O que nos torna humanos? Até que ponto podemos modificar nosso corpo e ainda mantermos nossa humanidade? São dilemas como esses que a franquia Deus Ex aborda. Ambientada em um futuro onde a humanidade já tem à disposição aprimoramentos biomecânicos para membros, órgãos e outras partes do corpo que além de substituírem, ampliam e melhoram a capacidade do corpo humano, tornando o usuário um super-humano. Daí o nome da série que vem do latim Deus Ex Machina que significa literalmente “Deus surgido da máquina”. Vamos discutir aqui o quão longe esse futuro está da nossa realidade e os avanços tecnológicos que já estamos presenciando.
A franquia foi criada em 2000 por Warren Spector, trabalhando na Ion Storm, e conta atualmente com 4 títulos principais, hoje já nas mãos da Square Enix. Com temática cyberpunk e combinando elementos de FPS, RPG e furtividade a franquia sempre recebeu boas notas da crítica, sendo a história o ponto forte. Vamos focar nos 2 últimos títulos lançados (Human Revolution e Mankind Divide), já que abordam mais o tema, sendo os 2 primeiros mais voltados para nanotecnologia (que por sinal, também podem render outro texto).
Em Deus Ex: Human Revolution, lançado em 2011, controlamos Adam Jensen, oficial de segurança da Sarif industries, uma das megacorporações que desenvolvem órgãos artificiais, chamados no jogo de aprimoramentos. Durante um ataque à empresa, Adam é seriamente ferido e para não morrer passa por uma grande processo de aprimoramento. A partir daí, Jensen parte à procura dos atacantes e pistas que revelem partes da trama, a qual é cheia de teorias da conspiração, revelando também o crescimento do poder de megacorporações e como isso impacta na sociedade.
Human Revolution também trata de Transumanismo, que é um movimento intelectual e cultural que defende o uso da ciência e da tecnologia para aumentar a inteligência, a longevidade e o bem-estar dos seres humanos. Porém, esse tema fica mais forte na sequência Mankind Divide, então por enquanto vamos falar sobre prósteses. Lembrando que Adam possui diversas armas em suas próteses, isso não é impossível para a tecnologia atual, mas felizmente estamos tomando um caminho mais pacífico.
No game, Adam possui olhos biônicos com recursos de zoom e realidade aumentada. Essa tecnologia já se faz presente no nosso dia a dia, são recursos banais e os usamos o tempo todo, a câmera em seu celular nada mais é que um olho biônico. Lentes usando realidade aumentada são o próximo passo de projetos como o Google Glass. A dificuldade hoje é a conexão entre homem e máquina. Próteses que recebem imagens e transmite para dispositivos moveis já são usadas. A intrincada rede de sensores e nervos óticos é complicada de ser reproduzida, porém testes já foram feitos com chips implantados em olhos de pacientes cegos e os resultados foram muito promissores, talvez nos próximos anos já teremos olhos biônicos plenamente funcionais.
Braços biomecânicos já usam tecnologia de ponta para reproduzir movimentos. O que temos de mais avançado são próteses modulares que podem ser usadas em membros perdidos diferentes e em corpos diferentes, elas são controladas normalmente através da mente, já que usam os impulsos nervosos enviados através dos nervos restantes do paciente. Com 100 sensores e 26 juntas tais próteses conseguem driblar uma barreira que é a complexa movimentação das mãos.
Pesquisas recentes estão focadas na sensação do toque. O tato é um dos sentidos menos compreendido pelos cientistas. Quando você toca ou segura um objeto, seus nervos transmitem diferentes tipos de informações – como peso, temperatura e textura – do braço e medula espinhal até o cérebro, que compila uma imagem do que você está segurando.
Essas sensações podem variar para cada um de nós e para pessoas que tiveram algum tipo de paralisia essas alterações são ainda maiores. Com isso em foco, a DARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa) apresentou em 2015 um projeto de prótese com sensores que transmitem a sensação de toque ao cérebro do paciente. A conexão se dá por chips colocados no córtex motor do paciente, que é responsável pelo movimento, e no córtex sensorial, local onde o cérebro processa a informação sensorial. Os testes apresentaram quase 100% de precisão, onde o paciente, de olhos vendados, deveria responder a cada toque sentido na prótese. Apesar de rudimentar e ser um processo invasivo, os avanços são animadores e com o desenvolvimento de eletrodos mais sensíveis, não irá demorar para chegarmos no nível de Deus Ex.
Próteses para pernas e pés já estão em um nível que até superam o corpo humano, tanto em força quanto em velocidade, guardem os nomes Oscar Pistorius e Markus Rehm que iremos falar sobre eles mais à frente. As próteses contam com processadores que constantemente realizam cálculos considerando mudanças no peso e no ângulo, o que assegura a estabilidade do paciente. Muitas pesquisas estão voltadas para um ato simples, mas que é extremamente difícil para usuários de próteses, o ato de subir escadas. Como o joelho é a principal articulação para esse ato, uma empresa na Islândia, a Ossur Prosthetics desenvolveu o Power Knee, uma prótese que diferente das outras não é baseada em frenagem, chegando bem próximo do movimento natural de caminhar.
Independentemente do quão rápido a tecnologia avance, o maior obstáculo ainda é a interface cérebro-máquina. Os diversos caminhos e atalhos pelos quais nosso cérebro manda e recebe informações, ainda são muitos difíceis de serem replicados e por vezes ainda nem entendemos o processo. Talvez o que separe a nossa realidade, da de Deus Ex, seja só o quanto sabemos sobre o funcionamento de nosso corpo.
Todos esses avanços tecnológicos acabam por levar a um grande conflito ideológico que é bem mais explorado na sequência, Makind Divide lançando nesse ano. Afinal, até onde podemos modificar e trocar partes do nosso corpo e ainda sermos seres humanos?
Sem entrar em spoilers, depois dos eventos de Human Revolution a humanidade sofreu um Apartheid, onde as pessoas “aprimoradas” foram relegadas para bairros sociais e áreas de controle. É nesse contexto que retomamos o controle de Adam Jensen, que está no centro do conflito entre humanos normais e os aprimorados. Mesmo Adam não estando na mesma situação dos aprimorados ele tem que conviver com olhares incomodados e comentários depreciativos. Aqui o debate sobre um tema que está em crescimento atualmente, é fortemente abordado, o Transumanismo. Como já explicado anteriormente essa filosofia defende o uso de biotecnologia para superarmos as limitações do corpo e melhorarmos a condição humana.
Usando isso, se no game podemos aprimorar qualquer parte do corpo a ponto de vencermos a morte, será que ainda somos seres humanos? A morte é o que nos transforma em seres humanos? Certo “preconceito” é gerado contra os aprimorados no game, principalmente por não conseguirmos distinguir o que é natural do que é artificial. É normal do ser humano, criar uma aversão a aquilo que foge do padrão. No remake de Robocop dirigido por José Padilha em 2014, no processo de transformação do protagonista em ciborgue, além do cérebro e dos pulmões também foi mantida sua mão direita. Independentemente do objetivo final, especulou-se que esse seria um recurso de marketing da Omnicorp para mostrar ao público que o Robocop, apesar da aparência, ainda tinha algo de humano por baixo de uma armadura robótica a fim de aumentar a aceitação pelo público nas ruas.
Voltando para nossa realidade, isso pode parecer algo muito distópico, mas vamos relembrar os casos dos atletas Oscar Pistorius nas Olimpíadas de Londres em 2012 e recentemente Markus Rehm nas olimpíadas do Rio de Janeiro. Quando criança, Oscar Pistorius precisou amputar as duas pernas devido a uma deficiência, desde cedo começou a usar próteses e quando se interessou por esportes logo se mostrou uma revelação no atletismo, quebrando o recorde paralímpico dos 100 metros já na sua primeira paralimpiada em Atenas-2004. Mas Pistorius queria mais, queria competir contra atletas sem deficiência. Inicialmente ele foi barrado pela IAAF, a Federação Internacional de Atletismo, com a alegação de que suas próteses lhe davam vantagens sobre os outros atletas. Somente depois de um longo processo judicial e provando que não tinha vantagens devido suas próteses, ele ganhou o direito de disputar em 2011, no Mundial de Daegu, na Coreia do Sul, sendo depois chamado a integrar a delegação da África do Sul nas olimpíadas de Londres em 2012.
Atualmente Markus Rehm, campeão paralímpico de salto em distância em Londres-2012, tenta seguir o mesmo caminho, onde depois de negada sua participação nas olimpíadas do Rio, tenta provar que sua prótese na perna direita não lhe confere vantagens sobre os outros competidores.
Fico a imaginar como seria uma olimpíada no universo de Deus Ex. Pessoal, chegamos ao fim de mais um texto. Gostaram? Críticas e sugestões nos comentários. Deixo recomendado o Scicast #151: Mente, Corpo, Espírito, o Scicast #87: Próteses e o documentário Deus Ex Human Revoltuion – The Eyeborg Documentary. Até mais.
Fontes: O Futuro das Coisas, Tecmundo e Ano Zero