Heróis quase sempre têm algum efeito sedutor sobre o sexo oposto. Pode ser a máscara, o físico atlético, as proezas acrobáticas, mas pode ser também que personagens dispostos a se sacrificar pela coletividade tenham algum efeito sedutor sobre personagens femininas. Esse efeito pode ser um dos sintomas das pressões seletivas que moldaram o H. sapiens com sua característica capacidade, mesmo entre os mais sociais dos primatas, de se sacrificar para ajudar os outros.

Recentemente lançamos um scicast sobre moral. Como esse é um assunto muito amplo, era de se esperar que o episódio fosse apenas a porta de entrada do senso moral nos humanos e em outros animais. Entre espécies que dependem das relações sociais para sobreviver, é esperado que a evolução selecione mecanismos adaptados para aumentar interações com quem é cooperativo, evitar egoístas e punir trapaceiros. Como falamos no programa, esse senso moral surge com base em tijolos sociais, e um deles é o altruísmo (capacidade de ajudar os outros mesmo gerando custos para si mesmo).

Para entender como a moralidade surgiu ao longo da evolução, temos que entender primeiro a evolução do altruísmo, porque sem essa capacidade de se colocar no lugar do outro provavelmente não evoluiria um sistema sofisticado de regras (escritas ou não) de como se comportar.

Provavelmente foram várias as pressões seletivas forjando indivíduos mais cooperativos ao longo da evolução, mas nesse texto vou explorar mais especificamente a teoria da seleção sexual. Claro, indivíduos mais cooperativos provavelmente recebiam mais favores de volta como pagamento pelas suas boas ações. Indivíduos altruístas formavam coalizões mais fortes e capazes de se proteger de inimigos, obtinham mais alimento caçando em grupo e etc. Mas provavelmente esses indivíduos mais altruístas também recebiam “pagamentos” na forma de sexo.

Como ser cooperativo nessas sociedades é fundamental para a sobrevivência do grupo, esses “ajudadores” deveriam ser pagos com a moeda de troca do status. E universalmente homens que adquirem status social elevado são considerados mais atraentes pelas mulheres, fazem mais sexo e possuem mais parceiras sexuais. É um caso perfeito de seleção sexual, em que as mulheres escolhem homens mais altruístas e com elevado status social para fazer sexo, assim como entre os pavões o macho com a cauda mais extravagante é o escolhido (essa seleção sexual pode ter causado efeitos decisivos no comportamento e na aparência dos seres humanos ao longo de sua história evolutiva).

Ao longo desse texto você vai perceber como isso faz todo sentido biológico, e vou tentar convencê-lo disso descrevendo um estudo sobre isso. Segure o fôlego e acompanhe a leitura até o fim.

Para cada escolha (evolutiva), uma renúncia

Antes de falar sobre o estudo em si, vou explicar como o altruísmo poderia ter sido selecionado via seleção sexual.

Primeiro, considere a complexidade cognitiva dos seres humanos. O H. sapiens consegue se adaptar a praticamente qualquer ambiente, mas não porque possui muitas adaptações físicas para isso, como pele mais grossa para sobreviver no frio e coisas do tipo. Nosso poder de sobreviver em condições ecológicas variadas vem da nossa capacidade de manipular o ambiente criando tecnologias que nos ajudam nesse processo de adaptação fenotípica.

Em outras palavras, os seres humanos são cognitivamente complexos a ponto de solucionar problemas que outras espécies não conseguiriam. Essa capacidade vem do nosso cérebro grande e plástico. O cérebro humano ficou desse jeito graças a certos trade-offs evolutivos. Para ter um cérebro assim, o parto das mulheres se tornou mais complicado. Humanos possuem cérebros maiores, o que permite esse desempenho cognitivo peculiar e essa capacidade de se ajustar a variados contextos. Para as mulheres isso é complicado porque crânios maiores são mais difíceis de passar pelo estreito canal vaginal. Mas um cérebro mais poderoso é também um cérebro mais maleável, assim como o crânio que o abriga. Crânios mais maleáveis permitem o crescimento cerebral ao longo do desenvolvimento, e isso acaba vindo bem a calhar para as mulheres, facilitando o parto.

Humanos são capazes de aprender mais que outras espécies porque nascem menos prontos, mas isso tem um preço. Filhotes sapiens são muito mais frágeis do que filhotes de outras espécies, e por isso precisam da proteção familiar por mais tempo. Também precisam de mais calorias para sustentar o funcionamento desse sugador de recursos que é o cérebro. Por isso o cuidado biparental é tão importante para nossa espécie. A mãe precisa estar mais tempo junto dos filhos porque precisa amamentá-los e cuidar deles no geral, então é preciso de outras pessoas para caçar animais e coletar alimento, e na grande maioria das vezes quem fazia isso eram os homens — embora em algumas culturas avós e outros parentes possam ter papel fundamental nesse cuidado parental. Ou seja, é uma divisão de trabalho impulsionada pelos desafios da vida nômade baseada na caça e na coleta, e que pode ter se agravado com a invenção da agricultura.

As avós podem ter tido um papel mais importante do que se pensa na evolução do H. sapiens

Nesse contexto, faz muito sentido que as mulheres tenham desenvolvido uma predisposição para sentir mais atração por homens que manifestam comportamentos altruístas — e outros sinais de características que aumentam as chances de sobrevivência da prole. Homens mais altruístas seriam aqueles mais dispostos a caçar e dividir o produto de sua caça com seus filhos, aumentando suas chances de sobrevivência (no scicast nature x nurture falamos sobre como ajudar os filhos a sobreviver até a idade reprodutiva é uma forma de aumentar o próprio sucesso reprodutivo).

Sinalizar o que está por trás do altruísmo

Talvez exista mais um motivo para os homens altruístas serem considerados mais atraentes. Para entender isso, é preciso pensar um pouco mais no modo de vida nômade, que foi como os seres humanos viveram a maior parte de sua vida ao longo desses mais ou menos 200 mil anos de existência.

Com base no funcionamento de tribos de caçadores-coletores atuais, sabe-se que os homens gastam um longo tempo caçando animais de longo porte, enquanto as mulheres contribuem caçando pequenos animais, coletando alimentos e cuidando da manutenção da comunidade. Os caçadores dessas sociedades nômades não caçam para levar alimento para sua família, mas para a comunidade. Em outras palavras, caçadores altruístas correm riscos e gastam energia para obter essa proteína e dividem seus ganhos com o grupo. Mas no final das contas, pelo menos biologicamente, o custo-benefício compensa. Os melhores caçadores conseguem ter mais filhos ao longo da vida e também mais esposas no caso das sociedades nas quais os homens podem formar haréns.

A cooperação na caça pode ser o tipo de aliança mais antigo entre os seres humanos

Para ser bom caçador é preciso ter saúde suficiente para arcar com essa atividade arriscada. Ou seja, para caçar bem é preciso ter saúde, vigor físico. A biologia se refere a isso como “bons genes”. Isso significa que caçadores mais hábeis também possuem um sistema imunológico melhor para lidar com patógenos — que eram mais prevalentes no ambiente ancestral do que hoje em sociedades industrializadas.

Bons caçadores tendem a ter determinadas características físicas e comportamentais associadas a mais saúde. Por exemplo, voz mais grave, maior altura e corpo mais musculoso, e comportamentos de risco são características desses homens, e são características que também fazem com que as mulheres os julguem como mais atraentes nessas sociedades. Isso porque a testosterona é o hormônio que influencia a produção dessas características a partir da puberdade, e em níveis elevados a testosterona suprime parte da eficiência do sistema imunológico. Então, se um homem ostenta níveis altos de testosterona com essas características físicas é porque possui um sistema imunológico bom o suficiente para arcar com seus custos. Os filhos desses caçadores não vão se beneficiar apenas por ter mais recursos para sustentar sua dieta, mas também porque vão herdar genes associados a uma saúde mais resistente — se isso é importante hoje, imagina antigamente.

Sobre atratividade de homens altruístas

Há vários estudos corroborando essa hipótese de que homens altruístas são mais atraentes, que é o caso do artigo publicado na British Journal of Psychology Society que vou mostrar.

Esse estudo tentou responder a duas perguntas. Primeiro, homens mais altruístas são considerados mais atraentes? Segundo, ser mais atraente equivale a maior sucesso reprodutivo (i.e. mais filhos, mais relações sexuais, maior variedade de parceiros sexuais)?

Para isso, foram realizados dois estudos separados.

Nos bastidores do estudo

A hipótese no primeiro era que os participantes que se classificassem como mais altruístas, também se classificariam como parceiros mais desejáveis. Isto é, relatariam ter tido mais parceiros sexuais ao longo da vida, ter feito mais sexo casual, e, entre os comprometidos, os mais altruístas fariam sexo mais frequentemente com a parceira. Os pesquisadores também esperavam que essas hipóteses só valessem para os homens, já que só eles parecem se beneficiar com a fama de altruísta.

Todas essas medidas (o quão altruístas e o quão bons parceiros) foram extraídas por meio  de escalas, instrumentos usados para mensurar determinado construto psicológico, que são empregados muito cotidianamente em pesquisas dessa natureza (para mais detalhes, dê uma olhada no artigo original).

Os resultados desse primeiro estudo foram bem detalhados, mas para ser sucinto vou mostrar o essencial.

Parece que realmente o grau de altruísmo foi eficiente em predizer o sucesso reprodutivo dos participantes. Para chegar a essa conclusão, foi realizada uma análise estatística chamada regressão. O nível de altruísmo explicou 19% do sucesso reprodutivo dos participantes, o que significa que outros quase 80% de outros fatores explicam esse sucesso reprodutivo masculino (nada surpreendente, já que nenhum estudo tem como mensurar 100%).

Levando em consideração agora a quantidade de parceiros sexuais, o altruísmo pareceu explicar 26% do sucesso reprodutivo, mas somente para os homens. O altruísmo não impactou no sucesso reprodutivo feminino.

Com relação à quantidade de sexo casual, os homens pareceram fazer mais do que as mulheres. O altruísmo explicou 23% do quanto homens fazem sexo casual.

A influência do altruísmo foi mais fraca sobre os homens que estavam num relacionamento fixo, explicando só 13% da variância do sucesso reprodutivo.

Limitações

O primeiro estudo teve uma limitação clara. As medidas de altruísmo e sucesso reprodutivo foram baseadas em autorrelato. Isso abre espaço para que o participante simplesmente minta, esteja enganado sobre si mesmo, não lembre da informação ou algo do tipo. Além disso, as pessoas poderiam dar a resposta mais politicamente correta. Para prevenir esse tipo de viés, usaram uma escala sobre desejabilidade social.

O estudo 2 foi um experimento, o que elimina a desejabilidade social e ao mesmo tempo oferece uma medida mais confiável dos níveis de altruísmo do participante. A tarefa experimental era o Dilema do Ditador, que em linhas gerais envolve manter quantidades de dinheiro fictício para si mesmo ou doar, em várias situações.

Análises estatísticas muito parecidas foram feitas nesse caso. Resumidamente, parece que de fato quanto mais altruísta o participante se mostrava no experimento, mais ele parecia ter tido dates ao longo da vida. Mas essa interação só ocorreu nos participantes homens. O mesmo valeu para o número de parceiros sexuais ao longo da vida, quantidade de sexo casual e parceiros sexuais no último ano (nesses dois últimos casos, mulheres altruístas também tinham sucesso reprodutivo aumentado).

O efeito sedutor do altruísmo tem tudo a ver com HQs e vida real

Percebe-se que os resultados foram um tanto mistos no que diz respeito ao quanto o comportamento altruísta prediz o sucesso reprodutivo e a atratividade do sexo oposto. Mas nos homens o altruísmo previu mais vezes o sucesso reprodutivo do que em ambos os sexos.

Esses resultados corroboram o que estudos anteriores já tinham encontrado e teorizado. Aparentemente, o altruísmo é uma sinalização custosa que ajuda no sucesso reprodutivo especialmente dos homens. Isso é visto tanto em populações industrializadas quanto em tribos de caçadores-coletores. Pessoas altruístas beneficiam quem está ao redor, mas elas também beneficiam a si próprias porque ser mais prossocial garante privilégios em termos de prestígio e de acesso a parceiros reprodutivos. O altruísmo é um atributo que não só beneficia os que estão ao redor, mas também o seu emissor, pois aparentemente suas chances de fazer sexo aumentam.

Claro que na nossa sociedade ajudar os outros pode não significar ter mais filhos. Temos uma série de artifícios tecnológicos que burla os mecanismos naturais, como camisinha e anticoncepcional, mas mesmo assim o sucesso reprodutivo pode ser mensurado através da quantidade de parceiros sexuais e de sexo que é feito — e foi isso que esses dois experimentos levaram em conta.

Esses resultados não significam que todo homem altruísta vai ser atraente, e nem que toda mulher se interessa por esses homens. Esse estudo apenas verificou uma tendência estatística numa amostra.

No final das contas parece que existe certo fundo de realidade no apelo da imagem do homem altruísta. Um dos efeitos sedutores dos heróis pode ser justamente seu comportamento exageradamente altruísta. Seguindo a lógica da sinalização custosa (que também explica por que cigarros e chopps aumentam a atratividade), atos heroicos de autossacrifício em prol da coletividade sinalizam a posse de superatributos físicos, ou, em outras palavras, “bons genes”. Para efeito de comparação, seria a mesma lógica que leva os quadrinistas a desenharem personagens femininas com formas de ampulheta em proporções impossíveis para um corpo humano feminino normal. Apesar do exagero óbvio, essas histórias funcionam porque quanto mais intenso um atributo considerado atraente, mais atraente as pessoas vão considerá-lo. A realidade impõe limites na ostentação dessas características (seja o altruísmo masculino ou as formas físicas femininas nos quadrinhos), mas a ficção não.