Se você, assim como eu, mora no sudeste deste Brasilzão deve saber que quando chega o verão, lá por janeiro, tá aquele dia quente e aí começa armar aquela chuvona: nuvem preta, céu escuro, cada trovão brabo, já sabe, né? Vem aquela chuva, aquela chuva de verão que cai de uma vez e que, se a gente der sorte, o céu abre ainda a tempo de aproveitar o sol antes de anoitecer. Em outras regiões do Brasil talvez tenha outra época do ano em que aconteça isso, mas aqui todo mundo já sabe que no verão é assim. Desde criança eu lembro que, se saísse de casa em um dia bem quente de verão, a chance de voltar pra casa molhada no fim da tarde era bem grande.

Todo ano também, a gente vê na TV alguma tragédia relacionada a chuvas intensas. As imagens são sempre muito assustadoras e todo mundo fica comovido com os casos de mortes provocados por essas chuvas. É sempre bem triste.

Agora, se tá todo mundo sabendo que sempre chove por aqui no verão, como é que a gente ainda tem episódios de tragédias provocadas por fortes chuvas?

Hoje eu vou tentar te explicar como a gente, mesmo sabendo muito bem como resolver esses problemas, ainda deixa essas tragédias acontecerem todos os anos.

Bom, antes de tudo, vamos a um breve parênteses: grande parte das cidades no mundo surgiram em torno de rios. As populações se fixaram o mais próximo possível de rios para usar a água para as suas atividades diárias e também para agricultura e, quanto mais longe a água tivesse, mais difíceis ficavam as atividades básicas. Aqui no Brasil, não foi diferente. Assim que começaram os ciclos de industrialização e urbanização, as pessoas se assentaram próximos a rios e a prova disso é que uma parte das cidades no país leva o nome dos rios aos quais elas estão próximas.

Como o Brasil possui uma dos maiores reservas de água doce do mundo, toda cidadezinha tem pelo menos um rio e gente morando perto dele. Só que antigamente a ocupação das áreas era diferente, tinha uma casa ou outra, a margem do rio tava lá no lugar dela, tinha mato em volta, tudo funcionava muito bem.

Rios do território brasileiro

Acontece que como as cidades foram ficando cada vez maiores e com mais gente, esses espaços foram ficando apertados, tinha cada vez mais gente morando perto do rio, as casas estavam mais próximas. Com os processos de industrialização, o campo foi deixando de ser o local de moradia das pessoas, que foram ocupando cada vez mais as cidades. Tivemos vários ciclos desses aqui no Brasil, mas a partir de 1950 é que esse êxodo rural se intensificou fazendo com que no intervalo de 50 anos a população urbana passou de cerca de 30% para mais 90%. Conclusão, as cidades ficaram pequenas para tanta gente.

População urbana do Brasil. Fonte: IBGE.

Essa ocupação das cidades ocorreu de forma desordenada, as ruas foram surgindo conforme a necessidade, assim como bairros novos. A cidade foi crescendo para as áreas de periferias. Tudo isso de uma forma muito rápida e sem muito planejamento. Áreas de várzea de rios foram ocupadas, área de encosta de morro, outras áreas consideradas de risco também foram ocupadas.

Com a introdução do nosso modelo de transporte predominantemente rodoviário, ruas foram asfaltadas, estradas e rodovias foram abertas em praticamente todo o território do Brasil.

Fato é que as nossas áreas urbanas hoje são muito impermeabilizadas, com concreto e asfalto, têm poucas áreas verdes e permeáveis e ainda a ocupação humanas das nossas cidades ocorreu de forma desordenada. Isto é, não foram pensadas formas de ocupação, as pessoas foram chegando conforme nossos ciclo econômicos e nossa economia foram exigindo mão de obra e foram ocupando os espaços que eram possíveis.

Aposto que, se eu te pedir pra fechar os olhos e imaginar uma área urbana, a primeira imagem que vem na sua cabeça é uma cidade com as ruas asfaltadas, poucas áreas verdes, sem rios, ou com os poucos existentes com seu curso alterado. É assim a maior parte das cidades médias e grandes do Brasil.

Aliado a tudo isso, que já é um problemão, tem o serviço de coleta de lixo que não funciona de forma eficiente em toda a cidade, as ações da população que, seja por mau hábito ou falta de locais apropriados, acaba jogando lixo em locais inadequados, entupindo bueiros e sujando rios e córregos. E ainda os eventos de chuvas que antes eram mais previsíveis, agora estão fugindo do esperado. É comum ouvirmos em noticiários que “choveu em poucas horas o que era esperado para o mês todo” ou ainda “ o volume de chuvas registrado é maior desde o ano tal”.

Sabemos que nossos sistemas de drenagem urbana foram projetados para suportar chuvas que não são as que temos visto se repetirem todos os anos nas grandes cidades, e ainda que parte dessa água das chuvas era pra ser absorvida pelo solo se tivéssemos mais áreas permeáveis nas cidades. Assim, com pouca área para a água infiltrar, bueiros e rios cheios de lixo e um volume enorme de água em pouco tempo, tem enchente, tem inundação de rios e córregos e a cidade vira um caos. Se acontecer da chuva ser muito intensa ou por um período muito longo, pode ter deslizamento de terra e a tragédia é certa. Isso tudo é muito triste, mas acontece todo ano, infelizmente.

A causa de tudo isso é que nossas cidades não foram preparadas para lidar com o crescimento desordenado do território, com a impermeabilização excessiva das nossas áreas, com as mudanças em padrões climáticos que fazem com que os volumes de chuvas sejam cada vez mais intensos, com a produção de cada vez mais lixo e com seu descarte inadequado. Enfim, é muito problema junto.

Tá, mas como faz pra resolver?

A gente precisa urgentemente repensar nossos modelos de cidades e adequar nosso estilo de vida.  Precisamos de mais áreas permeáveis nas cidades e isso não é só a construção de parques ou áreas livres, pode ser também uma forma de incentivo para que cada um dos imóveis urbanos tenha uma área permeável. É preciso também de obras de contenção de grandes volumes de água, como piscinões e retirar com urgência pessoas de áreas de risco (como encostas de morros) e fornecer um local seguro de moradia para elas.

Isso não é uma lista mágica de soluções que eu fiz aqui e agora para resolver esses problemas. Você já deve ter ouvido alguma autoridade pública dizendo que a solução é fazer obra, e que as chuvas foram muito mais fortes e intensas do que o esperado e etc. Não estou dizendo que seja simples a solução, leva tempo e precisa de recursos financeiros e projetos, mas é possível resolver. Mas voltando a pergunta inicial, se a gente sabe qual é a solução, por que todo ano tem uma tragédia relacionada às chuvas?

Essa resposta é tão simples quanto é triste. As pessoas mais prejudicadas em eventos de chuvas fortes, inundações, deslizamentos de terras são as mais vulneráveis socialmente e que tem menos condições financeiras para ter uma moradia segura. É claro que todos os problemas descritos aqui neste texto contribuem, e que, quando acontece algum evento desses em uma cidade como São Paulo, todas as pessoas são prejudicadas, mas o potencial de causar tragédias e danos irreparáveis na população mais vulnerável é muito maior do que pode ser na população com maiores recursos financeiros.

Isso mostra como as relações sociais estão divididas espacialmente também. Nas periferias é muito comum chuvas atingirem a casa das pessoas com enchentes todos os anos e nada acontecer. O direito a uma cidade segura e com a mesma infraestrutura urbana para lidar com problemas não é igual em todas as classes sociais.

Isso também é uma realidade em outros países empobrecidos do mundo, se você viu o filme O Parasita (lá vem um spoiler levinho) deve se lembrar da cena em que a cidade tem uma forte chuva e a família pobre tem a casa toda inundada e perde todos seus pertences tendo que ir procurar abrigo junto com outras famílias em um local público, enquanto que para a outra família, com recursos financeiros, a chuva forte não afetou em nada sua vida e no dia seguinte eles estavam agradecendo o céu aberto após a chuva intensa. Fica claro aqui no exemplo do filme, assim como nas nossas cidades que o direito à cidade que as famílias com diferentes situações financeiras possuem não é o mesmo.

Precisamos que as soluções sejam de fato implementadas, o que vemos é que, passado os períodos de chuvas, as situações graves que as pessoas passaram são completamente esquecidas e no próximo período de chuvas voltam a acontecer.

A tragédia se repete e vai se repetir. É papel do poder público agir e de todos nós cobrarmos soluções efetivas.