Imagine o seguinte cenário: ao caminhar por uma grande cidade, você repara em grandes espaços naturais no ambiente urbano. Desses locais, saem e entram pessoas o tempo todo. De lá, verduras são colhidas e sementes são distribuídas. Feiras são montadas e pesquisadores colhem caules. Namorados andam de mãos dadas, enquanto o galã não para de falar sobre curiosidades daquele local. Provavelmente seja o espaço mais movimentado da cidade. Aquilo é uma praça normal? Uma horta comunitária? Afinal, que ambiente é aquele?

Já reparou no grande problema que estamos enfrentando nesta década? Precisamos avançar nosso consumo na direção de suprimentos sustentáveis, mas ao mesmo tempo estamos atolados na necessidade de matrizes poluentes. Nunca na história da humanidade estivemos em um dilema tão complexo quanto agora.

Para resolver dilemas, a humanidade acabou desenvolvendo um método brilhante, que testa hipóteses e influi em teorias certeiras sobre a realidade: a ciência. E ela tem sua própria ideia sobre como podemos lidar com esse problema.

A ciência nos adverte há tempos sobre como podemos mudar o mundo para um caminho mais sustentável. A resposta dela, antes de tudo, passa por reconhecer a natureza de nosso consumo neste século. Por tudo que fazemos, precisamos gerar uma alta carga de resíduos, que causam danos tanto ao meio ambiente quanto à saúde humana. E isso não precisa ser dessa forma.

No texto de hoje, iremos entender um pouco mais sobre bioeconomia, o conceito de paisagem aos olhos dessa ciência e sua relação com a segurança alimentar. Afinal, podemos imaginar regimes alimentares diferentes do atual? Vamos estudar agora!

A ciência tem se esforçado para adequar nossa sociedade ao conceito de desenvolvimento sustentável. Deste contexto saiu a ideia de bioeconomia. Este novíssimo campo multidisciplinar visa transformar a prática econômica com insumos e matrizes oriundas do mundo biológico, mais eficientes e sustentáveis [1]. A bioeconomia tem como objetivo salvaguardar e valorizar todas nossas diversidades, biológica, cultural e social, presentes das mais diversas maneiras. Somente assim teríamos um desenvolvimento real, integrado e sustentável.

A bioeconomia é um conceito multifacetado, em que cada cadeia de suprimentos possui fundamentos diferentes [2]. Por envolver princípios biológicos, é uma revolução na maneira de pensar a natureza como provedora de recursos, sem dissociar a economia da sociedade e do meio ambiente. E logicamente esse paradigma influi na alimentação saudável!

 

Imagem um. Um dos princípios da bioeconomia é a valorização da biodiversidade local para formação e consolidação de novas economias. Na indústria alimentícia, novas empresas de ecossistema bioeconômico investem em produtores locais como fornecedores de ingredientes frescos, ajudando a preservar florestas e agrossistemas [3]. Na figura, observa-se um tacacá com camarões em destaque.

Pensar neste modelo de ecodesenvolvimento é entender o aspecto circular e progressivo das mudanças sociais e econômicas quando colocamos o elemento ambiental na equação. É aprender a gerir a vida humana e suas sociedades através de paradigmas naturais, aproveitando nossos mais variados conhecimentos milenares no processo.

O conceito de bioeconomia é importante pois consegue unir dois princípios independentes: a conservação de ecossistemas e o crescimento econômico [2]. Para isso, a bioeconomia passa necessariamente pela valorização das cadeias de produção e de fornecimento de produtos naturais, que acabam por se tornar matéria prima para a indústria alimentícia, cosméticos, do complexo da saúde e de construção. E para isso devemos ter em mente a importância da biodiversidade.

A biodiversidade é essencial em qualquer projeto bioeconômico. Manter uma estrutura biodiversa é garantia de recolher e sintetizar recursos genéticos importantes à melhoria contínua de processos. E essa biodiversidade não é somente do meio biológico, mas de culturas e vivências humanas. Incluindo aí o conhecimento de grupos indígenas e minoritários, como caiçaras, veredeiros e ribeirinhos. Ou seja, é manter também maneiras singulares de viver e entender a natureza.

Assim, projetos bioeconômicos precisam manter áreas de interesse ausente de desmatamentos ou outros abusos ecológicos. Locais em que as práticas agroextrativistas possam ser valorizadas e que mantenham hábitos de vida das populações locais. São estes ambientes os precursores da chamada paisagem bioeconômica, a unidade essencial desse sistema.

Paisagem bioeconômica é a menor unidade estrutural da planificação bioeconômica. É o espaço dentro de cidades e campos usados para regeneração natural, crescimento da flora-fauna, captação de recursos e extração de alimentos. Alguns ainda o indicam como locais para convivência e lazer verde, ecoturismo, hortas comunitárias e difusão científica.

Essas paisagens são espaços destinados à reprodução da vida natural, simbólica e estrutural das culturas. É um ambiente permissivo à pesquisa, produção de alimentos e outros insumos genéticos. As paisagens bioeconômicas podem inclusive ser espaços dentro das cidades, crescendo sinergicamente juntamente com seus cidadãos.

Para que todos esses benefícios possam ser efetivamente colhidos, é necessário termos em vista princípios como participação social, direitos territoriais de uso e recursos, conhecimentos tradicionais e enfoque intercultural [2]. Ou seja, precisamos superar nosso atual regime econômico-político e entender nossa sociedade como uma democracia biorregional. Algo que não é tão fácil de aplicar, tanto por questões legais quanto por fobias sociais.

 

Imagem dois. A biodiversidade brasileira, aos olhos da bioeconomia, torna-se base para muitos produtos fundamentais do nosso cotidiano [4]. Estima-se benefícios como o incremento de 284 bilhões de dólares até 2025 em faturamento. Na imagem, observa-se alguns componentes-base para alimentos, cosméticos e até biocombustíveis.

Existem diversos pontos em que a bioeconomia se entrelaça com a segurança alimentar. Todas as atividades produtivas na paisagem bioeconômica são geridas se baseando na capacidade de recuperação do sistema, não retirando mais do que o necessário à sociedade. Agrossistemas modernos podem ser aplicados mais facilmente com o paradigma bioeconômico, como por exemplo a agroecologia, integração lavoura-pecuária-floresta (ilpf) e permacultura. Todos com o menor uso de pesticidas e agroinsumos.

Quando alinhamos a nossa necessidade de abastecimento alimentar com o conceito social de bioeconomia, somos capazes de superar diversos estigmas atuais. Assim poderíamos sobrepor nosso atual regime alimentar, que é a junção de toda nossa estrutura de produção com o modelo econômico em que vivemos.

O atual regime é caracterizado como corporativista e restritivo em relação aos seus benefícios [5]. Muitos estão sujeitos à insegurança alimentar de maneira naturalizada, enquanto poucos obtêm valores desse modo de produzir. Para superarmos este estigma, precisamos entender princípios que são individuais de cada pessoa e atuar coletivamente tanto nos campos como nas cidades.

A bioeconomia se permeia com o conceito de regeneração das capacidades vitais e espirituais do ser humano, o que traz uma lógica muito diferente da científica, mas até mesmo complementar. Através desse processo, mecanismos simbólicos e tecno-sociais podem ser aplicados e transformados de maneira orgânica, garantindo a sustentabilidade e a melhoria da qualidade de vida.

Alguns benefícios diretos são a garantia de melhor permeabilidade do solo nesses espaços, promovendo a absorção da água da chuva e diminuindo o impacto das enchentes. Esse é inclusive o objetivo da idealizada cidade-esponja, absorvendo mais água para o uso ecossistêmico.

Os espaços produtivos de agroecologia também podem virar ambientes precursores de compostagem, retornando externalidades positivas e diminuição do uso de fertilizantes. Atraindo fauna e flora silvestre, esses espaços produtivos obteriam elementos controladores de vírus, pragas e outros microrganismos, responsáveis por uma variedade gigantesca de problemas de saúde.

Assim, espera-se o estreitamento e empoderamento das comunidades urbanas, além da criação de novos modos de ser-fazer nas cidades. Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) e lazeres seriam possíveis de serem desenvolvidas nesse quadro, apropriando as pessoas das dinâmicas política, social e econômica da alimentação.

Com isso, somos capazes até de idealizar uma nova espécie de sistema alimentar, que é a maneira como organizamos nossos recursos e estruturas para fornecer alimentos [6]. Trazendo dinâmicas ecossistêmicas para dentro dos espaços urbanos, espera-se que também se faça força contra a lógica campo-cidade atual, muito desproporcional com relação aos benefícios de moradores da cidade em comparação com agricultores e camponeses.

Já imaginou espaços “naturais” nas cidades que sejam tanto mantenedores de benefícios climáticos quanto econômicos e sociais? Poderíamos ter locais de produção comunitária e estocagem de gêneros alimentícios com gasto energético irrisório? Além de mais feiras, poderíamos esperar novas características sociais, novas culturas alimentares, ambientes e urbanidades.

A paisagem bioeconômica, de forma mais incisiva, pretende estudar e aplicar todos esses paradigmas. Assim, espera-se a melhora em índices de segurança alimentar como acessibilidade, disponibilidade e estabilidade dos sistemas agrícolas. Com o avanço de tecnologias genéticas, até poderíamos especular sobre um maior grau de utilização desses produtos, de forma como nunca foi alcançado com outras cadeias de suprimentos.

Ambientes de pesquisa e aplicação científica, as paisagens e o paradigma bioeconômico pretendem lidar com uma grande gama de problemas sem deixar a economia esfriar. Quase como trocar um pneu enquanto o carro está sendo acelerado ao máximo em uma autoestrada. O problema é bem mais complexo do que supúnhamos, mas cientistas têm trabalhado com esta linha de pesquisa das mais variadas formas e conceituações.

Ao longo desse ano, pretendo mostrar algumas ideias únicas da bioeconomia para discutirmos esse futuro possível. Espero que eu possa contar com sua presença para desvendarmos juntos as diversas importâncias dessa ciência! Até a próxima e que tenhamos um feliz 2025!

 

Referências
[1]: GAMA, Adriane; BRASILEIRO, Tânia. Territórios inovadores da bioeconomia: Uma abordagem conceitual pela revisão sistemática da literatura. Revista Brasileira de Economia, v. 78, n. 2, 2024.
[2]: MARCOVITCH, Jacques; VIL, Adalberto. Bioeconomia para quem?: bases para um desenvolvimento sustentável na Amazônia. São Paulo, 387 p. vol. 1. 2024.
[3]: SUSTENTABILIDADE, Notícias. COP30: indústria alimentícia do Pará aposta na biodiversidade. Portal Agência de Notícias da Indústria, 07 fev. 2024. Disponível aqui.
[4]: SUSTENTABILIDADE, Notícias. A bioeconomia já faz parte do seu dia a dia e temos provas. Portal Agência de Notícias da Indústria, 03 nov. 2024. Disponível aqui.
[5]: GRACIA, Mariana Tarricone; BÓGUS, Cláudia Maria (Organização). Hortas comunitárias urbanas: promovendo a saúde e a segurança alimentar e nutricional nas cidades. Instituto de Saúde, vol. 1. 384 p. São Paulo, 2024.