Na faculdade, quando eu era apresentada a um conceito que ia além da minha humilde compreensão, meu cérebro desenvolvia dois mecanismos de proteção: fuga da realidade ou analogias bizarras (Esta última confesso que me ajudou a terminar muitos períodos letivos). Então hoje queria compartilhar uma dessas com vocês a fim de explicar um fenômeno que muitas vezes é uma pedra no sapato do time de manutenção no setor industrial: a cavitação.
Se você é de uma geração mais antiga em que era preciso decorar apenas os 150 primeiros pokemóns, deve lembrar do Squirtle e de um de seus ataques: rajada de bolhas (Bubble beam). Ainda criança ficava me perguntando sobre como isso poderia ser eficaz para nocautear outro pokemón. Ainda bem que a faculdade me ajudaria quinze anos depois. Pois é, ajudou porque descobri que na verdade o Squirtle estava realizando cavitações.
Pelo nome a gente já associa com cavidade e a lógica é por aí mesmo. Traduzindo em miúdos, a cavitação é um fenômeno que ocorre em fluidos contendo impurezas (não homogêneos), e ao atingirem a pressão de vapor para uma determinada temperatura, nucleiam uma porção de minúsculas bolhas. Quando essas bolhas dentro do equipamento – que pode ser uma bomba, turbina, válvula ou até mesmo hélices de barcos e submarinos – atingem um ponto de escoamento em que a pressão se eleva, a bolha colapsa e gera um micro jato d’água. Contudo, este gera uma espécie de onda de choque de energia tão elevada, que ao ocorrer próximo de uma superfície causa sua erosão. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura, né!
Figura 1 – Formação de bolhas seguida de implosão (Fonte: http://eswt.net/wp-content/uploads/2011/10/cavitation.gif)
O mais louco é que essas bolhas de vapor podem acontecer a qualquer temperatura. Embora nossa experiência culinária mostre que a água ferve a 100°C, isso ocorre porque a pressão se mantém constante e normalmente a 1 atm (Ignore esta informação se sua cozinha está no Everest). Porém, se invertermos o processo e mantivermos a temperatura constante, ao irmos reduzindo a pressão aos pouquinhos, chegaremos em um ponto que a água formará bolhas, ou seja, ela cavitará. Fica mais fácil de entender ao analisarmos o gráfico abaixo de Pressão x Temperatura da água (Figura 2).
Figura 2 – Evaporação e cavitação da água (Fonte: MENESES, C., LOPES SANTOS, R., 2018).
Os manuais de termodinâmica costumam apresentar tabelas com os valores de pressão de vapor para cada temperatura, sendo mais frequente para a água. E para os demais fluidos, como fazemos? Bom, a gente senta e chora né! E depois levanta, porque tem solução e vou citar aqui o exemplo de como é feito com o caso das bombas. Basicamente bombas possuem uma tubulação de sucção, que está imersa em um reservatório – um rio – e para puxarmos a água é necessário que a pressão na entrada seja reduzida, criando uma espécie de vácuo ou pressão negativa. Aqui vale a analogia do canudinho na lata de refrigerante, ok?
Entretanto, não queremos que a pressão fique abaixo da pressão de vapor (Pv). Sabemos que alguns fatores influenciam para deixar esta pressão mais negativa como velocidades elevadas, grandes distâncias entre a bomba e o manancial assim como uma maior perda de carga na sucção. Esta última está relacionada com a energia perdida em função do atrito para conduzir o fluido pela tubulação. Tais parâmetros afetam o cálculo de uma variável conhecida como NPSH (Valor Positivo da Carga de Sucção), que representa a quantidade de energia que o fluido possui na entrada disponível para enfrentar os obstáculos sem cavitar. Os fabricantes das bombas, pessoas de bom coração, informam o valor do NPSH requerido e tudo fica bem se NPSHd > NPSHr.
Óbvio que nem tudo funciona de forma idealizada na vida real e erros de projeto, aplicações inadequadas assim como contaminações do fluido acontecem. As consequências são sérias, como indisponibilidade das máquinas, além da redução da vida útil destas. Este problema afeta majoritariamente nosso setor energético, pois a energia hidráulica responde por 83% da geração de nossa eletricidade. O atual potencial hidrelétrico brasileiro é de algo próximo a 260 GW e a crescente demanda nas usinas, faz com que as turbinas operem no seu limite máximo e a cavitação seja mais frequente. A queda de uma planta hidrelétrica traz prejuízos tanto econômicos quanto ambientais, já que ocasiona no acionamento das termelétricas – que apresentam valores mais altos de MW/h e fazem uso da queima de combustíveis fósseis. Na Figura 3 pode ser visto o modelo de turbina mais usado, que é o tipo Francis, em uma condição livre de defeitos e a imagem logo abaixo com as pás apresentando desgastes e furos decorrentes da erosão por cavitação. A superfície ao exame visual costuma apresentar este aspecto corroído com padrões rendilhados ou esponjosos.
Figura 3 – Turbina Francis sem defeitos e com desgaste (Fontes: Soares, 2013./https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Turbine_Francis_Worn.JPG)
Em função disso, o setor de manutenção de qualquer empresa ou indústria dispõe de algumas técnicas que permitem a detecção precoce deste problema. Uma das mais conhecidas é a análise de ruído, uma vez que a implosão rápida de inúmeras microbolhas não é algo silencioso. Sensores de emissão acústica são empregados para sons com frequência acima de 10 kHz e o barulho que pode ser ouvido é similar ao bombeamento de um monte de pedrinhas ou cascalhos no interior do equipamento. Coloquei um link para quem tiver a curiosidade de ouvir (https://www.youtube.com/watch?v=uAeUcJBUGPc). Outras opções são a análise de vibração, que capta o sinal usando sensores de deslocamento e acelerômetros (o mesmo sensor responsável por virar a tela do seu celular) ou o uso de transdutores de pressão para detectar esse tipo de defeito.
Uma abordagem em paralelo é o desenvolvimento de novos materiais mais resistentes à cavitação, como as ligas Co-Cr (Stellites®). Outras alternativas mais baratas também têm sido desenvolvidas pelos engenheiros metalúrgicos como os aços inoxidáveis austeníticos ligados ao cobalto e os que apresentam o elemento químico manganês. Os usos de revestimentos superficiais assim como realização de polimentos prévios também aumentam a resistência. E para quem já jogou muito RPG ou gosta de história medieval, o ferreiro quando dá aquelas marteladas na espada está na verdade aumentando a resistência mecânico do aço, o que chamamos de encruamento. Então ainda podemos usamos “ferreiros” para fazer um trabalho mecânico nos metais e melhorar seu comportamento. Por último, há o refino ou melhoria da microestrutura dos metais usando tratamentos térmicos ou adicionando elementos químicos.
Bom, espero que de alguma forma possa ter tornado mais claro esse estranho fenômeno de bolhas com uma capacidade de destruição assustadora. E espero que os treinadores pokemóns de plantão, ao se depararem com uma batalha com um Squirtle, evitem ao máximo tomar um Bubble Beam no meio do cara. É arriscado…
Referências Bibliográficas:
- AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA. Atlas de Energia Elétrica. 2ª Ed. p.: 43-76. Disponível em: http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/atlas/pdf/04-Energia_Hidraulica(2).pdf
- COELHO, W. R., Análise do Fenômeno de Cavitação em Bomba Centrífuga – Projeto de Pós Graduação em Eng. Mecânica, Universidade Estadual Paulista, 2006.
- LOPES DOS SANTOS, SÉRGIO. Bombas e Instalações Hidráulicas. 1. ed. São Paulo: LTCE, 2010.
- MENESES, C., LOPES SANTOS, R. Comparação entre os efeitos da cavitação em alumínio e bronze. In: [18º Congresso Nacional Iniciação Científica – CONIC / SEMESP.], 2018.
- SOARES, R. L. – Projeto Conceitual de uma Turbina Hidráulica a ser utilizada na Usina Hidrelétrica Externa de Henry Borden – Projeto de Graduação em Eng. Mecânica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.
- Créditos imagem do artigo: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Centrifugal_Pump.svg (Bomba centrífuga) e https://pngio.com/images/png-a1127435.html (Squirtle)
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