Siga esses passos: pense em uma pessoa que você gosta; lembre-se de um momento agradável que passou com ela; em seguida lembre de alguns detalhes como algo que foi dito, como estava o dia, que roupas usavam.
Agora que você fez isso eu preciso te dizer: essas suas lembranças nunca existiram.
A pergunta mais difícil de todas
Eu acredito que o meio mais simples de deixar um físico desconcertado ou no mínimo pensativo é pedir que ele responda algumas perguntas sobre a nossa compreensão do tempo.
“O que é o tempo?”
“Qual é a origem do tempo?”
“O tempo do futuro existe desde o passado?”
“O que existia antes do tempo?”
“O que significa dizer antes do tempo”?
Para tornar essa tarefa ainda mais difícil basta adicionar uma instrução como “Não use exemplos ou analogias na sua explicação, apenas definições”.
Meu objetivo não é responder essas perguntas, mas sim fazer com que você pense sobre elas. Tome um tempo agora e tente responder essas perguntas com o conhecimento que você possui.
O tempo é provavelmente o maior e mais antigo mistério da ciência. Embora tenhamos nos acostumado com ele desde que percebemos os dias iniciando e acabando, ainda não conseguimos explicar o tempo de maneira satisfatória. Passado, presente e futuro são conceitos que desde bem pequenos compreendemos e os associamos a acontecimentos de nossas vidas:
“Não posso repetir a semana anterior e estudar mais para aquela prova.”
“Eu deveria estar estudando agora.”
“Semana que vem é a prova e preciso estudar.”
Entendemos bem que o passado é imutável, o presente é o que sempre vivemos e o futuro sempre será um tanto incerto por ainda não ter acontecido. Talvez você concorde comigo que o passado é o aspecto de maior certeza dentre os três. Quando algo acontece conosco, o futuro poderá ser qualquer um, mas o passado é aquele momento que já foi vivido e que sabemos o que ocorreu lá. Bom, não é bem assim…
Modelos e abstrações
Quando um cientista faz um modelo matemático para um determinado fenômeno, ele sabe que o modelo sempre será uma aproximação, não é uma descrição perfeita da realidade. Um modelo pode ser bom em determinadas situações e falhar em outras, tudo depende do nível de exigência necessário. Ao ver notícias como:
“Experimento mostra mais uma vez que a Teoria da Relatividade de Einstein estava correta.”
Sabemos que a teoria partiu de um modelo mental de Einstein que tomou forma com a adição de um formalismo matemático. Esse modelo é tão bom que até hoje identificamos previsões corretas do modelo com experimentos inéditos. De todo modo, mesmo as teorias mais bem sucedidas falham ou não são compreendidas em alguns casos observados (como a adequação da Relatividade à Mecânica Quântica ou mesmo a explicação do que ocorre no interior dos buracos negros).
Você pode pensar em um modelo matemático como uma máquina ou equação que recebe alguma informação e responde como será ou foi o comportamento de algo. É uma espécie de computador, você fornece alguns parâmetros (Ex: Posição, tempo, velocidade e massa dos planetas do Sistema Solar) e então pode saber o que aconteceu no passado (Ex: Se subtrairmos alguns milhões de anos onde estariam todos os planetas?) ou o que acontecerá no futuro (Ex: Onde estarão os planetas em 50 milhões de anos?).
Agora, como já dito antes, esse computador não representará a realidade. O modelo pode não ter levado em conta que o Sol morrerá em 5 milhões de anos; que corpos de fora do Sistema Solar podem ter formado ou interagido com os planetas bilhões de anos atrás.
Ok, sem mais enrolar chegamos no ponto que eu desejava. Vamos a um experimento mental. Deixando de lado a sua capacidade de desenhar, precisamos simplificar o modelo. Se você olhar para um objeto por algum tempo, será que consegue memorizar como ele é para em seguida desenhá-lo sem uma nova observação? Se quiser, experimente com o desenho abaixo, observe-o por uns 30 segundos e em seguida tente reproduzir a imagem em um papel sem olhar novamente para o desenho.
Será que obteve algo parecido com meu experimento?
Mesmo que eu tenha me esforçado, há diversas diferenças entre o desenho original e o reproduzido por mim mesmo sendo um desenho simples. Por que você acha que isso acontece?
Pense, ao observar a figura estamos “lendo” os detalhes dos contornos com nossos olhos (adquirindo informação sobre a realidade). Enquanto isso, nosso cérebro tenta identificar alguns padrões (você provavelmente identificou o que está no desenho como um gato, isso é nosso cérebro usando nossos conhecimentos e experiências prévias para reconhecer melhor a imagem) e começa a criar uma abstração mental do que vemos na imagem.
Segundo a Wikipedia, abstração é: uma operação intelectual que consiste em isolar, por exemplo num conceito, um elemento à exclusão de outros, dos quais então se faz abstração. Por exemplo, abstraindo uma bola de futebol de couro, por uma bola de futebol, retemos apenas a informação enxuta das propriedades e comportamentos de uma bola de futebol.
Ao observar a imagem estamos recebendo uma informação para criar um modelo mental do desenho e a partir disso temos a capacidade de recriar a imagem. O modelo possui falhas como esperado, mas boa parte das pessoas, com boa vontade, identificariam um gato nela.
Há ainda outro ponto importante, esse modelo mental é dinâmico. Se tentarmos desenhar o gato algum tempo depois podemos não lembrar de alguns detalhes ou lembrar de outros de modo diferente.
Para que serve uma abstração?
Enquanto tento memorizar a imagem, posso criar modelos mais simples se tiver objetivos simples. Por exemplo: se eu quiser simplesmente criar uma imagem de um gato, posso desenhar algo muito diferente, mas que ainda lembre um gato; se eu estiver interessado em reproduzir o formato da boca do gato, não preciso prestar atenção no resto da imagem; alguém que teve um gato pode sem querer lembrar de detalhes de remetam ao seu próprio animal.
Quando criamos uma abstração sempre vamos levar em conta nosso próprio viés ou ponto de vista, isso é inevitável. Volte agora para a cena que pedi que você imaginasse no início do texto. Podemos ser literais e dizer que no ambiente em que se encontrava só você tinha aquele ponto de vista, não havia ninguém na mesma posição ao mesmo tempo.
Mesmo que todas as pessoas tivessem a mesma visão há ainda o viés e um “ruído” adicionado pelo cérebro, isso está relacionado a quem somos, como fomos criados, ao que é importante para cada um de nós, etc.
É tudo uma mentira
Já entendeu onde pretendia chegar com a lembrança do início do texto? Essa sua adorável lembrança não existiu da maneira que você lembra. Seria impossível que nosso cérebro recebesse toda a informação necessária para criar cada simples aspecto do momento e seria também muito “poder de processamento” para que ele pudesse criar uma abstração fiel a tudo que foi observado.
Todas as pessoas que estavam na sua lembrança não têm a mesma percepção dos próprios sentimentos daquela experiência, cada um lembra de detalhes diferentes, alguns podem não lembrar de todos que estavam lá, enfim… Mesmo que todas as memórias fossem unidas, não seria possível reproduzir a realidade daquela cena.
Ao pensar em uma pessoa qualquer, não pensamos nela como realmente é, estamos utilizando uma abstração dela. Muitas decepções amorosas acontecem por causa disso. Sabe o “ele mudou” ou “não é mais o mesmo”? A pessoa pode ter mudado, mas é provável que ao iniciar um relacionamento nós, movidos pela paixão, criemos uma abstração pouco fiel à realidade e mais fiel ao que desejamos em alguém. Aos poucos vamos conhecendo a pessoa e se não estivermos com a mente preparada vamos nos decepcionar com a inadequação da pessoa com nossa abstração dela.
Não se preocupe, não direi aqui para jogar fora todas as suas memórias, já que elas nunca existiram. Digo apenas que é importante pensar sobre nossa própria visão da realidade, ela não é única. Entender isso pode facilitar o exercício da empatia, lembrando que a realidade do outro pode ser diferente.
Todos temos, ou teremos, algumas memórias que volta e meia nos assombram e tiram nosso sono. Não se preocupe tanto com elas, preocupe-se mais com o que você pode fazer no presente para melhorar o seu futuro.