O Brasil combate o Aedes aegypti desde os seus primórdios. Como vimos na primeira parte do texto, o mosquito chegou em um dos períodos mais tenebrosos da história dos povos originários e permanece até os dias atuais, sempre se adaptando e transmitindo várias doenças, dentre elas, a mais comum, a dengue.
As políticas públicas adotadas no combate da dengue e outras doenças transmitidas pelo Aedes aegypti não são suficientemente eficientes, o que leva a afirmação que estamos perdendo a luta contra a dengue.
Nesta segunda parte do texto vamos para o terceiro round, contextualizando o momento que vivemos do capitalismo tardio passando pelo racismo ambiental, mudanças climáticas e chegando às novas tecnologias da vacina, bora lá.
O racismo ambiental
O tema racismo ambiental ganhou destaque no Brasil após os desastres de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019), ambos no Estado de Minas Gerais, onde a ampla maioria dos atingidos foram a população de cor negra (link). Um caso mais recente de racismo ambiental é o das chuvas no Recife, onde o urbanismo prioriza os carros e a segregação, pois quando a cidade sofre com grandes chuvas a população pobre que mora em áreas de risco corre risco de vida (link).
O termo racismo ambiental (link) foi cunhado pelo ativista afro-americano Dr. Benjamin Franklin Chaves
é a discriminação racial na elaboração de políticas ambientais, aplicação de regulamentos e leis, direcionamento deliberado de comunidades negras para instalação de resíduos tóxicos, sanção oficial da presença de veneno e poluentes com risco de vida às comunidades e exclusão de pessoas negras da liderança dos movimentos ecológicos.
O racismo, aqui falo dele de uma forma geral, é algo que está intrínseco na nossa sociedade, talvez no Brasil esse debate já até esteja avançado, porém quando olhamos os casos recentes de racismo envolvendo o futebol, com o Vinicius Jr. e os inúmeros ataques que os brasileiros recebem quando jogam, especificamente, na Argentina, é algo que faz pensar que muita coisa ainda precisa evoluir.
Para compreender o racismo ambiental, é preciso entender o modo como as cidades se organizaram, de forma a colocar a população de classe média baixa cada vez mais longe dos centros comerciais, sendo obrigada a morar em condições precárias, que colocam em risco sua saúde e bem-estar.
De acordo com o IPCC (do inglês Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), habitantes de regiões mais marginalizadas têm 15 vezes mais chances de morrer em casos de enchentes e secas do que aqueles que moram em ambientes mais seguros (link).
Talvez você esteja pensando “se o texto é sobre saúde pública e dengue, o que o racismo ambiental tem a ver com isso?” Te respondendo rapidamente: está totalmente ligado.
O modo como olhamos a saúde pública não pode ser individualizado, pois a saúde é uma construção coletiva. Vamos voltar para o que foi a pandemia ali no ano de 2020, enquanto muitos tinham o privilégio de se isolar em suas casas, outra parte da população brasileira não podia fazer isso, seja porque nem casa tinha ou porque não tinham o luxo de um só cômodo para se isolar quando positivado para COVID-19 (link).
Enquanto a gente conversava sobre a importância de lavar as mãos, muitos não tinham acesso à água encanada. Estima-se que esse número no ano de 2023 seja de 35 milhões de pessoas (link).
Agora falando sobre a dengue, as campanhas ao seu combate, que durante muito tempo tiveram um papel fundamental nessa construção da sociedade brasileira, onde o “não deixe água parada” é quase que um mantra, não é suficiente para as questões de racismo ambiental, somando com as questões climáticas.
As mudanças climáticas
Acho que algo bem claro da nossa geração é que temos que lidar com as questões climáticas agora, e isso também é uma questão de saúde pública. De acordo com a OMS (link)
A ampliação dos períodos chuvosos e as altas temperaturas favorecem o aumento da população vetorial do Aedes aegypti ao propiciar a formação de criadouros nos quais as fêmeas do mosquito depositam os ovos e por acelerar o desenvolvimento do vetor. O aumento da temperatura ainda possui uma influência na multiplicação do vírus. O resultado é o aumento dos casos de dengue.
No período da pandemia de COVID-19 houve uma diminuição dos casos de dengue no Brasil, menos pessoas circulavam logo menos pessoas o Aedes tinha contato, porém conforme o isolamento social foi reduzindo, subiram os casos de dengue. Como resultado, no ano de 2022 tivemos o recorde de óbitos por dengue no território brasileiro (link).
Trazendo a análise do relatório do Info Dengue (link), as mudanças climáticas, seguidas do aumento da temperatura, ocasionam uma expansão da distribuição do mosquito Aedes aegypti, levando mais regiões a se tornarem propícias para epidemias de dengue.
A dengue que antes era conhecida como uma doença ligada a países tropicais, com o decorrer do tempo foi se proliferando ao redor do mundo. De acordo com dados da OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), metade da população mundial está em risco de contrair a dengue. Com a doença se espalhando por novas áreas, populações que nunca tiveram contatos com a dengue tornam-se vulneráveis, já existem casos epidêmicos em países como Croácia e França (link).
Os países europeus em alerta com a dengue vem aumentando consideravelmente, por ex. a Espanha. Após os vários casos da doença em Ibiza o ministério da saúde fez um alerta sobre a probabilidade de a população contrair o vírus.
Apesar de atualmente o inverno europeu ser bastante frio, impossibilitando o Aedes de circular, com as mudanças climáticas, isso tende a mudar, tornando o convívio dos países europeus com a dengue mais comum (link).
No final de Julho de 2023 a OMS soltou mais um alerta (link) de que os casos de dengue podem bater recordes mundiais esse ano. Países como Sudão registraram os primeiros casos de dengue na sua história, a Europa está em estado de alerta, e aqui na América do Sul o Peru registra o pior surto de dengue dos últimos tempos em seu território (link).
Voltando para o território tupiniquim, existe uma associação do fenômeno meteorológico Lã Niña com a alta de casos de dengue recentes no Brasil. No verão de 2021 várias cidades brasileiras registraram fortes tempestades relacionadas ao Lã Niña junto ao aumento de temperatura. Isso fez com que regiões brasileiras que historicamente não tinham grandes casos de dengue começassem a registrar esse aumento (link).
Regiões Nordeste e Sudeste eram as que possuíam mais casos notificados (link), porém o que vem se apresentando nessa nova onda de dengue dos últimos 2 anos é os casos serem maiores na região Centro-Oestes, tornando o Brasil o país mais afetado pela dengue nas Américas (link). Essa mudança geográfica da dengue se dá pelas mudanças climáticas.
Agora que está contextualizado o racismo ambiental e como as mudanças climáticas estão beneficiando o Aedes aegypti, vamos falar sobre vacina e aquilo que pode ser o primeiro passo na vitória do Brasil contra o mosquito.
A vacina
No início de Março de 2023 a Anvisa aprovou a nova vacina contra a dengue, chamada Qdenga, desenvolvida pela empresa Takeda Pharma Ltda. A vacina é composta por quatro tipos diferentes sorotipos do vírus causador da dengue, garantindo assim uma ampla defesa para o nosso sistema imune. Sendo tomada em duas doses, com intervalo de 3 meses, a Qdenga possui uma eficácia global de 80,2%. Indicada para todas as idades entre 4 até 60 anos (link).
A tecnologia da nova vacina contra a dengue já está disponível, com uma boa eficácia e a Anvisa já a aprovou. Somando-se a alta de casos então basta colocar a vacina dentro do calendário de vacinação, disponibilizar o meu bracinho assim que possível e zé gotinha faz o restante, certo?
No final de Junho de 2023 a vacina ficou disponível, apenas para o meio privado, tendo seu valor estipulado entre R$350 a R$500, cada dose (link).
Sendo bem sincero, isso foi um banho de água fria depois de uma pandemia de proporções globais da COVID-19, onde a vacina foi pregada veementemente a sua importância de estar disponível para todos os cidadãos do mundo de modo gratuito. Ter a vacina contra dengue, em meio à alta de casos e os dados que vem saindo recentemente mostrando que a população mais pobre é quem mais sofre da doença, ter essa vacina disponível primeiramente apenas no meio privado é frustrante.
Tá, vamos ver o que falta para a Qdenga estar disponível no SUS. Toda nova tecnologia em saúde, para ser aplicada na saúde pública BR deve passar por uma série de testes que vão desde sua eficácia, aplicabilidade e preço, ou seja se o custo benefício vale a pena nessa nova tecnologia. O órgão de governo responsável por essa função é a CONITEC, que é o comitê técnico responsável pela recomendação de incorporar, excluir ou alterar as tecnologias da saúde, voltadas especificamente para o SUS (link).
Em relação a isso, apenas no início de Agosto de 2023 que a empresa responsável pelo desenvolvimento da vacina pediu a avaliação da CONITEC (link) e com isso muito dificilmente o imunizante ficará disponível esse ano para ampla população brasileira.
A partir desse pedido a CONITEC tem 180 dias para realizar a sua avaliação. De acordo com a Secretaria de vigilância em saúde do Ministério da Saúde, Ethel Maciel (link) em matéria para o Brasil de Fato
Depois da aprovação da Conitec – que avalia uma série de critérios, principalmente relacionados ao custo e a efetividade daquela estratégia – há ou não a recomendação de incorporação. Após isso, é discutido para quais grupos aquela vacina será recomendada. A partir daí, fazemos o processo de discussão e compra com a empresa (…) esse processo de incorporação, que é bem rigoroso. É preciso garantir que essa ação que vai ser incorporada tenha sustentabilidade, que a empresa fornecedora do produto tenha continuidade dessa oferta. Não podemos incorporar algo que, no ano seguinte, não teremos possibilidade de adquirir aquele produto na escala que precisamos.
Todo esse debate leva à questão da importância de um investimento de novas tecnologias de saúde no Brasil. Apesar de o instituto Butantan trabalhar atualmente no desenvolvimento de um nova vacina contra a dengue 100% nacional, já passou da hora de discutirmos um Complexo Industrial de saúde no Brasil. Com o complexo essa tecnologia é desenvolvida, aplicada e distribuída para outros países.
O terceiro round
A vacina contra a dengue só estará disponível a população a médio, algo que deve ser analisado é como ela vai estar disponível. A nível mundial, é preciso ver se os erros do início da vacinação da COVID-19 irão se repetir, com os países mais ricos possuindo um amplo número de vacinas enquanto países mais pobres não conseguindo o acesso.
Já a nível nacional, ter uma vacina disponível apenas no meio privado é frustrante e apaga a luta recente da saúde pública pela vacina gratuita e disponível para todos.
Porém, apesar dessa frustração, é importante dar destaque aos inúmeros desmontes que o SUS sofreu nos últimos anos e que só agora podemos recuperar, as perdas que a saúde pública teve serão sentidas por um longo prazo.
A alta de casos de dengue que temos atualmente se dá, para além do aquecimento global e outros determinantes de saúde, pela diminuição do investimento nos programas de prevenção que tivemos nos últimos anos. De acordo com a matéria do site outra saúde (link)
As estratégias de combate à dengue foram abandonadas ao longo dos anos de desmonte dos orçamentos públicos, o que tem tudo a ver com a volta da dengue a patamares tão altos. O modelo de desenvolvimento predatório, que produz mudanças climáticas e ampliou a incidência do Aedes aegypti para novos ambientes e épocas do ano.
Para vencermos esse terceiro round contra a dengue temos que ir além e repensar a forma como a cidade se organiza e o direito fundamental à moradia, esse pensamento ganha mais importância quando colocamos sobre a perspectiva das mudanças climáticas.
Desde a proteção ambiental, preservação da Amazônia até a melhora da qualidade de vida das pessoas que moram em áreas mais periféricas. Como já falado no texto, a saúde pública não funciona sozinha, ela deve ser contextualizada sobre a perspectiva de raça, gênero e classe social.
Não pretendia fazer um texto tão alarmista, mas acho que quando se fala de problemas estruturais no Brasil e de mudanças climáticas não existem outros tom a serem adotados. Esse terceiro round contra a dengue é o mais complexo de ser enfrentado, pois, sob a perspectiva de novas evidências, é uma luta que vai contra como o sistema capitalista está estruturalmente organizado.
Depois de tudo que aconteceu com a pandemia de COVID-19 está na hora de a saúde pública adotar uma postura anticapitalista.