Em 2022 comemoramos o centenário da Semana de Arte Moderna. Esse evento, ocorrido em 1922 (obviamente…) foi o ponto culminante da convergência de diversas manifestações culturais que tinham como pano de fundo a contestação da estética até então dominante nas artes brasileiras, um grande questionamento ao conservadorismo presente na cultura nacional.

Um dos seus desdobramentos, que teve um enorme impacto na arte produzida no Brasil da década de 1920 para cá, foi o Movimento Antropofágico. Nesse texto vamos saber exatamente o que foi e o que representa até hoje essa proposta de renovação da arte brasileira, além de conhecer os seus principais protagonistas!

O Movimento Antropofágico foi um proposta de renovação na cultura brasileira que surgiu em 1928, durante a primeira fase do Modernismo. É considerado um movimento de vanguarda e tem como principais nomes Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.

Abaporu – de Tarsila do Amaral – Considerada a Obra Inicial do Movimento Antropofágico

Um movimento cultural surgido a partir de uma única obra!

Em janeiro de 1928 Tarsila do Amaral pintou um vibrante quadro em óleo sobre tela que retrata uma figura humana com membros e cabeça desproporcionais em relação ao corpo, sentada no chão ao lado de um cacto, sob um céu azul e um sol amarelo. Esse mesmo quadro, ainda sem nome, foi dado de presente de aniversário ao seu marido, o escritor Oswald de Andrade. Oswald e o poeta Raul Bopp, impressionados com a pintura, deram-lhe o nome de “Abaporu” que significa “Homem que come.” Refletindo acerca do que representava a pintura e do nome dado a ela, os dois artistas resolveram “criar um movimento em torno desse quadro” nas palavras de Raul Bopp. E o movimento nasceu!

Capa do “Manifesto Antropófago”

O “Manifesto Antropófago” foi publicado na primeira edição da Revista de Antropofagia, em 1º de maio de 1928, e começa com as seguintes palavras: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”.

Nesse manifesto, Oswald de Andrade se coloca contra “a verdade dos povos missionários”, criticando tudo aquilo que vem de fora para “catequizar” a cultura brasileira. Ele propõe uma nova forma de lidar com a cultura estrangeira: devorar tudo aquilo que é importado e provocar a sua reelaboração, transformando-o em algo novo, capaz de ser exportado como genuinamente brasileiro, apesar de trazer também um legado estrangeiro. Trazer para cá tudo que fosse novidade europeia, deglutir, isso é, retrabalhar criticamente o conteúdo e, a partir daí, movimentar a própria cultura brasileira. Fazê-la mais forte e mais genuína.

A Tradição da antropofagia brasileira!

O Movimento Antropofágico emulava em seu pensamento o costume dos nativos brasileiros de devorar o inimigo, acreditando assim assimilar a sua força e coragem.

Imagem da edição original da Revista de Antropofagia

O manifesto é concluído da seguinte forma: “Em Piratininga, Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”.

Diversas outras referências a práticas antropófagas dos povos nativos estão na revista, como a frase “Ali vem a nossa comida pulando” vinda do livro “Duas Viagens ao Brasil”, que relata a estadia do alemão Hans Staden entre os Tupinambás, no século XVI.

Foi colocada também uma referência a “Hamlet”, de Shakespeare: “Tupi or not Tupi, that’s the question.”

Essas referências evocam um aspecto vindo diretamente da História da colonização portuguesa no Brasil e colocam os povos nativos, legítimos habitantes da terra, e portando, os verdadeiros brasileiros, como a inspiração para esse comportamento que quer relacionar a arte brasileira com o estrangeiro: assimilar o que é de fora e transformar em algo nosso, realizar uma leitura crítica do que é importado.

Influências do Futurismo!

Oswald de Andrade idealizou o movimento diretamente influenciado pelo “Futurismo”, uma corrente artística que tinha como expoente o artista italiano Filippo Tommaso Marinetti, que propunha agregar às manifestações artísticas referências à tecnologia, inovação, modernidade e dar-lhes um caráter nacionalista.

Na proposta brasileira a ideia era desenvolver uma nova estética de arte nacional, que não dispensaria as influências externas, mas realizaria uma “deglutição” criativa e miscigenada.

Outras obras ligadas ao movimento

O “Movimento Antropofágico” foi muito além do manifesto. Artistas de primeira geração do modernismo criaram obras levando em conta a proposta. A própria Tarsila do Amaral, a partir do Abaporu, iniciou uma “fase antropofágica”, com trabalhos que se tornaram ícones da Arte Moderna:

Quadro “O Lago”, de 1928, da fase antropofágica de Tarsila do Amaral

Sol Poente – 1929

Operários – 1933

Além da Tarsila, o Movimento influenciou outras vertentes do Modernismo: O livro “Cobra Norato”, de Raul Bopp, e a ópera “As Bachianas”, de Heitor Villa Lobos, são exemplos claros dessa influência em outros segmentos artísticos.

A Antropofagia trouxe um novo fôlego para a cultura brasileira, que já havia sido sacudida quando da realização da Semana de Arte Moderna, em 1922. Foi uma forma de prestigiar ainda mais as manifestações artísticas típicas da cultura nacional, mesmo que amalgamadas com elementos estrangeiros. Isso suscitou muitos debates entre os intelectuais, vindo desembocar, já na segunda metade do Século XX, em outros movimentos culturais que buscavam assimilar e reformular elementos da cultura estrangeira com base na cultura brasileira, como é o caso da Bossa Nova, na década de 1960, e, mais evidente ainda, no Tropicalismo da década de 1970.

A importância do Modernismo para a arte feita hoje no Brasil

Para além do Movimento Antropofágico, se formos considerar a importância de Semana de Arte Moderna para a arte e a cultura no Brasil, podemos reconhecer que aquela primeira geração de modernistas deixou uma marca de originalidade e de espírito de vanguarda que ainda hoje se manifesta na produção de diversos artistas. O Modernismo, enquanto movimento de vanguarda cultural, sobrevive e dá condições para que, em meio à realidade de uma cultura globalizada nesse século XXI, a arte genuinamente brasileira sobreviva, mantendo a sua relevância estética e sendo reconhecida em todo o mundo.

VIVA A SEMANA DE ARTE MODERNA!

Fontes:

https://blog.bbm.usp.br/2019/1802/

https://tarsiladoamaral.com.br/portfolios/antropofagica-1928-1930/

https://www.culturagenial.com/manifesto-antropofago-oswald-de-andrade/