Oi, tudo bem? Sou o Leo e neste texto não vou fazer de conta, mas vou fazer conta. Mas antes…

Descrição da imagem: meme do João Kleber, um apresentador de programa de tv branco e de cabelos grisalhos, com a palma da mão aberta e estendida para frente ao gritar "Para para para para".

Descrição da imagem: meme do João Kleber, um apresentador de programa de tv branco e de cabelos grisalhos, com a palma da mão aberta e estendida para frente ao gritar “Para para para para”.

Já adianto pra você que não ouviu os casts de Emaranhamento e Desigualdade de Bell que pare de ler este texto e vai direto ouvir os episódios de Emaranhamento e Desigualdade de Bell, pois faremos, juntinhos, as contas destes episódios, como foi prometido inclusive. Neste texto faremos as contas do episódio de Emaranhamento.

O texto é autocontido porém super-resumido, portanto aconselho ir aos episódios para uma melhor compreensão. Se possível também leia os textos da série Kura Quântica no Portal Deviante (KATCHIM!!!).

Neste texto vamos falar sobre Mecânica Quântica. Muito tem se falado das chamadas tecnologias quânticas (criptografia quântica, teleportação quântica, computação quântica, geradores de números aleatórios, sensoriamento, etc.). Estas tecnologias (talvez) tenham muito a acrescentar para o progresso humano. Mas o que faz uma tecnologia quântica, por exemplo um computador quântico, algo tão especial? Quais propriedades quânticas são tão “bizarras” e úteis para estas tecnologias?

Destrincharemos o tal do Emaranhamento Quântico, algo tão contraintuitivo que acabou se tornando um paradoxo nas mãos de ninguém menos que Einstein, que, em 1935, questionou se a Mecânica Quântica era completa ou não. Além disso, faremos as contas sobre as tais Desigualdades de Bell, que foram inclusive o tema do Prêmio Nobel de Física de 2022.

Primeiramente, algumas definições e notações:

  • Um estado Físico em Mecânica Quântica é descrito pela função de onda Ψ(x,t)
  • Esta função de onda pode ser escrita também pode ser escrita na seguinte notação*:
    Vetor de estado: imagem mostrando a letra grega Psi entre uma barra vertical à esquerda e uma ponta de seta à direita. Este objeto matemático corresponde a um estado quântico e possui TODA a informação sobre o sistema. Neste texto, é indistinto falarmos de vetor de estado ou de estado quântico.

    Vetor de estado: imagem mostrando a letra grega Psi entre uma barra vertical à esquerda e uma ponta de seta à direita. Este objeto matemático corresponde a um estado quântico e possui TODA a informação sobre o sistema. Neste texto, é indistinto falarmos de vetor de estado ou de estado quântico.

    Goste ou não desta notação, ela será útil para nossas contas. Neste texto, é indistinto falarmos de vetor de estado ou de estado quântico.

  • Emaranhamento ocorre quando duas ou mais partículas são geradas por um único processo (ou interagem de uma maneira especial) de tal jeito que os estado de cada partícula não pode mais ser descrito de maneira isolada. As duas partículas estão descritas pela mesma função de onda. Ou seja, um estado Emaranhado é um estado que só pode ser descrito pela função de onda global: a soma da informação de cada parte separadamente NÃO nos retorna a informação do estado global.
  • Um típico estado Emaranhado de duas partes pode ser escrito como**:
    Um típico estado Emaranhado: na imagem o vetor de estado Psi (ver imagem acima) é igual à soma de um vetor de estado para a parte A com uma seta apontando para cima vezes um vetor de estado para a parte B com uma setinha apontando para baixo, esta multiplicação de vetores de estado está somada ao vetor de estado da parte A com a setinha apontando para baixo vezes o vetor de estado da parte B com a setinha apontando para cima. As setinhas pra cima e pra baixo podem significar por exemplo o spin de um elétron e as duas partes são indicadas pelas letras A e B.

    Um típico estado Emaranhado: na imagem o vetor de estado Psi (ver imagem acima) é igual à soma de um vetor de estado para a parte A com uma seta apontando para cima vezes um vetor de estado para a parte B com uma setinha apontando para baixo, esta multiplicação de vetores de estado está somada ao vetor de estado da parte A com a setinha apontando para baixo vezes o vetor de estado da parte B com a setinha apontando para cima. As setinhas pra cima e pra baixo podem significar por exemplo o spin de um elétron e as duas partes são indicadas pelas letras A e B.

    Neste último caso, as setinhas pra cima e pra baixo podem significar por exemplo o spin de um elétron e as duas partes são indicadas pelas letras A e B.

  • Dois conceitos importantes para Einstein, que criou um paradoxo e trouxe toda esta discussão para a comunidade:
    • Realismo: é a ideia que coisas existem objetivamente, independente dos observadores. Incomodava muito para Einstein imaginar que as coisas só se tornavam reais quando alguém resolvia fazer uma observação. Antes da pergunta, as coisas não existiam na tal Interpretação de Copenhagen.
    • Localidade: é a ideia de que as coisas só podem influenciar coisas vizinhas. Não dá para um evento que ocorreu aqui na minha casa influenciar uma estrela do outro lado do universo. De fato essa é a coisa mais cara para Einstein pois sua Teoria da Relatividade dizia que nada pode se propagar mais rápido que a luz. Nenhuma informação, portanto, pode ser transmitida mais rápida que a velocidade da luz.

Os chinelos quânticos

No cast de Emaranhamento trouxemos o seguinte exemplo para fazer uma ANALOGIA tosca sobre esta propriedade, Emaranhamento, e coisas clássicas (macroscópicas)***. É uma analogia, então vamos fazer esse joguinho pra entender as contas. Vamos supor que Fencas e Guaxa participaram juntos de um concurso cultural das Havaianas e ganharam o grande prêmio: um par de chinelos Havaianas. UM PAR APENAS.

Era um concurso bem ruim, na verdade. De fato, o chinelo só poderia ser AZUL ou VERDE. Como eles não sabiam o que fazer, e SEM OBSERVAR O CHINELO, cada um pegou um pé de chinelo, sem saber a cor e de qual lado era, e guardou em sua bolsa. Fencas pegou sua mochila com seu pé de chinelo e zarpou para Plutão, seu sonho de infância. Guaxa ficou no Brasil com sua mochila contendo seu pé de chinelo.

Quando Fencas chega a Plutão, ele resolve abrir sua mochila, porém ele só tem tempo para fazer uma única tarefa:

  • Ou ele pega o pé de chinelo tateando com as mãos e consegue sentir se é o pé Direito ou Esquerdo, mas não sabe a cor.
  • Ou ele analisa o chinelo pela luz do seu microscópio de estimação e descobre a cor, mas não dá para saber pelo microscópio se o pé é Direito ou Esquerdo.

Portanto, se o Fencas medir a COR do chinelo não saberá seu LADO, e vice-versa.

Mas agora note que se o Fencas medir a COR do chinelo ele saberá imediatamente a cor do chinelo do Guaxa, pois será a mesma, os chinelos foram “criados” juntos. E o Fencas fará isto sem afetar o chinelo do Guaxa de forma alguma.

Da mesma forma, se o Fencas medir o LADO do seu chinelo saberá imediatamente o lado do chinelo do Guaxa, que será o oposto, pois os chinelos foram “criados” juntos. Há uma “lei de conservação chinelar”.

Veja que um chinelo não precisa contar para o outro que o Fencas o mediu, para que o outro saiba o que fazer. Já havia inicialmente uma condição que os colocava necessariamente com a resposta correta: a conservação chinelar. E até aí tudo bem, certo!? Não há estranhamento nenhum com relação a isso…

Até que tentamos falar sobre qual o estado do chinelo ANTES da observação. Note, se o Fencas mede o lado do chinelo e detecta ESQUERDO, o lado do chinelo do Guaxa é DIREITO, e podemos assumir que o pé de chinelo do Fencas sempre foi ESQUERDO, e que o lado do chinelo do Guaxa sempre foi DIREITO, certo? E que isto seria totalmente independente do que o Fencas e o Guaxa decidissem medir, pois eles tem livre-arbítrio pra decidir o que medir em cada caso. Certo!? CERTO???

Bom… em quântica, não. Se os chinelos são quânticos, eles seguem as regras da Física Quântica. Dentre elas, podemos enunciar aqui o Princípio da Incerteza Chinelar**** para este caso: “Não podemos medir o LADO e a COR dos chinelos quânticos simultaneamente e com precisão máxima.”

Vamos escrever este experimento em contas! Sim, continhas. Temos que ter medo de assassino, genocida, atitudes autoritárias, ratos, mas, de conta, não.

O estado inicial do chinelo, com relação ao LADO dele, pode ser escrito como:

O estado Emaranhado para os lados dos chinelos quânticos: o estado Psi é igual à soma do estado Direito para o Fencas e Esquerdo para o Guaxa com o estado Esquerdo para o Fencas e Direito para o Guaxa.

O estado Emaranhado para os lados dos chinelos quânticos: o estado Psi é igual à soma do estado Direito para o Fencas e Esquerdo para o Guaxa com o estado Esquerdo para o Fencas e Direito para o Guaxa.

Observe que se o Fencas mede o lado ESQUERDO, ele está associado ao lado DIREITO do Guaxa na equação acima, e vice-versa.

Agora com relação à COR do chinelo, o estado pode ser escrito como:

O estado Emaranhado para a cor dos chinelos quânticos: o mesmo estado Psi é igual à soma do estado Azul para o Fencas e Azul para o Guaxa com o estado Verde para o Fencas e Verde para o Guaxa.

O estado Emaranhado para a cor dos chinelos quânticos: o mesmo estado Psi é igual à soma do estado Azul para o Fencas e Azul para o Guaxa com o estado Verde para o Fencas e Verde para o Guaxa.

Novamente, se o Fencas mede a cor AZUL, ela está associada à cor AZUL do Guaxa na equação acima, e vice-versa.

Aqui entra uma das “bizarrices” quânticas: um estado em quântica pode estar na SUPERPOSIÇÃO de dois estados. Ou seja, podemos escrever cada estado de lado (ESQUERDO e DIREITO) como:

Imagem mostrando duas equações: equação de cima mostra que o estado Azul pode ser escrito como uma soma dos estados Esquerdo e Direito; equação de baixo mostra que o estado Verde pode ser escrito como a subtração do estado Esquerdo com o Direito.

Imagem mostrando duas equações: equação de cima mostra que o estado Azul pode ser escrito como uma soma dos estados Esquerdo e Direito; equação de baixo mostra que o estado Verde pode ser escrito como a subtração do estado Esquerdo com o Direito.

E cada estado de cor (AZUL e VERDE) como:

Imagem mostrando duas equações: equação de cima mostra que o estado Direito pode ser escrito como uma subtração dos estados Azul e Verde; equação de baixo mostra que o estado Esquerdo pode ser escrito como a soma do estado Azul com o Verde.

Imagem mostrando duas equações: equação de cima mostra que o estado Direito pode ser escrito como uma subtração dos estados Azul e Verde; equação de baixo mostra que o estado Esquerdo pode ser escrito como a soma do estado Azul com o Verde.

Então note que se o Fencas mede o LADO do estado |Ψ> acima e encontra ESQUERDO, o estado fica:

Após a medição do lado do chinelo o estado que era Psi se "transforma" (ou colapsa, ou reduz, ou é projetado) no estado Psi um que é igual ao produto do estado Esquerdo para o Fencas e Direito para o Guaxa.

Após a medição do lado do chinelo o estado que era Psi se “transforma” (ou colapsa, ou reduz, ou é projetado) no estado Psi um, que é igual ao produto do estado Esquerdo para o Fencas e Direito para o Guaxa.

Que pode ser escrito como (basta ver como escrevi os lados esquerdo e direito em função das cores ali em cima):

Dado o que falamos na imagem de como os lados Esquerdo e Direito podem ser escritos como soma e subtração de Azul e Verde, o estado Psi um pode ser escrito como a soma de Azul com Verde para o Fencas e a subtração de Azul com Verde para o Guaxa. Note que essa soma de cores NÃO é uma soma de cores primárias, de tinta, mas do estado QUÂNTICO de cor do chinelo.

Dado o que falamos na imagem de como os lados Esquerdo e Direito podem ser escritos como soma e subtração de Azul e Verde, o estado Psi um pode ser escrito como a soma de Azul com Verde para o Fencas e a subtração de Azul com Verde para o Guaxa. Note que essa soma de cores NÃO é uma soma de cores primárias, de tinta, mas do estado QUÂNTICO de cor do chinelo.

Este estado |Ψ1> tem lados definidos para Fencas e Guaxa, mas NÃO TEM UMA COR DEFINIDA. E até aí OK!!! Sério, OK! Não foi medida a cor do chinelo. Mas se acreditamos, tendo uma noção de REALISMO LOCAL assim como Einstein, que o chinelo TEM de fato uma cor definida, independente de medirmos ou não, o chinelo teria uma cor definida independente de estarmos medindo apenas o lado do chinelo. Mas o estado acima NÃO TEM UMA COR DEFINIDA. Não é AZUL, nem VERDE, mas superposição destes estados (não estou falando de superposição de cores, mas de estados quânticos de cor).

Agora vamos supor que o Fencas mediu a COR do chinelo no estado |Ψ> lá em cima (não é |Ψ1> hein, é |Ψ>), e vamos supor que o Fencas encontra a cor AZUL, o estado fica:

Se o Fencas tivesse decidido medir a cor do chinelo ao invés do lado, e tivesse obtido o resultado Azul, o estado Psi colapsaria para o estado Psi dois, que é igual ao produto do estado Azul para o Fencas e Azul para o Guaxa.

Se o Fencas tivesse decidido medir a cor do chinelo ao invés do lado, e tivesse obtido o resultado Azul, o estado Psi colapsaria para o estado Psi dois, que é igual ao produto do estado Azul para o Fencas e Azul para o Guaxa.

Este estado pode ser escrito como (basta ver como escrevi as cores azul e verde em função dos lados ali em cima):

Dado o que falamos na imagem de como os lados Azul e Verde podem ser escritos como soma e subtração de Direito e Esquerdo, o estado Psi dois pode ser escrito como a soma de Esquerdo com Direito para o Fencas e a soma de Esquerdo com Direito para o Guaxa.

Já este estado |Ψ2> tem cor definida para Fencas e Guaxa, mas NÃO TEM UM LADO DEFINIDO. Aí sim ferrou tudo, pois era o mesmo estado inicial |Ψ>. Einstein pensou: “Ora bolas, como assim o chinelo ter uma cor ou um lado definido depende de quem está observando? Deve haver uma coisa escondida aqui, que vai me fazer retornar com o determinismo, com o meu tão querido realismo local.” No caso de nossa brincadeira dos chinelos, esta variável oculta seria um possível funcionário das Havaianas que, de maneira que NINGUÉM sabe, estava escolhendo e enviando os chinelos para o Fencas e o Guaxa.

Nas palavras (agora de verdade) de Einstein, escritas no artigo EPR de 1935: “Enquanto mostramos que a função de onda não nos fornece uma descrição completa da realidade física, deixamos aberta a questão se esta descrição existe ou não. Nós acreditamos, no entanto, que tal teoria é possível.”

Alguma coisa estava estranha, e assim continuou até 1964 quando Bell propôs uma desigualdade para testar se estas variáveis ocultas existiam. O camarada provou um Teorema para demonstrar se o funcionário das Havaianas existe ou não, e daí poderíamos ver se os resultados de experimentos são malucos como a Mecânica Quântica prevê ou se temos algo oculto a ser determinado. E isto será o tema do meu próximo texto em breve, no Portal Deviante.

Forte abraço,

Leo.

Notas técnicas:

* Esta notação é conhecida como Notação de Dirac, e o elemento |Ψ> é um vetor no Espaço de Hilbert
** Não estou preocupado com a normalização do estado neste texto.
*** Toda e qualquer analogia macroscópica que tenta descrever uma propriedade quântica acaba sendo falha. Estou assumindo para efeito de analogia que COR e LADO do chinelo são observáveis que não comutam.
**** No caso do experimento EPR de 1935, eles observaram estados emaranhados e observáveis de posição e momentum linear, que são observáveis que não comutam, isto é, são incompatíveis. Em nossa analogia, os observáveis incompatíveis são COR e LADO do chinelo.

Referências:

• CHAVES, Rafael. Incerteza Quântica: Os mistérios de uma teoria e a nova era da informação. Zahar. 2022.
• Artigo EPR (Einstein, Podolski, Rosen): https://journals.aps.org/pr/abstract/10.1103/PhysRev.47.777
• Vídeo: Artigo EPR: https://youtu.be/rVpSR8vjqGE
• Vídeo: Paradoxo EPR (versão Bohm): https://youtu.be/bw25MPOjoRI
• Scicast #152 Física Quântica 1: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast/scicast-152-fisica-quantica/
• Scicast #165 Física Quântica 2: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast/scicast-165-fisica-quantica-2/
• Scicast #477 Emaranhamento Quântico: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-477/
• Scicast #537 Desigualdade de Bell: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-537/