Era uma vez um jovem acadêmico que não concordava com o modus operandi das grandes publicações de artigos científicos, de manter artigos de pesquisas relevantes para a comunidade protegidos atrás de paywalls. Tal jovem, que por acaso é um programador bastante habilidoso resolve então fazer algo a respeito.
Do alto de seu idealismo, o acadêmico recém-convertido em ativista digital consegue acessar uma grande quantidade de arquivos protegidos na intenção de compartilhar o conhecimento, que sob seu entendimento pertence a todos (e é verdade). Obviamente que tal ato desperta a ira das publicações, que passam a perseguí-lo como um hacker, um pirata, um ladrão, um criminoso.
Soa familiar? Se você acompanhou as notícias de tecnologia nos últimos cinco anos deve se lembrar do caso Aaron Swartz e seu trágico desfecho. Agora, pouco mais de três anos após sua morte uma nova ativista está chamando a atenção do mundo para um novo caso similar.
Seu nome: Alexandra Elbakyan.
O caso de Elbakyan começou a repercutir alguns meses atrás. Ela, uma bioengenheira de 27 anos nascida no Cazaquistão e que atualmente reside na Rússia, criou um repositório de artigos chamado Sci-Hub em 2011 e o vem alimentando desde então com documentos em sua maioria outrora protegidos pelas rígidas regras de grandes periódicos. Atualmente o banco de dados conta com mais de 47 MILHÕES de artigos e a tendência é só crescer.
Elbakyan diz que sua visão de que os artigos acadêmicos deveriam ser libertos a fim de se tornarem acessíveis por qualquer um é antiga, e não foi diretamente influenciada por Swartz (ela diz que caso ele estivesse vivo é possível que eles tivessem se tornado amigos, ou irmãos de armas penso eu); isso é compreensível já que o Sci-Hub é bem antigo, aconteceu dele ter ganho os holofotes agora.
Cabe aqui notar uma diferença entre Swartz e Elbakyan: o primeiro, diferente dela, não chegou a compartilhar publicamente todos os milhões de artigos que ele surrupiou da biblioteca JSTOR, utilizando-se da infraestrutura do MIT (Swartz no entanto era um graduando de Stanford e posteriormente um pesquisador em Harvard).
Elbakyan diz que construiu o repositório (ela também é programadora web) porque na época havia, tal como hoje grande demanda de pesquisadores e profissionais por artigos científicos, muitos dos quais são protegidos por paywalls. Por dois anos ela alimentou o site manualmente, mas ao entender que tal trabalho de formiguinha era insuficiente e cansativo ela pôs a cuca para funcionar, e desenvolveu um script que fazia todo o trabalho por ela.
De 2013 para cá o programinha que Elbakyan criou furou o bloqueio de diversos periódicos e bibliotecas, hospedando o Sci-Hub com dezenas de milhões de documentos. E mais importante, todos livres para consulta pública. Não é preciso carteirada nem abrir a carteira. Ela vem sendo comparada não só a Swartz como também a Edward Snowden, por seu ato em compartilhar os artigos com toda a comunidade global.
É importante notar, o site era voltado única e exclusivamente para pesquisadores de sua área (membros do fórum de biologia molecular que ela frequentava), mas dada a eficiência do script e a quantidade titânica de artigos hospedados, logo todo mundo começou a acessar o site.
O problema é que Elbakyan, tal qual Swartz cutucou um tigre com vara curta. As grandes publicações e periódicos fazem rios de dinheiro todos os anos mantendo os artigos protegidos; em 2015 o lucro foi estimado em absurdos US$ 10 bilhões. Quem vê essa grana? Com certeza não é o pesquisador, ou você acha que a Nature ou a Science dividem o que embolsam?
Há de se convir também que o mundo dos periódicos acadêmicos é quase uma Terra de Ninguém: os mais conceituados impõem duríssimas provas e revisões e mesmo que os dados estejam mais do que corretos, não são raras as vezes em que um artigo é rejeitado por não ter o formato desejado, ou trocando em miúdos “não vai bombar” entre os acadêmicos. A profª. dra. Suzana Herculano-Houzel, nossa neurocientista favorita passou por uma dessas com a Science, que recusou sua pesquisa que derrubou a ideia de que seríamos primatas especiais por considerarem que seus dados “não estavam certos”.
Outros, como a PLOS ONE são duramente criticados porque se resumem ao método “pagou, entrou”: a comunidade acadêmica em geral não concorda com a ideia do pesquisador ter que enfiar a mão no bolso para indexar seu trabalho, mas por outro lado tudo lá publicado está livre para quem quiser ler.
O grande problema é a credibilidade: em que canal o cientista vai preferir publicar, no que aceitará seu artigo mediante pagamento mas o disponibilizará para todos, ou aquele que é um chato de galocha e corre o risco de nem aceitá-lo por motivos escusos, e caso passe o esconderá atrás de um paywall mas detém de mais prestígio? Nesse cenário muitos preferem os periódicos fechados, e é bom ressaltar que ao menos o PLOS ONE faz revisão de pares direitinho. Já outros livres… bem, é complicado.
É por causa desse cenário maluco que aquilo que Aaron Swartz fez é importante. O hacker white hat foi um dos desenvolvedores mais influentes de sua geração, já aos 14 anos participou ativamente da criação das especificações do RSS. Ele foi um dos principais responsáveis pela criação do Creative Commons e do Reddit. Mas foi seu ato de rebeldia contra o JSTOR o ato mais significativo. Ainda que os artigos não tenham sido liberados, Swartz trouxe à tona a discussão de que o conhecimento é direito de todos e não deve ser restrito a poucos que podem pagar.
Obviamente ele foi visto como um criminoso. Ele foi incriminado sob a acusação de pirataria, ao ter violado a segurança do JSTOR. Caso condenado poderia ter que cumprir 35 anos de prisão.
Para um jovem de 26 anos introvertido, com um quadro de depressão se ver de repente perseguido e sofrendo bullying das autoridades (segundo o próprio e o professor da Faculdade de Direito de Harvard e supervisor do ativista na época Lawrence “Lerry” Lessig), e a ameaça real de ir para a cadeia se revelou mais do que ele podia suportar.
No dia 11 de janeiro de 2013 Aaron Swartz cometeu suicídio por enforcamento. As causas acerca de sua morte nunca foram totalmente esclarecidas (há quem acredite que ele foi silenciado), mas de qualquer forma as acusações contra ele foram posteriormente retiradas.
Elbakyan também tem seu JSTOR particular: a Elsevier, considerada a maior publicadora científica do mundo e curiosamente a quem Swartz direcionou seu manifesto publicado em 2008 e o que a ativista reconhece ser uma curiosa coincidência.
A publicadora sem surpresa acusa Elbakyan de roubo e de se proteger fora do alcance da lei norte-americana, e por ter aproveitado para mudar o domínio do Sci-Hub de “.org” para “.io” e dificultar a derrubada do repositório.
A ativista diz que pretende se defender caso advogados estejam dispostos a trabalhar pela ideia e não por dinheiro. É, pelo visto tem uma ou outra coisa que ela não entende sobre como o mundo funciona…
Já a Elsevier se defende, dizendo que joga limpo e libera o acesso aos artigos de graça para universitários inscritos no portal e que os autores têm direito a um link de 50 dias de vida para divulgação, fora outros programas. Mas convenhamos que isso não é o bastante, pesquisas importantes devem ser compartilhadas com o maior número de pessoas possível e não ficar restritas à mesquinharia de grandes periódicos, que lucram muita grana protegendo os artigos.
Enfim, essa briga ainda irá muito longe e é fato que muitos outros portais de artigos pagos entrarão no coro para pedir a cabeça de Alexandra Elbakyan numa bandeja de prata, tal como indiretamente a de Aaron Swartz foi servida. Espero de coração que a história não se repita.
Se ficou curioso sobre o Sci-Hub, acesse-o aqui.
Fonte: The Washington Post.
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Para mais informações sobre a polêmica de acesso aberto a artigos acadêmicos vs paywall, a trágica história de Aaron Swartz e muito mais, não deixe de ouvir o SciCast 104 sobre o assunto.
UPDATE: se estiver interessando em saber mais, o André também fala um pouco sobre o assunto aqui.