Na parte I da série mais enrolada do Portal Deviante ficamos sabendo como é o “ciclo de vida” dos cabelos (e dos pêlos em geral). Apesar disso você não ficou satisfeito, porque não aprendeu do que são feitos os cabelos? Então, seus problemas acabaram, pois é sobre isso (e outras coisinhas) que você vai ler no texto de hoje!

Vamos começar nossa aventura capilar de hoje entrando no fio de cabelo. Se cortarmos um fio de cabelo na direção paralela ao seu eixo de crescimento, podemos observar que o fio apresenta três componentes principais: cutícula, córtex e medula.

O interior do fio de cabelo.

A cutícula é a camada externa do fio. Ela é formada pela sobreposição de células que ficam semelhantes a escamas. Os padrões formados pelas células das cutículas variam de pessoa pra pessoa, podendo apresentar as mais diversas formas e tamanhos, porém ela é sempre bem fininha; em geral, a espessura desta camada é de cerca de somente uma célula.

Uma vez que é a camada externa, a cutícula, age como uma camada de proteção do material interno ao fio. Se as escamas da cutícula se encaixam mais próximas uma das outras (ou como é mais comumente falado: se as escamas do cabelo estão fechadas), o cabelo é mais “difícil de molhar”. Isso deve-se ao óleo produzido pelas glândulas sebáceas ser mais uniformemente distribuído pelo fio de cabelo, deixando-o com uma superfície suave que reflete a luz, resultando num cabelo mais brilhante. Devido à ação de vapor, calor e/ou agentes químicos, as escamas podem se tornar abertas ou amolecidas, o que deixa o cabelo mais poroso. Por isso que o uso em excesso de secador e/ou chapinha, lavagem com água muito quente, tinturas, alisantes, entre outras coisas podem deixar o cabelo menos macio e brilhante com o tempo. 

A camada mais interna no fio de cabelo é a medula. Ela é praticamente constituída de bolhas de ar, sendo que em cabelos mais finos, ela pode nem existir. Como forma de comparação, essa camada sempre existe nos pelos dos animais (por isso os pelos dos nossos bichinhos são mais grossos que nossos cabelos).  

A parte central do fio do cabelo é o córtex. E da mesma forma que essa camada constitui cerca de 90% da massa do cabelo é a partir dela que vem a maior parte desse texto. 

Para falar do córtex, imagine uma corda trançada. Tal corda é produzida enrolando uma linha fina na outra e a junção de várias dessas linhas finas formam uma linha mais grossa, que, juntamente com outras linhas mais grossas, são trançadas formando a corda. Se tirássemos a cutícula, nosso fio de cabelo, ou seja, o córtex exposto, seria semelhante a várias dessas cordas enroladas uma nas outras. Confuso?

Corda trançada.

Vamos ir desenrolando tudo isso para entender melhor. Já sabemos que o conjunto das cordas enroladas é o córtex, logo cada uma das cordas é uma célula cortical.

As células corticais são formadas por macrofibrilas alinhadas ao longo do eixo do cabelo (as macrofibrilas são nossas linhas mais grossas enroladas umas nas outras para formar a corda). Essas macrofibrilas são separadas por membranas finas que consistem nos restos do conteúdo citoplasmático inicial das células. Quais células? As células da epiderme! Lembram delas? Como falei na parte I, um conjunto dessas células formam o folículo capilar e a partir dele “nasce” o fio de cabelo, mas o que vocês ainda não sabem é que mais de 90% das células epidérmicas são queratinócitos, células que produzem queratina. E uma característica dos queratinócitos é que ao produzir a queratina, a célula morre (a célula é dita então queratinizada). Logo, a célula cortical é formada por macrofibrilas envoltas em conteúdo citoplasmático das células epidérmicas que foram formando o fio de cabelo.

Diagrama mostrando a estrutura do córtex.

Indo mais a fundo dentro do córtex do fio, temos que cada macrofibrila é formada pelas linhas finas da nossa corda trançada ou as microfibrilas. E estas são formadas por fibras proteicas enroladas umas nas outras, chamadas de filamentos intermediários.

Nazaré está confusa com tanta coisa enrolada uma na outra…

Falei sobre ela lá no começo da parte I, então para entender o que são os filamentos intermediários, vamos ver o que é a queratina?

Finalmente chegamos na queratina!

Queratinas são proteínas constituídas principalmente dos aminoácidos: alanina, leucina, arginina e cisteína. Podendo ser encontradas na natureza nas formas alfa-hélice e beta-pregueada.

A proporção dos aminoácidos constituintes e a forma da proteína dá origem a diversos tipos de materiais diferentes, indo desde cascas de tartarugas e chocalho de cascáveis até nossa pele, unhas e cabelo.

Em especial, nosso cabelo é formado pelas alfa-queratinas. Proteínas que têm a estrutura secundária de alfa-hélice apresentam tal forma devido à ligações de hidrogênio formada entre os grupos N-H e C=O pertencentes à aminoácidos diferentes da cadeia (três a quatro aminoácidos de distância entre eles).

Estrutura secundária alfa-hélice.

Agora imagine duas alfa-hélices de queratina próximas uma da outra… Essas duas cadeias formam um dímero unidos covalentemente por ligações dissulfeto, devido à presença da cisteína. Os dímeros se alinham formando o protofilamento, que por sua vez, se junta à outro semelhante formando a protofibrila. Finalmente, quatro protofibrilas se polimerizam, formando o filamento intermediário que nós vimos mais lá acima.

Estrutura do filamento intermediário de alfa-queratina.

O alinhamento desses filamentos intermediários formam então a microfibrila, como já vimos. Uma vez que essas microfibrilas são perfeitamente orientadas podemos comparar a macrofibrila a um compósito reforçado com tais fibras numa matriz proteica amorfa (ou seja, que não tem a orientação de longa distância, como as fibras) composta de cisteína ou glicina, tirosina e fenilalanina. É justamente essa estrutura da macrofibrila que dá a resistência ao cabelo.

Além da estrutura e da resistência do cabelo, a natureza do córtex nos dá também os diferentes tipos e cores naturais dos cabelos, mas esse assunto vai ficar para um próximo texto.

Para finalizar, agora que sabemos toda a estrutura do fio de cabelo, vamos para uma curiosidade capilar: você imagina que esse monte de fibra enrolada uma na outra pode se soltar, começar a desfiar, ou algo do tipo? Você já ouviu falar em pontas duplas?

Como já foi dito, a cutícula é uma camada de proteção do fio. Ela age restringindo as células corticais (ou seja as células internas à cutícula), mantendo a integridade da fibra, como podemos observar na figura abaixo que mostra um fio de cabelo virgem, ou seja, sem nenhum tipo de agente químico, como produtos de alisamento ou tinturas, aplicado.

Micrografia por varredura eletrônica de fio de cabelo virgem da raiz à ponta.

Na figura (a) temos o fio de cabelo rente ao couro cabeludo, onde vemos que as células achatadas da cutícula têm bordas lisas, regulares e bem definidas e são coladas umas às outras. A figura (b) mostra o fio de cabelo a 10 cm do couro cabeludo, onde podemos observar a degradação da cutícula: erosão, quebra das bordas das células e levantamento de escamas, com a aparência tornando-se irregular, principalmente devido à escovação regular combinada com a ação da radiação solar. Logo, devido à diversos fatores (físicos, químicos e ambientais) a cutícula vai se deteriorando e afinando, podendo chegar ao desaparecimento total, como é mostrado na figura (c) que é o fio a 40 cm do couro cabeludo. Quando não há mais a camada protetora no fio, as fibras presentes no córtex vão se separando como mostrado na figura (d) e, assim, temos as famosas pontas duplas.

Lembrando que neste caso, se tratava de um cabelo virgem, que foi “degradado” apenas por condições ambientais naturais. Eu, como entusiasta antiga de auto-mudanças capilares (com diversos agentes químicos envolvidos mesmo quando não sabia de nada), já vi acontecer a formação de pontas duplas que não eram sequer nas pontas, mas no meio do fio mesmo. E quando chega nesse ponto, não tem jeito… a única salvação é a amiga tesoura. Portanto, cuidem de seus cabelinhos!

Cuidem de seus cabelinhos.

Até a próxima empreitada capilar.

Referências:

BOUILLON, C.; WILKINSON, J. The Science of hair care. Taylor & Francis, 2005.

MONTAGNA, W.; ELLIS, R. A. The biology of hair growth. Academic Press, 1958.

LEHNINGER, A.; NELSON, D.; COX, M. Princípios de Bioquímica. W. H. Freeman and Company, 2002.

WANG, B. et al. Keratin: Structure, mechanical properties, occurrence in biological organisms, and efforts at bioinspiration. Progress in Materials Science, 2016.

A Química do Cabelo. Revista Eletrônica do Departamento de Química, UFSC, 2011.

Capa: Enrolados