Autocuidados são muito importantes. Todos nós gostamos de estar arrumados, limpinhos, cheirosos e bonitos (na medida do possível). Ou pelo menos eu suponho isso de você, caro leitor(a). 🧐

Enfim, isso também se aplica a vários outros animais, especialmente aves. Você já deve ter visto alguma ave arrumando suas penas com o bico, e até removendo penas velhas ou danificadas. Esse comportamento as permite se limpar, remover e evitar parasitas, manter as penas impermeáveis, garantir o alinhamento correto das asas para o voo e a se manter sempre divando para possíveis parceiros sexuais.

Falando assim, parece que o bico é essencial para os autocuidados de uma ave, certo? Bem, nem tanto quanto pensávamos.

Conheça Bruce, o papagaio neozelandês (ou kea, pros amigos):

Bruce, o kea.

Bruce foi encontrado muito jovem por pesquisadores neozelandeses em 2013, com a metade superior do bico dilacerada, provavelmente consequência de um acidente com uma armadilha para animais invasores (como ratos, arminhos e possums).

Ele foi levado para a Reserva da Vida Natural de Willowbank, próximo da cidade de Christchurch, onde foi tratado e permanece até hoje num santuário com outros 14 keas sem condições de retornarem à natureza. Bruce se vira bem apesar da deficiência, recebendo alimentos moles dos tratadores e interagindo com os outros keas. O interessante, no entanto, é o fato de Bruce estar sempre com as penas bem aprumadas, apesar da falta de metade do bico.

Em 2019, os cuidadores do santuário notaram que Bruce parecia usar pedriscos de poucos milímetros para cuidar das penas, segurando-as com a língua e alisando as penas entre o bico e as tais pedrinhas; potencialmente um novo registro de uso de ferramentas em animais não-humanos.

O uso de ferramentas é amplamente considerado um marcador de cognição complexa, já que a escolha, modificação e manipulação de ferramentas demandam a capacidade de resolver problemas criativamente.

Esse tipo de comportamento é tão complexo que já foi usado para diferenciar humanos “criadores de ferramentas” de todos os outros animais, numa das diversas tentativas de nos separar do resto do mundo natural, nos tornar especiais de alguma forma.

Desde o primeiro relato de uso de ferramentas por chimpanzés, publicado por Jane Goodall em 1960, dezenas de espécies foram vistas criando, modificando ou utilizando ferramentas de alguma forma; o que reduziu ainda mais nossa ~singularidade~ como espécie (agora nós nos agarramos ao título de “criadores de poesia” com tanta força que até dói).

Pois bem, um dos maiores problemas com os relatos de uso de ferramentas em animais não-humanos é que muitos desses relatos são anedóticos, sem experimentos controlados para assegurar que o comportamento interpretado como uso de ferramentas não foi apenas uma coincidência circunstancial.

Para isso, um grupo de pesquisadores, liderados por Amalia Bastos, elaborou um experimento realizado ao longo de nove dias. Eles testaram se Bruce realmente usava pedriscos especificamente para se aprumar, se ele atribuía valor às pedrinhas e se ele escolhia pedriscos específicos para seu autocuidado. Além disso, eles testaram se Bruce usava essas ferramentas em resposta à sua deficiência, observando se outras aves se aprumavam com pedrinhas e se a manipulação de objetos por outros keas no santuário diferiria da de Bruce.

Os resultados do experimento mostraram que em 90% das vezes que Bruce pegou um pedrisco, ele o usou para se aprumar; e que em 95% das vezes em que ele deixou uma pedrinha cair enquanto se cuidava, ele a pegou de volta ou escolheu outra para continuar se aprumando. Ele também preferiu pedras de poucos milímetros consistentemente, mesmo tendo acesso e conseguindo pegar objetos bem maiores no ambiente. Já os outros keas não foram vistos usando pedriscos para se aprumar, e preferiram interagir com objetos maiores disponíveis no ambiente.

Estes resultados, assim como outros registros de uso de ferramentas por keas na natureza, demonstram que essas aves possuem habilidades altamente flexíveis de resolução de problemas; e que a criação e uso de ferramentas não surgem apenas da evolução cognitiva especializada, mas podem ser inovadas conforme a necessidade em espécies com cognição suficientemente complexa para isso.

Estudos como este, publicado na Science Reports em 2021, nos ajudam a compreender melhor como a inteligência evolui em diversas espécies, os possíveis motivos que exercem pressão seletiva sobre os animais e seus paralelos e diferenças em relação à evolução da nossa própria inteligência.

Eu também gosto de pensar que esse tipo de descoberta nos mostra o quanto ainda somos ignorantes do mundo que habitamos, e quanta coisa fascinante ainda pode ser estudada, descoberta e compreendida com o uso da Ciência.

 

LEIA MAIS:

Bastos, A.P.M., Horváth, K., Webb, J.L. et al. (2021). Self-care tooling innovation in a disabled kea (Nestor notabilis). Sci Rep 11, 18035. <https://doi.org/10.1038/s41598-021-97086-w>

Wikipedia contributors. (2022, February 4). Kea. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. <https://en.wikipedia.org/wiki/Kea>

Wikipedia contributors. (2022, January 2). Tool use by animals. In Wikipedia, The Free Encyclopedia. <https://en.wikipedia.org/wiki/Tool_use_by_animals>