Recentemente me deparei com a série Seleção Artificial (Unnatural Selection) da Netflix. Entre os temas que a série documental abordaria estava a técnica de Crispr e a engenharia genética. Eu, louca por séries que sou, logo ajustei a poltrona e peguei o controle da TV para assistir um documentário sobre minha área de trabalho. No entanto, no primeiro episódio sou apresentada a alguns Biohackers que lançam as frases: “Por que pessoas não podem usar essa tecnologia sem entender totalmente como funciona?” e “Eles (os cientistas) não têm o direito de achar-se donos da ciência”. Isso me fez querer falar um pouco sobre os trabalhos atuais dos biohackers e quais os verdadeiros riscos e nossos temores.

Mas antes, o que é Crispr e o que são os biohackers? 

Crispr é usado como uma técnica de engenharia genética, que permite remover e substituir regiões do DNA de um organismo. Os biohackers são entusiastas que usam tecnologias como o Crispr para realizar alterações biológicas e criar terapias genéticas caseiras. Em sua grande maioria, não possuem formação na área, mas apresentam como principal fator motivador a vontade de criar produtos que antes eram produzidos unicamente por empresas farmacêuticas. 

Os biohackers formam comunidades conhecidas pelo movimento social Do-it-yourself biology (Biologia – faça você mesmo), que defendem a liberdade atribuída a qualquer humano em escolher se modificar e de possuir o poder destas tecnologias. Existem atualmente conferências dessas comunidades em diversas regiões como o próprio Vale do Silício, onde estudantes, entusiastas, empresários e cientistas se encontram para compartilhar e experimentar suas descobertas, que incluem desde alterar a cor de um camundongo e produzir cerveja luminescente até o desenvolvimento de tratamentos médicos.

Glow-in-the-dark beer. Cerveja luminescente produzida através da inserção do gene de água-viva no genoma de Saccharomyces cerevisiae, levedura utilizada na produção de cervejas. Fonte: The-Odin.

Mas se eles possuem boas intenções, por que nos preocupamos com os biohackers?  

Na série é apresentada a empresa The-Odin, que, por preço acessível, fornece kits de Crispr para qualquer pessoa realizar experimentos em casa. No entanto é importante lembrar que essa técnica ainda está em processo de aprimoramento, a exemplo temos o pesquisador He Jiankui que esteve envolvido em escândalos acerca da edição genética . Ele utilizou a técnica Crispr para realizar edições em genes de embriões humanos com o intuito de conferir resistência ao HIV. No entanto, as edições acabaram não ocorrendo realmente como He havia programado, resultando em alterações indesejadas.

Erros como estes ocorrem devido a própria limitação da técnica, que é capaz de identificar regiões no DNA realizando um corte em um ponto específico do genoma, quebrando as duas fitas da dupla hélice do DNA e depois utiliza o próprio sistema de reparo celular para unir as regiões cortadas e realizar as edições. No entanto, esse sistema não é completamente confiável e pode inserir ou excluir bases do DNA nas regiões cortadas, levando a alterações não controladas que variam entre as células. Assim, colocar esse tipo de tecnologia acessível a pessoas sem o conhecimento necessário pode ser bastante arriscado (1).  

Biohackers além da técnica Crispr

Uma das maiores preocupações quanto aos biohackers é a auto-aplicação com o intuito de estimular confiança e a disponibilização de produtos a terceiros.  Alguns dos casos ganharam a mídia como o de Tristan Roberts, portador do vírus HIV que compartilhou em sua rede social um vídeo em que injeta em seu próprio corpo uma substância composta por partes de DNA que estimulam a produção de anticorpos N6, que em condições laboratoriais são capazes de neutralizar o vírus do HIV. 

 Outro caso notório é o Open Insulin Project, equipe de biohackers que tem trabalhado em um protocolo aberto e de baixo custo para a fabricação de insulina. E o projeto Slybera, liderado por biohackers que tem como objetivo copiar o medicamento Glybera, um dos mais caros do mundo, de modo a baratear o tratamento disponível para portadores de deficiência de lipase.

O grande problema da disponibilização destes supostos tratamentos é a  ausência de dados pré-clínicos, o desconhecimento acerca da sua farmacocinética e farmacodinâmica ou de dados sobre sua toxicidade. Além disso não há regulamentação sobre a  produção ou garantia de pureza e segurança do produto (2).Muitos dos resultados de produtos dos biohackers são baseados em relatos dos usuários e não em estudos científicos controlados.

Outro ponto é a popularização de forma irresponsável da ideia de ausência de risco em alterar geneticamente algo e liberar este no ambiente. Constantemente no documentário vemos biohackers reais em eventos reais disseminando a ideia do “pode usar sem problema” algo que foi criado sem testes e controles para os quais não se sabe o real resultado. Ainda em laboratórios de universidades e centros de pesquisas realizamos alterações e obtemos algo que não era o objetivo, esse risco é ainda maior em um ambiente sem um controle real, fazendo com que um biohacker não possa garantir a segurança de seus produtos.

E o bioterrorismo? 

Não podemos negar que é fácil plantar uma história sensacionalista sobre esse tema. São pessoas, muitas vezes sem o devido preparo, trabalhando com edição genética, logo é fácil imaginar um novo vírus escapando de um laboratório amador e assolando a humanidade. Um exemplo do medo que pode ser criado está na reportagem do The New York Times que correlacionou os laboratórios “de garagem” dos biohackers e a possibilidade de criar o vírus da varicela usando fragmentos sintéticos de DNA. No entanto, é importante lembrar que a criação de um vírus usando fragmentos sintéticos foi realizada em um laboratório tradicional de uma Universidade com acesso aos fragmentos de DNA, a equipamentos e padrões. Enquanto que os biohackers podem comprar kits com a bactéria Escherichia coli e leveduras adaptadas ao ambiente, sendo improvável algo catastrófico vindo desse meio.

Mas, ainda que consideremos um biohacker com intenções de bioterrorismo, que tentasse criar um patógeno do zero partindo de fragmentos de DNA que possam ser facilmente comprados, é improvável que algo perigoso para a humanidade surja. Ainda que este possa obter equipamentos necessários por meios ilícitos, é improvável que este consiga convencer uma empresa a fornecer fragmentos de DNA de agentes com potencial de causar danos. E mesmo com tudo isso em mãos, construir um patógeno de zero ainda é um processo com um caminho difícil a ser percorrido, mesmo dentro de um laboratório tradicional (3)

No entanto, com o objetivo de reduzir ainda mais qualquer uma dessas possibilidades, o governo americano, partindo de um projeto de lei  do estado da Califórnia, pretende impor exigências sobre os kits ou até proibir em 2020 a venda dos kits de Crispr para laboratórios caseiros.

Voltando a série do Netflix

O documentário aborda muito mais do que os biohackers, levantando também as questões éticas da engenharia genética mesmo em laboratórios tradicionais. Devemos editar o DNA de uma pessoa? Podemos melhorar um ser humano, ou só curar doenças? Quem decide isso? São algumas das perguntas levantadas, mas conversaremos sobre elas depois. Por enquanto, você pode deixar seu comentário sobre os biohackers. 

Por fim, aqui discutimos unicamente a questão dos biohackers, mas voltarei com uma revisão completa da série com o olhar de alguém que está dentro do ambiente abordado.

 

Referências:

  1. Super-precise new CRISPR tool could tackle a plethora of genetic diseases. Nature.
  2. Opening the door to backroom biologics. Vol. 37, Nature biotechnology. 2019.
  3. DIYbio gets a poxy rap. Nature biotechnology [Internet]. 2018 Jun 6 [cited 2018 Jun 6];36(6):477. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29874219.