Nos anos 90, apenas uma empresa conseguiu fazer frente à Capcom e seus games de luta, essa empresa era a SNK. Fundada em 1978 em Osaka, Japão, a empresa produziu games de diversos gêneros, mas foi com os games de luta que ela se consagrou. Art of Fighter, Fatal Fury e, aquele que introduziu o sistema de lutas entre times, The King of Fighters. Todos esses games são lembrados com muito carinho e jogados até hoje, seja nas versões mais antigas ou nas mais recentes. Porém no meio de tanta porradaria e extensos combos, um game diferente apareceu, Samurai Shodown. Ambientado no Japão feudal, tínhamos samurais, ninjas, sacerdotisas e demônios, personagens que, no lugar de socos e chutes, se enfrentavam com espadas, adagas e outras armas.
Com seu primeiro título lançado em 1993, o game se destacou por ter uma jogabilidade baseada em ação e reação, em que qualquer movimento errado poderia abrir uma brecha para um contra-ataque e uma pequena sequência de golpes poderia ser fatal, assim como um duelo entre samurais. A franquia recebeu vários títulos desde então, porém acabou entrando em ostracismo depois 2008, mas agora em 2019 um novo game foi lançado. Samurai Shodown voltou repaginado, com novos gráficos, novas mecânicas e alguns novos personagens, mas mantendo o que os fãs sempre gostaram, uma jogabilidade impecável.
Mas nem só de duelos entre samurais é feita essa franquia, por trás de tudo isso há uma trama que se baseia em eventos históricos do Japão Feudal, além de figuras importantes também desse período. Então afie bem sua katana, pois é isso que veremos hoje, os eventos e pessoas reais que serviram de inspiração para Samurai Shodown. Iza! Jinjou ni, Ippon me Shoubu!
Os games da série se passam próximo ao final do Período Edo, entre 1786 e 1789, também chamado Período Tokugawa. Interessante é que, em Samurai Shodown, esse período é representado com diversos conflitos, no caso, gerados por demônios. Isso contrasta bastante com a realidade desse período, que ficou marcado pela relativa paz em que o país se encontrou durante esse tempo (ah, e claro que não teve demônios também).
Essa relativa paz, ocorreu devido ao rígido controle interno e um forte isolamento econômico. O Xogum era a autoridade máxima e regulava o país através dos feudos através de códigos e leis. A pessoa responsável pelo início desse período foi Tokugawa Ieyasu, que unificou o país depois da lendária Batalha de Sekigahara, no final do Período Sengoku. Inclusive se tiverem interesse sobre esse período, já tratei sobre o assunto no texto sobre o game Nioh. Podemos até considerar esse texto uma continuação histórica do texto anterior, sobre o Nioh. Você pode conferir o texto aqui.
Voltando para Samurai Shodown, o curioso é que, apesar do título, o game possui poucos samurais, a maioria são ronins, guerreiros que vagavam pelo país à procura de trabalhos em que suas habilidades com a espada pudessem ser úteis. Na história do game, uma presença maligna é sentida por diversos guerreiros, inclusive fora do Japão. Com isso eles vão à procura do que pode ser essa ameaça e no caminho acabam se enfrentando, já que cada um tem uma motivação própria para estar ali.
Como já foi dito, muitos desses personagens foram inspirados em figuras reais, mas, como são vários games com dezenas de personagens, por enquanto vamos focar no game atual, de 2019, e no futuro podemos fazer uma parte 2, talvez.
O grande protagonista do game é Haohmaru, um ronin que vaga pelo Japão procurando adversários para testar suas habilidades com a katana. Apesar de ser um ronin, possui um grande “espirito samurai” que é bem enfatizado durante a série. A grande inspiração para sua criação foi Myamoto Musashi, famoso espadachim que afirmava nunca ter perdido uma luta. Musashi, durante sua juventude foi um guerreiro de sangue quente, sempre disposto a causar confusão para entrar em duelos. Porém com o tempo ele se tornou um sábio e próximo do fim de sua vida, escreveu o Livro dos Cinco Anéis, um livro sobre Kenjutsu e artes marciais, sendo considerado o tratado clássico sobre estratégia militar do Japão.
Musashi se tornou uma figura lendária do Japão, com sua vida sendo romanceada em diversas mídias. Um dos pontos mais importantes de sua história foi seu duelo contra Sasaki Kojirō, em que, reconhecendo que seu oponente dominava sua técnica, decidiu usar outra estratégia, desestabilizando psicologicamente seu adversário e se valendo do conhecimento do campo de batalha. Essa rivalidade entre os dois também inspirou outro personagem do game, Ukyo Tachibana.
Ukyo no game é um personagem que utilizada a arte do iaijutsu, a técnica de desembainhar a espada. Apesar de ser baseado no samurai Sasaki, Ukyo faz parte do clã Tachibana, um clã que realmente existe e foi de grande importância durante o final do período Sengoku e durante todo o Xogunato Tokugawa também. Até hoje existem membros dessa família no Japão.
A rivalidade entre Haoumaru e Ukyo só durou um game, já que em Samurai Shodown II foi introduzido Genjuro Kibagami, personagem que foi treinado, junto com Haoumaru, pelo monge Nicotine Caffeine, mas acabou seguindo um caminho mais “sombrio”. Genjuro não é inspirado em nenhum personagem real, mas é viciado em jogos e apostas, muitos dos seus golpes têm representações das cartas de baralho Hanafuda. Esse tipo de baralho foi criado durante o período Tokugawa, como uma alternativa para apostas em jogos, já que monges jesuítas proibiam o uso do baralho convencional, sendo considerado pecado apostar em jogos. Uma curiosidade é que a nossa querida Nintendo, foi criada em 1889 como uma fábrica desse tipo carta, entrando no ramo de games só nos anos 70.
Também dividindo o protagonismo do game e muitas vezes sendo a “embaixadora” da SNK em outras mídias temos Nakururu. Ela é uma sacerdotisa da religião Ainu, sempre tendo uma forte ligação com a natureza, que fica evidente em seus golpes que muitas vezes utilizam a águia Mamahaha e em versões mais recentes do game, o lobo Shikuru.
A religião Ainu é proveniente dos índios Ainu. Essa etnia indígena, em seu auge, viveu em parte da Rússia, China e Japão. Durante o Período Tokugawa, eles receberam direitos exclusivos de comércios com outros clãs do Xogunato, o que auxiliou no processo de sobrevivência dos Ainu. Porém, durante a Restauração Meiji, eles foram forçados a se tornarem cidadãos japoneses, perdendo muito de sua cultura e costumes durante o processo.
Foi somente em 2008 que o Japão reconheceu os Ainu como um grupo indígena, o que lhes garantiu direitos e leis que protegessem sua cultura.
No game temos 02 personagens que servem o xogunato, um deles é o lendário ninja Hattori Hanzo, que praticamente já faz parte da cultura pop moderna, devido as suas diversas aparições nas mais diversas mídias. Não irei me repetir muito sobre essa figura, visto que já explorei bastante sua história no já citado texto sobre Nioh. Recomendo que deem uma olhada lá e voltem aqui depois.
Pronto? Conheceu o ninja? Vamos agora falar sobre seu amigo. Jubei é praticamente o único que realmente é um samurai, um guerreiro que serve a um senhor feudal. Foi inspirado em Yagyū Jūbei Mitsuyoshi, samurai que serviu ao xogunato Tokugawa e no Japão ganhou o status de “lenda”, porém pouco se sabe sobre sua vida real, devido aos escassos registros. Talvez por isso sua vida tenha sido altamente romanceada em livros e em filmes. Também se criou uma lenda de que Jūbei usava um tapa-olho, devido a um acidente durante um treino de espadas com seu pai. Isso não é verdade, já que diversos retratos da época o mostram tendo os dois olhos, porém sua versão romanceada acabou ficando com o tapa-olho, e é assim que ele é representado no game. Vale lembrar que Jūbei também lutou na Batalha de Sekigahra.
Como já dito anteriormente, o Xogunato Tokogawa trouxe um período de relativa paz ao Japão, isso promoveu uma valorização das artes como a pintura em madeira, arte do chá, escrita, educação e o teatro kabuki. O teatro kabuki é conhecido por sua estilização do drama e pela elaborada maquiagem utilizadas pelos atores. Em Samurai Shodown, temos Kyoshiro Senryo, um ator do teatro kabuki que quer levar essa forma de arte para todo o Japão. Durante o combate ele fala e luta como se estivesse numa peça de teatro, sempre se preocupando com a atenção do público.
Hoje em dia o teatro kabuki é a arte mais popular dos estilos tradicionais de drama japonês. E se você está pensando que o pincel kabuki, usado em maquiagens, tem alguma relação com o teatro kabuki, esta certíssimo. O pincel tem esse nome porque era utilizado nas maquiagens dos atores.
Falamos bastante sobre o Xogunato Tokugawa, agora vamos aproveitar e conhecer um membro desse clã. Tokugawa Yoshitora, no game, é o único herdeiro ao xogum, porém ele não está nem um pouco com vontade de assumir essa responsabilidade. Yoshitora várias vezes é representado rodeado de mulheres, isso se deve a sua inspiração real, Tokugawa Ienari. Ele foi o 11º xogum do Período Tokugawa e ficou conhecido por gostar de festas e ter um grande um número de concubinas. Provavelmente hoje em dia ele seria conhecido como um playboy.
Samurai Shodown toma uma grande licença poética ao inserir diversos personagens estrangeiros em sua trama, isso porque, durante o período Tokugawa, era proibida a entrada de qualquer estrangeiro no país. Essa situação mudou no começo da Era Meiji, quando o Japão abriu (na verdade foi forçado a abrir) seus portos para o comércio internacional.
Entre os personagens estrangeiros, podemos destacar a francesa Charlotte Christine de Colde, uma nobre que vai até o Japão confrontar a fonte do mal que assola o país. Charlotte é inspirada em Joana d’Arc, heroína francesa que ficou conhecida por seus atos durante a Guerra dos 100 anos e que acabou sendo acusada de bruxaria e morta na fogueira. Porém, diferentemente de outras figuras reais que aparecem no game e viveram durante o período Tokugawa, Joana d’Arc viveu no século XV entre os anos de 1412 e 1431.
Apesar de não estar presente no game lançado em 2019, não poderíamos deixar de falar do mal que causa todas as calamidades na franquia e que acaba por reunir todos os guerreiros para combatê-lo, Shiro Tokisada Amakusa. Amakusa começa morto durante os eventos do game e é ressuscitado pela deusa das trevas Ambrosia para que ele possa trazê-la para o mundo mortal. Para isso ele utilizada diversas magias e invoca um exército de demônios que saem à solta no Japão causando caos e destruição.
Esse personagem foi baseado em Amakusa Shirō, um ronin que liderou a rebelião Shimabara. Amakusa se converteu ao catolicismo e a ele foram atribuídos poderes milagrosos, com isso ganhou muitos seguidores, sendo conhecido como “mensageiro do céu”. Segundo uma profecia atribuída a São Francisco Xavier, chegaria um homem, enviado do céu, que iria evangelizar e converter todo o Japão ao catolicismo. Muitos acreditavam que esse homem era Amakusa. Como o xogunato proibia o cristianismo, Amakusa iniciou uma rebelião. As tropas do xogum cercaram o castelo onde os rebeldes estavam e assim se iniciou um cerco que duraria meses.
A batalha só foi vencida pelo xogum quando este pediu ajuda aos holandeses para que derrubassem as paredes do castelo com tiros de canhão. Todos os rebeldes foram mortos e Amakusa decapitado, com sua cabeça ficando exposta em Nagasaki como advertência aos rebeldes católicos. Apesar de não ser reconhecido pela igreja católica, os católicos do Japão consideram Amakusa como um santo.
Pois bem pessoal, chegamos ao fim de mais um texto. Espero que tenham gostado. Sobre a franquia Samurai Shodown, se ainda não jogaram, recomendo que comecem pelo game mais recente que saiu para PS4, Xbox One e depois para PC e Switch. É um excelente game de luta que foge dos padrões do gênero. Como sempre, críticas e sugestões são sempre bem-vindas. Até a próxima. Abraços.
Fontes: Samurai Shodown Wiki, Suki Desu, Colégio Web e Info Escola