Final de ano chegando e cá estou eu refletindo com meus botões essa loucura que foi 2020. Embora as pessoas ao meu redor já estejam se empolgando com o Natal e montando suas árvores, minha vibe não está muito para comemorações. Enquanto escrevo, atingimos 177 mil mortes por COVID-19, número certamente subestimado dada a falta de transparência do Ministério da Saúde. Infelizmente todo mundo conhece alguém que perdeu um familiar ou amigo.
Enquanto isso, ainda temos que gastar energia refutando fake news no grupo de whatsapp da família (aquele tio do pavê nunca foi tão irritante, não é mesmo?). A criatividade para absurdos parece infinita: tratamentos ineficazes e perigosos com cloroquina e/ou ivermectina; o vírus (e nesse ponto ele e eu nos entendemos) com completa aversão a temperaturas altas e morrendo de insolação, sei lá; médicos que mentem no atestado de óbito elevando os casos da doença; até caixões vazios sendo enterrados para enganar a população.
A coisa toda adquire aspecto de circo dos horrores quando olhamos para os nossos governantes, que além de mostrarem um total despreparo para atuar no combate à epidemia, também propagam informações errôneas e sem base científica alguma. Por exemplo, há pouco tempo atrás uma certa deputada veio a público falar que o uso de máscara pode matar devido ao excesso de monóxido de carbono produzido (Não sabia agora que a gente funcionava como um automóvel).Segundo uma pesquisa produzida em 2018 pelo MIT e publicada na Science, os pesquisadores concluíram que notícias falsas conseguem atingir muito mais pessoas (até 100 mil) quando comparadas a apenas mil que recebem conteúdo verídico no Twitter. Frente a isso, um coro de pessoas recentemente prega a necessidade de criação de legislação combativa em relação aqueles que propagam desinformação. Mas será que isso muda algo?
Sou da opinião de que esse tipo de coisa não é novidade e já existia, porém ganhou mais abrangência com o surgimento da internet e, principalmente, das redes sociais. E no caso particular de conteúdo relacionado a ciência, saúde e tecnologia, acredito que a melhor forma de combater a desinformação é melhorar os conhecimentos básicos em ciência do brasileiro que está fora da academia (Não de ginástica, por favor).
Por exemplo, ainda sobre a notícia de morte por intoxicação pelo monóxido de carbono naqueles que usaram máscara, por que existiram pessoas que acreditaram? Elas confundiram com dióxido de carbono, algo que não é tóxico e produto normal da nossa respiração. E esse é um conceito básico que vemos ainda nas escolas. Porém se enganam se acham que este problema é inerente à população humilde e aqui compartilho minhas experiências durante a faculdade, local onde supostamente quem chegou já detém um certo saber.
Cansei de ouvir de colegas um discurso mais ou menos similar: “Fui ao médico e ele disse que eu estava com uma virose mas não me receitou nada, nem antibiótico! Só repouso e hidratação. É pra isso que o cara estuda?”. Como também esquecer dos embates frequentes com uma galerinha criacionista pagadora de pau do Design Inteligente: “Você acredita (ênfase nessa palavra em especial) mesmo no Darwin? Já diz o nome, é só uma teoria. Ainda não foi provada.”? Para quem antes de entrar na engenharia mecânica tinha concluído biomedicina, foram cinco anos sofríveis nesse sentido (Fora as porradas em cálculos e físicas mil).
Essa percepção que tive durante a faculdade é muito similar à conclusão de um estudo de 2019 desenvolvido pelo Instituto Gallup, que avaliou o interesse e domínio de temas da ciência em 144 países. Boa parte dos brasileiros relatou que sua visão é influenciada pelas crenças religiosas, assim como um nível elevado indicou desconfiar da ciência e dos cientistas. Este último dado também esteve correlacionado com o índice Gini, que mede o nível de desigualdade na distribuição de renda. Cerca de um quinto dos entrevistados também disse ver pouca contribuição da ciência para o desenvolvimento econômico e social nosso. Preocupante, não?
Embora o brasileiro se declare um curioso pela ciência, muitos são totalmente ignorantes em relação a conceitos triviais como antibióticos não funcionarem com vírus e sim com bactérias (até hoje ainda não sei o que é um bendito vírus); que a terra é redonda (mas se duvidar, pega um barquinho e vai em linha reta); que a Teoria da Evolução não se resume a macacos gerando bebês humanos (seria uma bizarrice visitar o zoológico).
Na última década o Brasil testemunhou um crescimento de cerca de 70% na quantidade de publicações científicas, sendo o 11º colocado no ranking segundo dados da National Science Foundation. Em contrapartida, desde o último ano é observado um desmonte no setor de ciência e tecnologia nacional, com recursos da CAPES e CNPq reduzidos, respectivamente, em 30 e 80% ainda em 2020 – o que causa inclusive um desencorajamento em muitos dos pesquisadores, estimulando fugas de cérebros altamente qualificados e que fariam a diferença. Isto porque a ciência é fundamental para o desenvolvimento e progresso de uma nação, afetando áreas como saúde, agricultura, alimentação, indústrias dentre tantas outras.
E agora vem a pergunta de um milhão de patacas: como a gente conserta isso? Você, querido (a) deviante, não me preocupa. Se você está deste lado da força, provavelmente é um entusiasta como eu das Ciências e adora se informar e se manter atualizado (a) a esse respeito. E acredito que você também não seja terraplanista, do movimento antivacina ou fã de qualquer outra teoria pseudocientífica conspiratória. Porém, e o resto das pessoas que não vieram até nós, que não escutam os scicasts da vida e não fazem ideia do que seja divulgação científica? O que elas pensam? Seria desconfiança ou pura ignorância? Estaríamos “pregando para convertidos” ou sem o Deviante as coisas estariam piores?
Tendo em vista o ano terrível que passamos, afastados de amigos e família e com medo de uma doença totalmente desconhecida e por que não dizer da própria morte, me propus em elaborar esse artigo mais reflexivo. Frente ao nível de desmonte da ciência e da crescente onda de desconfiança em relação a mesma durante um momento em que ela foi EXTREMAMENTE necessária e importante, espero que todos nós dediquemos um pouco de tempo às nossas reflexões de final de ano para os questionamentos que fiz acima. Afinal, a ciência é mais do que respostas, pois respostas se encerram em si mesmo. Ela é, sobretudo, o exercício constante das perguntas corretas, que estimulam e estimularam a curiosidade da humanidade a respeito do desconhecido e que nos trouxeram até aqui.
Um bom Natal e um novo ano na esperança de que seja melhor que 2020.
Referências Bibliográficas:
DE OLIVEIRA ANDRADE, RODRIGO. Resistência à ciência. FAPESP, n. 284, 2019. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/resistencia-a-ciencia/>. Acesso em: 6 dez. 2020.
Maioria dos brasileiros é otimista em relação a ciência e tecnologia. Jornal da USP. Disponível em: <https://jornal.usp.br/ciencias/maioria-dos-brasileiros-e-otimista-em-relacao-a-ciencia-e-tecnologia/>. Acesso em: 6 dez. 2020.
OLIVEIRA, ELIDA. Panorama da ciência no Brasil é ‘assustador, ameaçador e pode se tornar irreversível’, diz cientista. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/11/panorama-da-ciencia-no-brasil-e-assustador-ameacador-e-pode-se-tornar-irreversivel-diz-cientista.ghtml>. Acesso em: 6 dez. 2020.
VOSOUGHI, SOROUSH, ROY, DEBARAL, SINAN. The spread of true and false news online. Science, v. 359, n. 6380, p. 1146-1151, 2018