Blade é um mangá escrito por Hiroaki Samura e lançado entre 1993 e 2012. Publicado no Brasil pela Conrad no formato “meio volume” até mais ou menos dois terços da obra e relançado em sua completude pela JBC em 15 volumes.
A narrativa tem um protagonista e um ponto de vista, mas em primeiro momento não é claro qual é qual. Seguimos a jornada de Rin Asano, uma jovem japonesa em 1782 que tem a família assassinada por “malfeitores” e, desde então, ela busca uma forma de se vingar do líder deles, Kagehisa Anotsu. Como ela é uma adolescente fracote, vinda de uma família relativamente abastada, ela não tem muitas habilidades físicas nem sociais. Então ela contrata Manji para cumprir a vingança no lugar dela.
Manji (em japonês 卍, Manji) é um criminoso famoso por ter matado cem homens violentamente. Paradoxalmente, o ideograma do nome dele é um símbolo comum em japonês para templos e costuma ser uma imagem iconográfica auspiciosa. Essa dicotomia, da pessoa e seu nome, é representada por seu quimono, todo em preto e branco com um 卍 nas costas.
Até aí, tudo bem.
Manji, depois de quase morrer na tal batalha contra 100 homens, é salvo por uma senhora chamada Yaobikuni e ela concede ao Manji uma forma de imortalidade, dizendo que permitirá que ele morra finalmente se ele salvar 1000 pessoas. A Rin é uma dessas pessoas que o Maji decide salvar.
Mas salvar pessoas é um conceito relativo. Kagehisa Anotsu, o homem de quem Rin quer se vingar, é uma pessoa que acredita estar lutando do lado da verdade e da justiça. Seu grupo é uma mistura das pessoas nas periferias da sociedade e que lutam para sobreviver e, por isso, ficaram mais fortes, diferente das escolas de artes marciais tradicionais do Japão que, segundo Anotsu, perderam o verdadeiro caminho da espada.
A partir daqui iniciamos a análise da obra com spoilers.
A crítica que Rin tem a Anotsu não é ao que ele quer fazer, e sim a violência que ele usa para chegar no próprio objetivo, já que os integrantes do grupo dele assassinam e estupram mulheres inocentes que estejam nas escolas que querem conquistar. Assim, aos olhos dela, o grupo de Anotsu, Itto-Ryu, é um grupo de malfeitores.
Então a história tem alguns núcleos: o núcleo Rin-Manji, o núcleo Itto-Ryu e o núcleo do shogunato/Mugai-Ryu, liderado por Kagimura Habaki.
Este terceiro núcleo é o lado político de Blade, que mostra que nada do que você está vendo é realmente a verdade total. O Mugai-Ryu é um grupo que, como Rin, quer vingança do Anotsu. Mas Kagimura Habaki também trabalha para o shogun, o líder feudal, e é contratado para investigar a imortalidade de Manji, manipulando as pessoas do Mugai-Ryu para serem seus espiões, enquanto forem úteis.
O arco da prisão é o mais interessante de se discutir aqui no Deviante. Nele, médicos são contratados para investigar a imortalidade de Manji e descobrir uma forma de replicá-la. Por incompetência deles, Kagimura Habaki se desfaz de alguns médicos até encontrar Ayame Burando, um rapaz que havia estudado o método científico ocidental e tentou aplicar em Manji.
Burando descobriu que a imortalidade de Manji é causada por vermes que regeneram a carne do corpo que eles habitam. São vermes que a Yaobikuni implantou em 5 núcleos no corpo dele e que reconstituem qualquer tipo de tecido humano para manter a saúde de seu hospedeiro.
Burando transplanta braços do Manji em outros personagens, tentando achar aqueles que teriam o mesmo tipo sanguíneo e não teriam tanta rejeição. Ele investiga como as extremidades do Manji regeneram mais devagar do que partes perto dos núcleos de vermes. Investiga como os vermes não sobrevivem fora do corpo…
A pressão que Habaki coloca em Burando é tanta que ele simplesmente para de ter ética e de tratar os pacientes como humanos e cria uma linha de produção insana, com pilhas e pilhas de corpos saindo das masmorras do castelo e sendo jogadas em trincheiras, finalmente, permitindo que Rin localize o corpo de Manji com a ajuda de Doa Yoshino, uma espadachim da Itto-Ryu.
O conceito de imortalidade com pequenos vermes é interessante, pois eles não impedem o Manji de morrer caso os núcleos de vermes sejam destruídos, mas fazem com que ele tenha uma enorme resiliência a tudo. Essa simbiose é muito orgânica e parece que o autor compreende questões interessantes do prospecto de imortalidade.
No final da história descobrimos uma passagem de tempo em que Manji até já se esqueceu de Rin e das aventuras do mangá. Isso porque ser imortal não significa lembrar de tudo. É uma solução muito humana para a imortalidade. As feridas se curam com o passar dos anos. As aventuras que têm imortais que lembram sempre de tudo costumam ser mais trágicas nesse aspecto.
Voltando aqui. A Rin é a protagonista da história. E a história dela tem um desenlace interessante, porque ela teve a chance de cumprir sua vingança mais de uma vez. Mas essa jornada com Manji também ensinou maturidade e os limites que ela consegue ou não ultrapassar. A relação dela com o Manji também é ótima porque ele a trata como irmã mais nova do começo ao fim. E o Manji é o ponto de vista, pois ele é central à história, sim, mas ele está lá no começo e estará lá no final.
O fim da história é legal de ler, recomendo. Uma das coisas legais é que parece que vai ser um daqueles mangás que corta a luta final ao meio e mostra um prólogo do que está acontecendo anos depois, mas não é isso que acontece. Esse mangá mostra a luta final e todos os detalhes horríveis das batalhas, dos caminhos que os personagens fizeram até chegar àquele momento. Eu gosto particularmente da cena em que o Manji perde um braço e depois cata outro qualquer para colocar no lugar, algo que ele aprendeu no laboratório do Dr. Burando.
Blade também é um exemplo que eu uso de personagens femininas em mangás. A Rin é incrível, a Doa é incrível e, acima delas, tem a Makie. A Makie é a menina que o Anotsu gosta e que sempre foi mais forte do que ele. E isso é uma verdade do começo ao fim. Ela é alta, bonita e sensual, e a mais forte do Itto-Ryu. Eu, pessoalmente, uso a Makie como exemplo de que em mangás japoneses existem personagens femininas que são mais fortes que as personagens masculinas.
Minha conclusão é que Blade se propõe a contar uma história multifacetada voltada aos personagens. Como as ações individuais podem moldar as pessoas ao seu redor e como as ações do outro podem moldar as formas como você vê o mundo. Acho incrível que o autor pintou os vilões todos como vilanescos, mesmo dando justificativas muito palpáveis para cada um deles. Também acho incrível a cinematografia e como as cenas são cinéticas e sinérgicas, fazendo a destruição e a matança serem lindas, mas não objetificantes.