Dando continuidade ao texto anterior, como enfim esse tal de Dr Evidência escolhe que remédio você vai tomar, que cirurgia você vai fazer, ou simplesmente não fazer nada porque é uma virose (risos)?
Em primeiro lugar o tratamento precisa ser seguro. Deve ser submetido a todas as fases internacionalmente padronizadas para seu desenvolvimento sem demonstrar malefícios superiores aos possíveis benefícios.
Após considerar que um tratamento tem um perfil de segurança aceitável (não existe tratamento seja com remédios ou com cirurgias 100% livre de risco de efeitos colaterais!), o seu médico checa se ele é eficaz, ou seja, lê nos estudos feitos com ele em grandes populações se houve melhora dos sintomas, e/ou mudança na forma como a doença progride e o percentual de pacientes curados. Aqui temos um ponto crucial na escolha do tratamento, pois existe uma classificação para o quanto os estudos são confiáveis.
Essa classificação põe no topo o estudo que cumpre todos estes itens: deve ter a maior quantidade de participantes possível (quanto maior a quantidade de pacientes mais confiável é o estudo); deve ter um grupo de pacientes sendo submetidos ao placebo (simulação do tratamento proposto, porém sem o procedimento que está sendo testado ou a substância que está sendo averiguada, classicamente é uma pílula de farinha idêntica a pílula real); os pacientes que serão submetidos ao placebo e ao tratamento real devem ser determinados de forma aleatória (randomização); e tanto o pesquisador quanto o paciente não podem saber quem foi submetido a placebo e ao tratamento real (duplo-cego) até o fim do estudo.
Cumprindo todos esses itens é dito que ele tem um bom nível de evidência e o tratamento funcionando nele tem maior chance de funcionar em você. Porém nem todos os estudos podem ou conseguem cumprir todos os itens (por exemplo há estudos em que é impossível ter placebo, simplesmente porque deixar o paciente sem tratamento o levaria a morte ou a evolução grave da doença), sendo assim, quanto menos itens cumpridos menor a chance dos resultados apresentados por ele corresponderem aos resultados na prática com você.
Reparou que até agora só falei em chances? Essa é justamente a última parte a ser considerada no processo de escolha de como tratar um paciente e provavelmente a mais difícil: avaliar a chance de um tratamento que funcionou no estudo funcionar em você. A efetividade é justamente o quanto um tratamento eficaz em um estudo populacional tem o mesmo benefício no cotidiano. Mas se ele funcionou em dezenas de milhares de pessoas, por que ele tem chance de não funcionar comigo?
Primeiro pelo custo, um tratamento pode ser eficaz em um estudo controlado, mas muito caro para ser custeado pelo paciente ou pelo governo. Nós temos esse problema particularmente no Brasil com tratamentos desenvolvidos na Europa e nos EUA que, ao serem importados, custam pequenas fortunas. Daí vem a discussão de custo-benefício, que merece um texto exclusivo pra ela, mas basicamente é sobre o quanto vale gastar quando o medicamento não cura, mas apenas mantém a doença sobre controle ou melhora os sintomas.
Pode ser também que a medicação não seja tão eficaz com você porque você é muito diferente da população estudada nele, seja por ser de outra etnia, de outro país, sua doença se apresentar de forma diferente da apresentada pelos pacientes do estudo, estar numa faixa de idade diferente, tomar outros medicamentos e/ou ter outras doenças associadas que a população estudada não tinha.
A avaliação da efetividade é atualmente onde a experiência pessoal do médico ganha mais importância, pois quanto mais pacientes ele submete àquele tratamento, mais noção ele tem da real eficácia do medicamento na individualidade de cada paciente. Para diminuir a chance de erros de avaliação dos menos experientes, tem crescido o número de estudos observando a efetividade de um tratamento em cenários reais com o envolvimento de dezenas de médicos e Instituições compartilhando suas experiências. Assim mais uma vez temos o conhecimento gerado por uma quantidade enorme de pacientes sendo observados por uma grande quantidade de médicos em detrimento de um médico observando poucos pacientes.
E quanto as terapias conhecidas como alternativas? Por que o Dr Evidência normalmente não as prescreve para o seu paciente?
Lembra do placebo que falamos lá em cima? Efeito placebo é a capacidade do paciente de obter melhora mesmo submetido a uma simulação de tratamento por simplesmente acreditar na eficácia do tratamento e do seu médico. Por exemplo o paciente que para de sentir dor em determinado órgão após o médico mentir que retirou o órgão cirurgicamente, ou que melhora da dor nas costas após tomar um analgésico falso de farinha. Não há ainda uma explicação muito clara de como a mente humana consegue produzir esse efeito. O que se sabe é que ele deve ser isolado e comparado ao tratamento em avaliação para que você possa afirmar que a melhora realmente é fruto da intervenção proposta no estudo e não produto do placebo. Outra curiosidade é que o efeito placebo pode se manifestar independente do tratamento, basta que o paciente acredite nele e em quem o propõe.
E os estudos que não podem ter o efeito placebo isolado (aqueles que se o paciente ficar sem tratamento pode morrer ou ter consequências graves)? Nesses estudos, que já têm um nível de confiança menor do que os com placebo, o novo tratamento é comparado diretamente com os tratamentos já estabelecidos.
Portanto, se um tratamento em uma determinada condição não tem melhores resultados do que o placebo ou do que os tratamentos já existentes, ele não possui eficácia, logo é geralmente descartado. E aí está a grande briga do Dr Evidência com o Dr Estranho que recomenda estes tratamentos: a ausência de estudos confiáveis que comprovem que a eficácia é do tratamento e não pelo efeito placebo.
Agora que você entendeu o passo a passo de como seu médico escolhe seu tratamento, eu gostaria de encerrar o texto falando como a medicina chegou ao seu ápice e como o Dr Evidência é insuperável, mas estamos em um site de divulgação científica e a ciência sempre tem os poréns e todavias, além de sempre estar em constante evolução (graças a Deus, se não minha profissão seria muito chata!).
Atualmente alguns médicos – que vou chamar de Dr Hyde – escolhem a terapêutica não pelos estudos mais atuais e confiáveis, mas sim no interesse financeiro dele próprio ou das grandes farmacêuticas. Por se disfarçarem de Dr Evidência para angariar suas vítimas, são os responsáveis pelo atual modelo médico ter seus momentos de desconfiança pelo grande público. Sempre que desconfiar de um tratamento proposto, procure uma segunda opinião, há uma enorme maioria de Drs Evidência em detrimento de uma pequena minoria de Drs Hyde.
O Dr Evidência também está em contato com o conhecimento proveniente do Big Data em busca da medicina personalizada, o tratamento sobre medida para cada indivíduo. Assim poderemos adequar o tratamento de acordo com todas as variáveis únicas dos nossos pacientes, incluindo o genoma! O Dr Evidência talvez esteja nos seus últimos anos, irá deixar tantas saudades quanto o Dr Tiranossauro, mas estamos todos aguardando ansiosamente pela sua próxima evolução.
Para se aprofundar:
-Artigo didático sobre medicina baseada em evidência: http://www.scielo.br/pdf/%0D/ramb/v46n3/3089.pdf
-Fluxograma das fases de desenvolvimento de um tratamento: https://ciencianamidia.files.wordpress.com/2013/12/pesquisa.jpg
-Classificação de nível de evidência: http://3.bp.blogspot.com/-RAv1wAYEClE/UifPQm1HqqI/AAAAAAAAGK8/zQlkZ87I_Ik/s1600/Screenshot+2013-09-04+at+21.23.28.png
-Blog que me inspirou a fazer o texto: http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com.br/
Diogo “Black” Ribeiro. Médico, com especialização em Cirurgia Geral e Coloproctologia. Aprendeu a ler com a revista superinteressante, e viaja para os plantões escutando Scicast. Após reclamar de como as pessoas não dão bola pra ciência levou um sermão da esposa, biológa com mestrado, que a culpa de existir o ignorante é da falta de empenho de quem tem o conhecimento. Desde então empenha-se em aprender a escrever textos de divulgação científica para que a filha Júlia de 2 meses leia um dia.