁTICA?
Não. Vamos pensar na HIERARQUIA e ver a quem DE MATEMÁTICA está subordinado. Se você fosse o Camilo, amigo do Armandinho, falando com outra pessoa, você diria que o Armandinho te contou que não gosta de matemática? Essa informação seria precisa? Não necessariamente. Ele pode gostar de outras coisas na matemática e não gostar das contas. Inclusive, é essa a brincadeira que será usada pelo autor para diferenciar os tipos de contas, as que o Armandinho não gosta e as que o pai dele não gosta (no próximo quadrinho). HIERARQUICAMENTE falando, DE MATEMÁTICA é subordinado a CONTAS, sendo assim um adjunto adnominal, aquele que acompanha um nome. Outro aspecto que me diz que não é outro objeto é a ausência de vírgula entre os dois elementos. A enumeração é uma das três regras básicas de vírgula. Por exemplo, “Eu não gosto de mentiras, de falsidades, de calúnias…” Percebem a diferença?
Debbie, você não analisou o NÃO.
O NÃO é um advérbio. O que podemos analisar dele é que HIERARQUICAMENTE é subordinado ao verbo: GOSTO x NÃO GOSTO. O que vai ser mais interessante de perceber é a correspondência de sentido (a correspondência semântica) com DETESTO no quadrinho seguinte.
[Essa análise hierárquica da subordinação do advérbio ao verbo e não ao substantivo ajuda a diferenciar aquelas duvidazinhas super comuns entre muito X muitos ou bastante X bastantes. Um vai ser advérbio, vai estar subordinado ao verbo e, portanto, não tem plural. Já o outro estará subordinado a um substantivo plural e, portanto, haverá concordância.]
Espero que, depois da análise dos dois primeiros quadrinhos, você esteja começando a se familiarizar com os Passos da CHER. Que tal tentar analisar sozinha ou sozinho o terceiro quadrinho antes de continuar a leitura? Já vou te dar uma dica. Tem um erro gramatical no quadrinho… Distração, provavelmente… Você conseguiria explicar o erro usando os Passos da CHER?
Terceiro quadrinho:
HIERARQUIA: o verbo é DETESTA
CONCORDÂNCIA: quem detesta é ELE
REGÊNCIA: Quem detesta, detesta… ALGO! Aqui está o nosso erro. Provavelmente, na montagem dos quadrinhos, usaram o balão do quadrinho anterior em que o verbo gostar pedia a preposição DE e, na hora de apagar, só substituíram NÃO GOSTO por DETESTA!
A oração deveria ser: Ele detesta contas de luz, água, telefone…
ESTRUTURA: O complemento CONTAS DE LUZ, ÁGUA, TELEFONE está HIERARQUICAMENTE subordinado ao verbo detestar, cuja regência não pede preposição, portanto, é um objeto direto.
Ainda pensando na HIERARQUIA, DE LUZ, ÁGUA, TELEFONE estão subordinados a contas, certo? São vários tipos de conta. Seria possível, inclusive, escrever conta de água, conta de telefone, ou apenas de água, de telefone sem nenhum prejuízo gramatical. Todos são adjuntos adnominais de contas. Houve aqui uma enumeração e, por isso, há o uso de vírgulas. Se entendêssemos que ÁGUA e TELEFONE são objetos, eles teriam que estar subordinados ao verbo. Isso significaria dizer que a oração poderia ser reescrita, sem prejuízo de sentido, “Ele detesta contas de luz, detesta água e detesta telefone”. Obviamente, não é o caso.
Bom, pessoas, espero que tenham gostado de passear por essa análise linguística comigo. Se quiserem mais textos como esse, com orações mais complexas, com coordenação e subordinação, me deixem recadinhos!!!
PILATI, Eloisa. Linguística, Gramática e Aprendizagem Ativa. Campinas, SP: Editora Pontes, 2017.