Após um hiato breve por conta das férias de julho, voltamos aos trabalhos. Esta é a primeira parte de uma série de três postagens nas quais dissertarei sobre alguns aspectos do fazer e viver esta entidade abstrata chamada “ciência”.
A ideia para esta trilogia surgiu de uma impressão incômoda que tenho sentido já há algum tempo e que, conversando com mais gente, descobri que não estou sozinho no meu desconforto. A situação a qual me refiro é o aparente paradoxo entre estarmos vivendo em um futuro inimaginável pouco mais de 15 anos atrás, com toda a sorte de benesses que a tecnologia nos proporciona, e um crescimento de certa forma acachapante de movimentos contrários a várias conquistas que a humanidade conseguiu a duras penas nos últimos três séculos. Sim, me refiro a toda sorte de descalabros como Terra Plana (trollagem, só pode!), anti-vacinação, anti-evolucionismo, curas quânticas, pílulas milagrosas contra o câncer (!) e por aí vai, para ficar em somente alguns. Não, e não vou linkar nada. Vocês sabem do que estou falando (ou pelo menos deveriam saber) de modo que não vou dar relevância a este tipo de iniciativa. Então, para começar a série, vou contar a historinha de um senhor que quis ser uma voz dissonante em sua época, lutando contra as conspirações imperialistas e propondo que “um novo mundo é possível”. Não preciso dizer que excelentes resultados ele conseguiu!
Para começar, um aviso para quem quiser se aprofundar sobre métodos científico, pseudociências, filosofia da ciência, etc, é só clicar nos links e tomar conhecimento dos materiais correspondentes. E para quem quer coisas a mais para ler e/ou ouvir, sugiro estes podcasts e estes blogs. Então, vamos lá. Partiu “Arquivo Confidencial: Trofim Denisovič Lysenko (ou no original Трофи́м Дени́сович Лысе́нко).
Lysenko nasceu em 1898, em Karlovka, cidade que hoje pertence à Ucrânia, mas que na época fazia parte do Império Russo e depois da União Soviética. Como nascera em uma família de camponeses, desde estudante seu interesse pendeu para o lado da agricultura e agronomia. Um de seus estudos mais comentados foi a tentativa de usar as interações entre temperaturas e crescimento das plantas, tendo relativo sucesso com a conversão de “trigo de inverno” em “trigo de primavera”. O trigo-de-inverno precisa de um período de temperaturas muito baixas para produzir na primavera seguinte, o que para a realidade ucraniana e russa, é fácil de ser conseguida. Todavia, no final dos anos 20 aconteceram algumas variações climáticas na região do Azerbaijão que fizeram com que os invernos fossem menos frios do que deveriam, levando à perda de produtividade. O que Lysenko fez em 1927 e 1928 foi tratar as sementes de trigo com umidade e frio artificiais, induzindo as mesmas a produzirem na primavera seguinte, independente da variação de temperatura ambiental. Na verdade, Lysenko não descobriu nada novo. Este processo, chamado “vernalização”, que ocorre naturalmente com muitas plantas, já era conhecido na prática pelos agricultores da região e estudado por cientistas desde o final do século XIX. Todavia, Lysenko batizou o processo de “jarovização” e caiu nas graças da nomenklatura do Partido Comunista Russo, que na época tinha com líder máximo Josef Stalin. A União Soviética enfrentava crises maciças de fome e carestia pela combinação de problemas climáticos e as desastradas tentativas de coletivização da agricultura. Lysenko foi visto como a salvação da lavoura (pun intended) e incensado como líder de uma nova revolução agricultural.
Sua teoria, batizada de Lysenkoismo, fazia uma salada entre os princípios marxistas e o lamarckismo, embora ele sempre dissera que sua doutrina era única e totalmente nova. O Lysenkoismo era baseado sim na herança de caracteres adquiridos e na ideia que os organismos cooperavam ao invés de competirem. Ele rejeitava totalmente as ideias de hereditariedade de Mendel e a evolução por seleção natural darwiniana, por considerar estas teorias “capitalistas e imperialistas”. Assim, ele advogava que era possível transformar centeio em trigo e trigo em cevada, que seria possível transformar ervas daninhas em culturas graneleiras e que certas plantas “ajudavam” as outras a crescerem. Seus experimentos envolviam misturas não usuais de fertilizantes, enxertias, desbaste de folhas, cruzamentos entre espécies diferentes e tratamentos de frio e umidade em sementes. Dava certo? Às vezes sim, às vezes não.
Muitas de suas práticas realmente acontecem na natureza e hoje fazem parte do escopo de estudos científicos sérios, como a ideia de colaboração entre espécies (chamada de facilitação) ou do corte seletivo de folhas e/ou frutos para aumentar a produtividade do restante (poda/raleio). Por isso, muita coisa, de fato, dava certo. Todavia, os experimentos que davam errado ou eram descaradamente fraudados até atingirem as conclusões desejadas ou não eram comunicados aos pares. Os resultados não eram publicados em periódicos e sujeitos a análise crítica por outros acadêmicos. O destino de tudo o que Lysenko e sua equipe faziam era o Pravda, o jornal oficial de propaganda do Partido Comunista. Além disso, houve perseguição, prisões e execuções em massa a todos os cientistas que se opunham às ideias de Lysenko. Aproximadamente 3.000 pessoas sofreram alguma sanção, inclusive seu maior incentivador no começo da carreira, Nikolai Vavilov, que morreu na prisão em 1943.
As ideias de Lysenko formaram as bases da ciência agronômica oficial da União Soviética e de vários países satélites do Leste Europeu até a morte de Stalin em 1953, tendo evanescido lentamente até ser totalmente banida em meados dos anos 60, com a União Soviética já sob a tutela de Brezhnev. Todos os cientistas perseguidos foram posteriormente perdoados e reabilitados, inclusive os mortos. Todavia, a agricultura soviética demorou a se recuperar e apresentar a produtividade pré Lysenko e suas experimentações não fundamentadas. Na verdade, todo o campo das ciências biológicas e agronômicas demorou vários anos para retomar sua importância e vigor como ciências de fato. Lysenko morreu em desgraça em 1976, tendo ganhado somente uma pequena nota de falecimento no jornal Izvestia, e mesmo assim, dois dias depois de sua passagem.
Para terminar o texto, gostaria de me inspirar em um ilustre morador de Eternia e comentar uma pouco sobre o que a história deste “cientista” nos ensina. Em primeiro lugar, tenho que dizer que estes acontecimentos ensejam várias interpretações possíveis, inclusive defendendo pseudociências e negacionismos os mais diversos, apoiando-se no fato de que as vozes dissonantes foram duramente perseguidas na época e o Lysenkoismo foi alçado ao status de teoria oficial (não preciso nem dizer sobre o que estou falando aqui, já que não linkarei ninguém novamente). Contudo, a mensagem que gostaria de passar é que a razão de a “ciência” ser até o momento a melhor forma de entender o mundo tem a ver justamente de sua natureza não dogmática e não cristalizada. Tudo pode ser contestado, falseado e desaprovado a qualquer momento e por qualquer pessoa, desde que esta pessoa respeite o método científico, isto é, elabore uma hipótese, faça um experimento para testar esta hipótese e colha e interprete os resultados deste experimento sem ideologias prévias. Por ser um método muito sujeito a equívocos honestos, uma vez que a capacidade humana de errar é ilimitada e os vieses são uma realidade, os experimentos e os resultados devem ser publicizados, para que outros cientistas repliquem o que foi feito e achem os erros cometidos. Se o que foi proposto refletir a realidade e resistir ao escrutínio de outrem, a hipótese passa a ser considerada válida. Se não resistir, ela é rejeitada e a vida segue. Isso acontece aos montes todos os dias, vide o caso recente das bactérias arsênicas.
Quem não está envolvido no meio acadêmico e nunca participou de um processo de submissão de artigo para periódicos científicos de renome não sabe o inferno que é lidar com as críticas do pares. O povo, por ser anônimo, vem para cima sem dó. Gordon Ramsay é fichinha perto de revisores de periódicos. Só para citar um exemplo meu, no mês de julho último tive um artigo em colaboração com um amigo aceito para um periódico bastante renomado na área de ecologia e evolução. Todo o processo durou quase um ano e os revisores bateram na primeira versão do artigo sem nenhum pudor. As críticas foram tão duras e severas que passamos meses re-escrevendo, praticamente mudamos tudo o que havíamos feito, até o título teve que mudar. Por quê? Porque nossa ideia era muito boa, merecia ser publicizada, mas a metodologia que usamos para testá-la na primeira versão tinha falhas e estava sujeita a erros que poderiam levar a resultados espúrios e incorretos. Não era má-fé nossa, era viés e ignorância sobre métodos mais atuais. Ao seguirmos as orientações de pares mais experientes, refizemos as análises e as conclusões iniciais continuaram de pé. Desta forma, o artigo foi aceito e nossa hipótese será considerada válida até alguém vir e propor algo melhor. O que o público fora da academia não entende, às vezes, é que a ciência na média é feita por pessoas sérias e comprometidas, eu diria até idealistas, e que fraudes são muito, muito mal vistas. Nada desmoraliza mais uma carreira do que ser pego em uma mentira ou em um plágio. A comunidade bane mesmo.
Não estou dizendo que não existe picaretagem por aí. Sim, e muita, mas estas não duram para sempre e tão logo descobertas, causam a maior confusão (Sessão da Tarde feelings). Por isso, pesquisa engavetada não serve para nada. Qualquer pessoa que despenda uma quantia de tempo e dinheiro tentando provar uma hipótese deve publicar o que achou, de preferência em bons periódicos, com corpo editorial sério, como revisores comprometidos e entendidos do assunto e em uma linguagem universal (sim, a ciência hoje fala inglês, assim como já falou latim. Guarde seu mimimi e aprenda o idioma!). E aí, entramos no assunto do segundo artigo desta série, as publicações científicas e o problema das assinaturas vs. acesso aberto. Até a próxima!