Nesta semana temática sobre evolução, não poderia, em hipótese nenhuma, furtar-me de escrever sobre o cientista que mais influenciou a minha vida acadêmica dentro da Biologia, desde os meus tempos de calouro magrelo e espinhento dos primeiros semestres do curso. Graças a este senhor, cuja biografia deitarei ao papel em instantes, hoje mantenho abastecido este nobre espaço do Portal Deviante com textos sobre os mais variados temas, sempre enveredando, obviamente, para o lado biológico dos tópicos tratados. Ou seja, para o bem e para o mal, hoje eu escrevo minhas groselhas por aí porque tenho como objetivo de vida ser igual ao maior cientista evolutivo que o mundo já viu na segunda metade do século XX: Stephen Jay Gould.
Já adianto que sou bastante visceral quando as memórias emotivas afloram. Tempos bons da minha vida acadêmica, os quais passei fechadinho no quarto da república onde morava lendo sem parar os livros dele, trazem lembranças muito sensoriais para mim. Digo isso porque não sirvo para isentão ao escrever sobre Stephen Jay Gould, da mesma forma que peço para não me cobrarem coerência por escutar Pantera e ao mesmo tempo cantar a plenos pulmões qualquer música do Bon Jovi. Sistema límbico, nada além disso. Feitas as ressalvas, vamos ao que interessa: quem é, afinal, este senhor que tantas emoções desperta neste humilde escriba?
Bom, infelizmente, não é, era. Gould perdeu a luta contra a entropia em 20 de maio de 2002, quando faleceu aos 60 anos em sua casa, no Bairro do SoHo em New York, vitimado por um câncer. O segundo deles. Pois é, pelo jeito, Gould tinha alguns genes em não muito bom estado, uma vez que ele já havia anteriormente lutado e vencido um tumor maligno raro no ano de 1982. Nesta primeira vez, o diagnóstico havia sido mesotelioma peritonial, o qual acomete pessoas que entram em contato prolongado com asbesto (ou amianto), o que, aparentemente, não era o caso dele. Ao recuperar-se totalmente da doença, após dois sofridos anos em que encarou um pesado tratamento, Gould escreveu uma coluna para a revista Discover na qual relatou sua racionalização para tentar ponderar o que significava o prognóstico dado a ele, que afirmava que “mesotelioma é incurável, com uma mediana de mortalidade de apenas oito meses após a descoberta”. Por ser um cientista treinado, ele sabia que, estatisticamente, a mediana significava apenas aquele ponto no meio da distribuição em que 50% dos pacientes morria após oito meses, mas a outra metade sobrevivia muito mais. Como ele tinha descoberto no início, estava se tratando com o que havia de melhor na época, era jovem e estava otimista, sua aposta era que seu caso cairia no lado da curva dos sobreviventes. Para sorte de toda humanidade, ele estava certo.
Por vinte anos desde aquele fatídico dia de julho de 1982, ele escreveu sem parar até se tornar o maior divulgador científico na sua área. Stephen Jay Gould tem uma envergadura moral dentro do escopo das Ciências Biológicas compatível com o que Carl Sagan fez na Astronomia. A diferença é que Sagan deixou como sucessor ninguém menos que Neil DeGrasse Tyson. Gould, bom, deixe-me pensar. Hum, é, de fato, ninguém digno de nota fez sombra a sua obra até agora. Mas, tirando o fato de eu estar parecendo o louco do caixote defendendo a genialidade de alguém que já virou adubo faz quase vinte anos (sem ofensas, Gould adoraria a metáfora!), o que de concreto este exemplar de Homo sapiens fez de tão importante?
Vamos lá, mais ou menos em ordem cronológica: ele desafiou um paradigma que até então ninguém havia tido coragem de pôr em cheque: o da evolução lenta e gradual. Até então (anos 1970), a ideia vigente na teoria evolutiva era que as espécies iam lentamente acumulando mudanças, uma adaptaçãozinha aqui, outra adaptaçãozinha ali até que a nova morfologia estivesse tão díspar da original que o organismo poderia ganhar status de nova entidade taxonômica. Gould, por ser paleontólogo, observara que os organismos encontrados nos registros fósseis passavam longos períodos de tempo sem mudanças morfológicas aparentes, mas que de repente, ocorriam explosões de diversificação que transformavam totalmente os organismos. Estas mudanças abruptas no registro fóssil acenderam o alerta e a teoria do gradualismo filético passou a não fazer sentido para Gould como sendo o único mecanismo para explicar evolução. A evolução poderia ocorrer mais rápido do que se pensava antes e por rápido eu estou falando em medida de tempo geológico. Um milhão de anos para um geólogo dá tempo de tomar um cafezinho e olhe lá! Então, em 1972, Gould e seu colega Niles Eldredge publicaram um artigo propondo a hipótese do Equilíbrio Pontuado, defendendo que, às vezes, o ambiente se transforma rápido demais para que as espécies tenham tempo de acumular mudanças um passinho por vez. Obviamente que muita coisa mudou desde aquela época, o gradualismo não foi derrubado totalmente como uma explicação para as mudanças evolutivas e muitos outros mecanismos foram e estão sendo descobertos. Todavia, para a época, este artigo representou uma quebra de paradigma no sentido kuhniano da palavra, daquelas que de tempos em tempos são necessárias para chacoalhar as estruturas do debate acadêmico confortável e cheio de certezas que muitas vezes se encontra. Se na época o bagulho foi louco, imaginem hoje, com as redes sociais, os comentaristas de Portal e toda a inteligentsia que habita as Internets da vida.
Só que o homem era motoboy de treta de carteirinha, e, não satisfeito com a primeira polêmica, resolveu propor uma nova hipótese para explicar o porquê de certas características morfológicas existirem, mesmo sem um papel adaptativo óbvio à primeira vista. Em um famoso artigo escrito em parceria com Richard Lewontin intitulado The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm (1979), no qual os autores defendem a tese de que certas características morfológicas dos organismos surgem não como produto de seleção natural per se, mas como subprodutos da evolução de outra característica com potencial adaptativo, esta sim selecionada. Este conceito foi mais bem elaborado posteriormente por Gould e sua colaboradora Elisabeth Vrba (1982) em um artigo no qual ambos autores propuseram batizar de “exaptação”. Quem quiser um exemplo, escute o episódio #187 do Scicast, em que eu participo dando meus humildes pitacos sobre a Caatinga. Tem um trecho em que falo sobre exaptação na flora deste riquíssimo bioma. Quem ainda não ouviu, faça, e quem já ouviu, não custa escutar de novo (depois eu negocio minha parte do jabá :-)).
E não é só isso. Como as coisas andavam calmas demais, com o tédio começando a bater na porta, Gould resolveu arrumar encrenca com outro grande pilar da Biologia, Edward O. Wilson e sua sociobiologia. Wilson é vivo até hoje e é, sem dúvida, um grande expoente da área. Todavia, como sabemos, todo mundo que promove ideias muito fora do curso padrão das coisas, acaba levando chumbo grosso, como acontecera com Gould e o equilíbrio pontuado. Desta vez, foi Wilson a vítima do bullying acadêmico. O senhor Wilson é um renomado especialista em formigas que, a partir de seu trabalho com estas notórias espécies sociais habitantes de grandes colônias, propôs a teoria de que todos os comportamentos, mesmo os humanos, são produtos da seleção natural, portanto são herdados na sua maior parte, com pequenas influências dos estímulos ambientais e experiências passadas. Em suma, o determinismo biológico desempenha um papel em moldar o comportamento muito maior do que se pensa, e que, portanto, o livre arbítrio é uma confortável ilusão. Stephen Jay Gould combateu esta visão fatalista de Wilson sobre o comportamento até o final de sua vida, sendo famosas suas confusões com o “tiozinho das formigas” nos corredores de Harvard, onde ambos eram docentes.
Além disso, nas horas de folga, entre um jogo de beisebol aqui e uma briguinha com um colega ali, ele escrevia seus ensaios para a revista “Natural History”, os quais foram publicados ininterruptamente de 1974 até 2001, somando mais de 300 peças de divulgação científica, reunidas em diversas coletâneas, a maioria delas publicadas no Brasil. Isso fora as publicações em periódicos científicos revisados por pares, o que nos mostra que talvez o dia para ele não tivesse as mesmas 24h que tem para todos nós, pois, além disso, ainda encontrava tempo para receber prêmios e dar entrevistas para a mídia. Sua obra de 1967 até 2000 perfaz 479 artigos em periódicos, 22 livros, 300 ensaios populares e 101 revisões de livros técnicos. Para encerrar sua carreira com chave de ouro, já brigando contra o seu inimigo derradeiro, um adenocarcinoma pulmonar, Gould terminou o livro “The Structure of Evolutionary Theory”, um tijolo de mais de um milhar de páginas resumindo o trabalho de toda a sua breve, mas prolífica vida.
Gould, ao contrário de outros por aí, não foi só um divulgador científico que arrumava polêmicas vazias para continuar nos holofotes sempre que se esqueciam dele. Foi, antes de tudo, um pesquisador que ajudou a fazer avançar os campos da paleontologia e da evolução, desafiando o consenso da época e propondo explicações alternativas para coisas que pareciam consolidadas. Se cientistas não tiverem um espírito rebelde para buscar teses desconfirmatórias muito mais do que concordantes com o status quo, então não está honrando o papel que a sociedade lhes outorga como criaturas pagas para tornar a existência humana menos miserável. Gould era um deviante, um contrarian, alguém que não se conformava com a resposta “é assim porque sempre foi”. No fundo, o que eu acredito é que ele estava continuamente buscando reviver o fascínio que sentiu quando seus pais o levaram, ainda moleque, ao museu de história natural e ele, pela primeira vez, contemplou o esqueleto do Tyranossaurus rex. Tive o prazer de fazer isso em 2012 e recomendo! É de tirar o fôlego mesmo. Entenderam agora por que sou fã do cidadão?
Depois deste longo texto, espero ter despertado em vocês o desejo de procurarem as obras de Stephen Jay Gould e saboreá-las com calma e atenção. Na medida do possível, meu desejo é que mais gente se encoraje a mergulhar fundo neste universo fascinante e que, assim como eu, decidam que é lá que querem morar.
Até a próxima!