A cena do rap nacional passa por uma espécie de transformação. Talvez, o evento mais simbólico e que deixou clara essa metamorfose foi o lançamento da canção Sulicídio interpretada pelos nordestinos Baco (Bahia) e Diomedes Chinaski (Pernambuco), em 2016. Tratou-se de um ataque violento ao eixo Rio/São Paulo e, ainda que não tenha se convertido em um produto de massas, foi capaz de provocar uma reestruturação no campo do hip hop nacional.
A afirmação desse movimento veio no ano seguinte com o primeiro álbum solo de Baco, intitulado Esú. Com ele, o rapper baiano conseguiu não apenas marcar posição em seu habitat como romper as fronteiras de seu nicho, conquistando dois prêmios Multi Show, nas categorias de Canção do Ano (Te Amo Desgraça) e Revelação do Ano. Como não poderia deixar de ser, o álbum está repleto de menções ao Nordeste e sua cultura, com referências ao Nação Zumbi, cantigas de roda, Jorge Amado, entre outros.
No entanto, ainda que faça um apelo ao regionalismo e valorize as raízes locais, o trabalho de Baco não deixa de manifestar um elemento típico do hip hop: a transnacionalidade. Para entendermos isso é preciso convidarmos ao palco a figura do sociólogo britânico, Paul Gilroy. Em seu aclamado livro O Atlântico Negro, de 1993, Gilroy apresentou a interessante ideia de que a cultura negra não se constrói apenas em relação às tradições nacionais às quais ela pertença. Assim, por não se enquadrar aos padrões identitários locais, o negro possuiria uma dupla consciência de si, entendendo-se não apenas como britânico, como no caso do próprio autor, mas também como parte de um grupo mais amplo vinculado ao seu biótipo.
Neste ponto, Gilroy defende que a cultura negra se desenvolve de maneira para além das margens nacionais, por meio das trocas de experiências de todas as pessoas negras espalhadas pelo globo, mais especificamente na rota do Atlântico: Europa, Américas e África. Segundo o autor, isso teria começado juntamente com o próprio transporte e comércio de pessoas escravizadas pelos mares do oceano, tendo o navio como representação cabal desta metáfora. Nos porões das embarcações, homens e mulheres de diferentes rincões da África se encontrariam pela primeira vez, buscando elementos comuns que os unissem naquele momento de dor. Ao desembarcarem, partiriam para outros lugares encontrando gente de sua cor, mas com outras línguas, sotaques e experiências de vidas distintas, com origem não apenas no continente de onde partiram, mas de outros locais da América.
Com o fim do tráfico de pessoas escravizadas, o Atlântico seguiu sendo a rota pela qual esse intercâmbio continuou a ser produzido, mas, agora, por meio dos marinheiros e da sociabilidade dos portos. Em cada atracagem, as vivências e as histórias de negros lendários eram difundidas. Relatos de uma África idealizada em cenários idílicos tomavam conta do imaginário na busca por um mundo onde mulheres e homens negros pudessem, em fim, viver livre da opressão. No advento do século XX, os marinheiros ganhariam um reforço de peso: a imprensa. Jornais “étnicos” surgiriam com força nos três pontos do oceano, convertendo-se em uma espécie de troca de correspondência entre militantes do movimento negro espalhados nas Américas, Europa e África. Por meio de tais páginas, tomavam conhecimento da realidade uns dos outros, suas estratégias de luta e sobrevivência enalteciam suas vitórias e falavam sobre a África, o lugar de onde “todos” vieram.
O mais interessante dessa lógica proposta por Gilroy é que ela começa com a dinâmica de circulação física de pessoas pelo mundo atlântico, mas, por fim, o autor percebe que, apesar de elas não estarem mais em locomoção como antes, suas ideias e suas tradições não pararam de se movimentar. É como se a cultura negra estivesse constantemente vivendo a diáspora iniciada por seus antepassados que foram arrancados de seus lares rumo ao novo mundo.
É justamente no balanço das ondas que a batida do rap aparece no livro de Paul Gilroy. Segundo o autor, a partir de meados de 1970 a cultura negra encontrou uma outra plataforma para realizar seu intercâmbio: os LPs. Não apenas nas imagens das capas, nas letras ou nas mensagens embutidas nos encartes dos álbuns, mas na elaboração de um gênero musical próprio. Conforme nos conta o sociólogo britânico, apesar de estar diretamente associada ao universo do negro dos Estados Unidos, o hip hop possui sua história diretamente ligada ao mundo atlântico. Trata-se de um “som” que nasceu nas ilhas do Caribe, mixado em estúdios da Inglaterra e que desembarcou nos EUA pelas mãos de DJ’s que organizavam festas na periferia de Nova York. Com suas pick-ups e caixas de som, eram apresentados pelos MCs (mestres de cerimônia) que costumavam fazer um discurso de introdução sob a batida da música a ser executada. De aí em diante os bailes deram origem às danças, incorporando as cores dos grafites de cada “gueto” e dando origem à cultura hip hop e seus filhos mais conhecidos: o funk e o rap.
Por falarmos em festa, é hora de trazermos o Baco de volta ao espetáculo, pois acreditamos que ele faça parte desta história, uma vez que esta dimensão transnacional da cultura negra atrelada ao hip hop aparece em seus trabalhos. Na verdade, isso se manifesta imediatamente na declamação que introduz a canção de abertura de seu disco Esú. Conforme se ouve:
“Este ritmo binário/ Que é o alicerce principal de quase todos ritmos/ Da canção popular do Brasil/ Veio importado de longe/ Das placas ardentes da África/ […] Atravessou o Atlântico sob a bandeira dos navios negreiros/ Servindo para marcar o andamento de melopeias/ Que vinham dos porões em vozes gemidas e magoadas”.
A capa do álbum também merece uma menção especial. Nela vemos, de costas para o público, um homem negro de braços abertos diante de uma catedral e, sobre ela, junto ao céu azul, a palavra Jesus escrita. Porém, o nome de Cristo aparece rasurado, com o J e o S rabiscados e um acento agudo sobre o U, formando o nome do álbum, Esú, em referência a Exu. À primeira vista, isso poderia ser um sinal de negação à cultura ocidental, por conta da mutilação do nome da divindade cristã, mas também pode ser lido de maneira diferente. Afinal, trata-se da forma pela qual os negros sobreviveram ao mundo colonial, camuflando sua cultura nos símbolos dos outros. Como destaca Gilroy, o atlântico negro é uma contracultura da modernidade porque nasce como uma leitura alternativa do mundo construído pela modernidade. E isso se deu na religiosidade, mas também na musicalidade, tanto na forma de se apropriar da imagem dos santos do senhor de escravos, como de seus instrumentos musicais. Foi assim com o Blues, na sonoridade distorcida pelo slide, na blue note como nota de passagem e no uso da escala pentatônica para tocar o violão do “europeu”.
Não por menos será no blues em que Baco vai encontrar a fonte de inspiração para seu segundo álbum, intitulado Bluesman. Aqui, mais uma vez a figura de Cristo irá aparecer, agora na canção que abre o segundo trabalho do rapper. Nela, ouvimos o seguinte dizer: “Jesus é Blues”. Mais especificamente nesse trecho:
“Eu [o blues] sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos/ O primeiro ritmo que tornou pretos livres/ Anel no dedo em cada um dos cinco/ Vento na minha cara eu me sinto vivo/ A partir de agora considero tudo blues/ O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues/ O funk é blues, o soul é blues/ Eu sou Exu do Blues/ Tudo que quando era preto era do demônio/ E depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de Blues/ É isso, entenda/ Jesus é blues/ Falei mermo”.
Ao reconhecer no blues o princípio de tudo, Baco nos demonstra que suas origens não estão no Brasil, apesar de ele ser daqui. Assim como não estão na África, apesar do “ritmo binário” ter vindo de lá. Ao mesmo tempo, suas origens também estão nesses lugares, pois são o resultado da troca de experiências de negros de várias partes do mundo e de diversos momentos da história. Isso fica evidente mais adiante, na mesma canção, quando o rapper baiano faz referências a ícones e momentos da história norte-americana como sendo parte de sua própria trajetória. Conforme ele afirma: “eu sou […o] Mississipi em chamas”.
Se ainda resta algum tipo de dúvida sobre a transnacionalidade presente na obra de Baco, ela se dissipa quando vemos que, em seus versos, ele estabelece uma interlocução com várias de suas referências da música estadunidense. E isso se dá quando ouvimos sair de sua própria boca a afirmação de que ele é o Keyne West da Bahia, na faixa que tem essa expressão como título. Ou então, quando ele fala Me Desculpa Jay-Z pelos sonhos eróticos que tem com a Beyonce. Da mesma forma, é interessante perceber que o álbum tem início com uma corruptela da canção de Muddy Waters, Everything’s Gonna Be Alright, e se encerra com uma faixa intitulada BB King. Nela, Baco (o Exu do Blues) diz que faz rimas como se fosse o BB King solando. Além disso, fala que é resultado das pessoas que amou. Neste caso, podemos dizer que não apenas das pessoas com quem teve relações, mas daquelas as quais presta suas homenagens.
Antes de nos encaminharmos para um desfecho, serão necessários uma última pausa e o retorno a umas três faixas atrás em nosso texto. O livro de Paul Gilroy surgiu em um momento de discussões em torno da globalização e o impacto que ela teria sobre as culturas periféricas, mas também quando se debatia acaloradamente pelo fim do apartheid na África do Sul. Por meio de seu constructo intelectual, Gilroy imaginou a capacidade dos negros de se entenderem como parte desse mundo global e para além dos nacionalismos que segregam. Por isso, não deveriam buscar a África como a pátria, mas no Atlântico o seu espaço de vivência.
Segundo essa interpretação, as referências dos negros seriam amplamente partilhadas por qualquer membro dessa etnia que habitasse qualquer parte do oceano. No campo do hip-hop, 2pac e Sabotage fariam parte do mesmo panteão e seriam representantes de uma mesma ancestralidade. Diferente dos tempos de Jackson do Pandeiro em que o nacionalismo era a tônica para a identidade, quando era proibido misturar o bebop ao samba, pois isso era sinal de estrangeirismo, agora, reivindicar o samba como herdeiro do blues é um exercício de afirmação de sua própria existência.
Marcos Sorrilha Pinheiro. Professor de História da América na Universidade Estadual Paulista em Franca/SP; escritor de literatura fantástica, autor de “Lino Galindo e os Herdeiros do Trono do Sol”; e pai do Nicolas e do Henrique, meus parceiros de Minecraft nas horas vagas.