Desde os anos de 1960, estudiosos do comportamento humano investigam como o discurso médico influencia a construção e reprodução de categorias sociais e identidades individuais. Irving Zola, Thomas Szasz, Michel Foucault e Erving Goffman são alguns exemplos. No início, as discussões se restringiam ao campo da psiquiatria, porém, a partir dos anos 1980, elas se expandem para as outras áreas da medicina. Em 1975, como parte da recém inaugurada sociologia médica, o sociólogo Peter Conrad propõe o conceito de medicalização.

Embora muito criticado, Conrad dedicou-se, durante décadas, a aprimorar sua definição e em 2007 publicou aquela que seria sua obra mais completa sobre o assunto, The medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Conrad buscou, desde as primeiras páginas, transcrever de maneira objetiva uma revisão sobre o conceito, apontando transformações e superando imprecisões. Mais do que nunca, ele estava convencido de que este seria um conceito de grande importância sociológica. E nós também…

O que seria medicalização, afinal? O autor a apresenta como um processo pelo qual algumas experiências humanas, que antes não eram classificadas como médicas, passam a ser definidas ou tratadas como tal e geralmente sob os termos de “desordem” ou “transtorno”. Para Conrad, a definição é parte fundamental deste movimento: a medicalização depende de um relato descritivo da experiência em termos médicos, usando a linguagem médica, entendida a partir da adesão a um panorama médico e/ou tratada com intervenção médica. E, aqui, a repetição da palavra “médica” (com suas derivações) é intencional. Quero enfatizar o quão importante é, para o autor, destacar tal singularidade: o uso da nosologia e/ou de um vocabulário específico aliados à administração de medicamentos e/ou tratamentos clínicos é necessário e característico deste processo. Como efeito, foi possível entender como e por que uma grande parte das condições ou comportamentos humanos transformaram-se, ao longo dos anos, em problemas de ordem clínica, assim como alguns tipos de perturbações psicossociais começaram a precisar de tratamento químico.

Não por acaso, aquele seu parente bêbado importuno passa a ser encarado como um alcoólatra em potencial que precisará de rehab muito em breve. Não por acaso aquela nossa mania horrorosa de roer unhas passa a ser chamada de onicofagia crônica e possivelmente é sintoma de alguma desordem de ansiedade. Também não é por acaso que aquela brochada num dia menos inspirado passa a ser um sinal de disfunção erétil, então tomar um azulzinho de vez em quando não deve fazer tão mal assim, né? Além do clássico exemplo daquela criança encapetada de outrora que, de uns anos pra cá, passa a ser diagnosticada com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, o famoso TDAH, e que toma mais Ritalina do que qualquer concurseiro experiente. Todas essas são situações nas quais é possível analisar como age, na prática, para o bem ou para o mal, auxiliando ou complicando a nossa vida, o fenômeno da medicalização. Mas vale lembrar que este não é um curso linear ou definitivo. Uma vez que determinado comportamento é incluído na jurisdição médica, ele pode, em um momento seguinte, estar fora dela (o caso da homossexualidade é paradigmático). Assim como algumas definições médicas podem se transformar ao longo do tempo, incluindo e excluindo sintomas.

Vocês devem imaginar o quão complexas são as múltiplas facetas da medicalização. Para ‘cês terem uma ideia, atualmente, ao mesmo tempo que vivenciamos uma barganha de diagnósticos entre legisladores e ativistas em torno da demanda por reconhecimento médico e público de determinadas experiências particulares, como no caso das doenças raras, que visa a alcançar certos objetivos jurídicos (o dispêndio gratuito de medicação importada caríssima ou a liberação do uso de substâncias proibidas para tratamentos clínicos, por exemplo), observamos crescer o discurso pró-diversidade em contraponto aos discursos patologizantes. Discursos estes que seguem pleiteando o direito de alguns grupos de lutar pela desmedicalização de sua condição, sendo as comunidades ao redor do autismo e da surdez as maiores expoentes dessa “contracorrente”. Ambas as disputas se configuram enquanto formas de reafirmar o fenômeno da medicalização como um sinuoso processo que envolve os mais diversos atores sociais e as mais diversas categorias morais, políticas, econômicas e culturais em seu cerne.

 

Nunca mais eu vou dormir / Nunca mais eu vou dormir / Nunca mais eu vou dormir / Ih, que isso? / Michael Douglas! – João Brasil

A medicalização, segundo Conrad, também gera novas áreas de conhecimento e discussão, como o enhancement, principalmente aqueles que envolvem tecnologias biomédicas para serem alcançados.  Tal termo refere-se ao ato de aprimorarmos alguma característica ou capacidade humanas, colocando seus resultados acima da média esperada. O termo também pode se referir à criação de uma característica ou capacidade normalmente inexistentes no ser humano.

Um dos enhancement mais controversos na contemporaneidade é o aprimoramento cerebral. Até para o Conrad foi difícil definir exatamente o que caracterizaria esse tipo de booster cognitivo. Afinal, alguns métodos para turbinar nossa capacidade intelectual já foram absorvidos socialmente e ninguém liga, ninguém cria #textão. O ato de tomar uma xícara de café, ter aulas de uma nova língua ou aprender um instrumento, por exemplo, ou exercícios de concentração como os jogos de memória e a meditação são ações que modificam para melhor a sua capacidade mental, mas não instigam grandes problematizações. Qual seria, então, a diferença entre esses tipos de melhoramento mental e os medicamentosos atuais? Além do caráter laboratorial do último – o que em si já é uma diferença fundamental – a resposta pode estar justamente no contexto nos quais essas técnicas surgem e na maneira como lidamos com algumas questões-chaves, que envolvem desde a história da medicina modern, à nossa relação com nosso próprio corpo, passando ainda pela forma como os recursos farmacêuticos são produzidos e distribuídos em sociedade. E é aí que pretendo articular os conceitos de Peter Conrad brevemente expostos com o tema das pílulas da inteligência – aquelas que seriam capazes de aumentar nossas capacidades cognitivas – e tentar promover um debate bem pontual.

Originalmente usados para tratar distúrbios neurais (narcolepsia, Alzheimer e déficit de atenção), esses medicamentos começaram a ser administrados, entre as décadas de 1990 e 2000, por pessoas saudáveis que relatam aumento da capacidade de se manter atento, de se concentrar por mais tempo em alguma tarefa e de memorizar informação, ao mesmo tempo que se sentem menos cansadas e com menos sono. É verdade que o uso de drogas estimulantes, como a anfetamina, data de 1930, sendo largamente usadas na 2ª Guerra Mundial tanto por nazistas quanto pelos aliados, e seus efeitos eram basicamente os mesmos: os soldados não dormiam, tinham mais energia e provavelmente um combo surreal de ansiedade e neurose (além de se descobrirem viciados pouco tempo depois). A questão é que só muito recentemente iniciaram-se as pesquisas com substâncias medicamentosas específicas para aprimorar o cérebro de indivíduos sãos, buscando minimizar os efeitos de alucinação e vício, equilibrando o estímulo cerebral extra com os benefícios esperados. Entretanto, nenhum desses novos estudos alcançou as etapas de teste clínicos mais avançados, e, com isso, as pessoas continuam usando remédios neurais tarja preta para obter um desempenho intelectual e social melhor.

Vocês perceberam que não existe só UMA pílula capaz de “aumentar” a sua inteligência, né? Esse texto é sobre o fato de existirem substâncias medicamentosas que resultam em enhancement cerebral efetivo e, mesmo que não tenham sido fabricadas com essa intenção, são procuradas e consumidas por pessoas, até então, de boas com sua saúde mental, justamente para se alcançar esse “resultado colateral”. Para discutir se as tais pílulas da inteligência são, de fato, um empreendimento interessante/importante/legal/útil para nós, levantei três pontos de vistas éticos diferentes sobre as pesquisas e comercialização deste “novo” tipo de medicamento, apresentando, em cada ponto, argumentos contra e argumentos favoráveis. [A conclusão fica por tua conta!]

Para além do problema óbvio dos “efeitos adversos” que essas substâncias podem acarretar a longo prazo, pretendo levantar questões, digamos, mais reflexivas sobre o tema. Não entrarei no mérito, aqui, de discutir o que é “inteligência” e como seria apropriado medi-la. Parto de uma premissa simples e genérica que se refere, basicamente, às propriedades de raciocínio, memória e aprendizado. E ai, bora lá?

  • Do ponto de vista sociológico: a questão do acesso ao medicamento

Como mediar o acesso aos enhancements? Um bom argumento contra o incentivo às pesquisas e comercialização das pílulas do aperfeiçoamento é que a circulação dessas novas drogas reforçaria as desigualdades sociais entre os indivíduos. Parto do pressuposto que as chances de favorecermos indivíduos já bem colocados na sociedade são enormes, tendo em vista a configuração da mesma e alguns eventos históricos nos quais o fato de ter surgido uma ferramenta mais eficiente promoveu novas escalas de desigualdade entre os indivíduos.

Em um sistema no qual a meritocracia, a herança, o capital financeiro e a concentração de renda ditam regras fundamentais de comportamento, status e bem-estar, a aparição deste tipo de medicamento, ainda inacessível à maior parte da população mundial, só acentuaria as disparidades socioeconômicas, em prol dos lucros (mais) estratosféricos (ainda) da indústria farmacêutica. Tendo a achar que somente quem tem um acúmulo financeiro ou cultural – já suficiente, inclusive, para destacá-lo e diferenciá-lo daqueles não favorecidos – poderá ter acesso ao aprimoramento mental em forma de cápsulas. Em outras palavras, estaríamos elaborando mais um método para distanciar pessoas de estratos sociais diferentes, mantendo injustas as oportunidades e as condições reais de alcance dos objetivos de vida dos cidadãos. Corremos o risco de criar uma classe de aprimorados mentais e, portanto, superior, e uma classe de não aprimorados, inferior.

Entretanto, há meios alternativos pelos quais a sociedade pode se beneficiar das pílulas: se fizermos da distribuição desse tipo de droga uma política pública, reforçando o papel social das indústrias e democratizando o acesso ao aprimoramento da inteligência, poderíamos, assim, promover uma equiparação das chances dos indivíduos de classes diferentes em um mesmo cenário competitivo, reduzindo, em parte, obstáculos decorrente dos assimétricos contextos sociais preexistentes. O controle e a forma como esses medicamentos estariam dispostos à população dependeriam do mesmo sistema público de distribuição de outras drogas, e ficariam, igualmente, a mercê dos problemas típicos. Porém, as pílulas poderiam compensar as estruturas precárias de vida de uma pessoa, e o que antes determinaria um baixo rendimento intelectual, com o boost extra, reequilibraria as chances de todos.

  • Do ponto de vista epistemológico: a questão da criatividade e dos interesses humanos

Hoje em dia, as drogas que se propõem aprimorar mentalmente os indivíduos estimulam a concentração focada, ou seja, direcionam sua atenção quase exclusivamente ao exercício de uma só tarefa. Pretender aumentar a capacidade cognitiva humana através do reforço da dedicação exclusiva levanta algumas questões centrais para a Filosofia da Mente: tal remédio não diminuiria a criatividade humana, uma vez que os insights e o raciocínio inovador dependem do ócio e da geração espontânea de novos interesses e diferentes conclusões a partir das ações originais? Ao estimular um único efeito, seja, por exemplo, a rapidez da leitura e absorção de conteúdo, não promoveremos um padrão de comportamento que priorizará um desempenho tal que não admitiremos resultados diferentes dos obtidos pelo dopping mental? Se a ideia de máxima concentração e máxima performance é vendida junto à pílula, não homogeneizaríamos as práticas dos indivíduos? Não estaríamos, portanto, promovendo uma “despluralização” da inteligência humana?

Em contrapartida, se há em nós, desde que nos entendemos por gente, o ímpeto de aprimorar técnicas e ferramentas, por que não se empenhar em melhorar nosso próprio corpo, inclusive o cérebro? Conhecidos os efeitos colaterais e as limitações de uso de uma ferramenta, a princípio, podemos utilizar essa ferramenta de modo a satisfazer nossos interesses sem prejudicar outros, certo? O desenvolvimento de estudos farmacêuticos é um exemplo, dentre outros, da capacidade do ser científico em ultrapassar limites, questionar efeitos, buscar novas soluções, enfim, exercer sua função de pesquisador. Melhorar o desempenho do cérebro é poder, em última análise, criar melhores condições para continuar criando.

  • Do ponto de vista moral: a questão do corpo equilibrado, inalterável e sagrado

É verdade que paira sobre nós a ideia de um equilíbrio natural do corpo, logo, alterá-lo significaria alterar um equilíbrio pretensamente planejado. [“Mente são, corpo são”. “Somos a imagem e semelhança de deus”. “A natureza é perfeita”. E outras frases de efeito que ilustram esse princípio] Nesse sentido, a intervenção externa e direta em nossa estrutura orgânica só é desejável se for para restabelecer uma suposta ordem natural das coisas ou para prevenir a desordem, ou seja, quando estamos doentes/instáveis/alterados ou para evitar que soframos com algum desses estados no futuro. Sob a ótica desta moralidade que nos orienta (e é baseada em uma narrativa cristã ocidentalizada do mundo e da qual o discurso médico também faz parte), consideramos que as pesquisas com medicamentos são bem vistas ou bem quistas somente quando têm a intenção de curar ou proteger. Em última análise, carregamos conosco – e o saber médico não está imune – o valor de um corpo sagrado, que deve ser conservado e que julga ruim as modificações que reconfiguram o nosso pretenso “design original”.

Sendo assim, as pesquisas e a comercialização das drogas do aprimoramento mental enfrentariam, questionariam e contestariam a constituição física “perfeita” do ser humano, colidindo com preceitos morais fundamentais, desejando alterá-la sem “necessidade”. Tendemos a reconhecer na natureza as funções orgânicas e as respostas de nosso corpo, com isso, o aperfeiçoamento bioquímico laboratorial nos afastaria cada vez mais de nossa origem natural, e, em última instância, nos desumanizaria. Admitir o uso irrestrito dessas pílulas é admitir que corrompessem o que nos foi dado de mais sagrado.

Por outro lado, também é um preceito moral que nossa autonomia e capacidade de escolha devam ser garantidos. Aprimorar nossas capacidades mentais através de pílulas fabricadas por nós mesmos seria a prova cabal de que somos capazes de usar o livre-arbítrio para nos aperfeiçoar ainda mais, seja pela possibilidade de nos desenvolvermos tecnologicamente a ponto de conseguirmos produzir uma ferramenta como essa, seja pelas consequências provenientes de seu uso, utilizando todo o potencial humano resguardado. Se superamos alguns dos questionamentos que colocavam em dúvida, séculos atrás, a “santidade” dos saberes médicos, é muito possível que consigamos retirar a manipulação de técnicas de enhancement cerebral do campo das práticas “profanas”.

 

Mais uma dose / é claro que eu estou afim / A noite nunca tem fim / Por que a gente é assim? – Cazuza

As pílulas da inteligência – ou qualquer tipo de enhancement mental medicamentoso – podem ser, assim, consideradas mais uma passagem cotidiana do processo de medicalização da sociedade descrito por Conrad. Porém, é importantíssimo salientar que a todo o tempo nos deparamos com registros históricos, muito antigos ou mais recentes, que relatam as tentativas do ser humano em aprimorar seu desempenho, respondendo, muitas vezes, a novos interesses civilizatórios. Vemos a descrição de métodos e substâncias adotados por guerreiros/as, militares, cientistas, ou artistas que hoje são corriqueiros ou foram abandonados completamente.

Portanto, somos levados a crer que, quando uma prática de aprimoramento é transformada em uma prática cultural, passamos a ignorar as tensões que a rodeiam (a não ser quando questionada a validade do sistema como um todo) e naturalizamos seus efeitos (a não ser quando questionada as consequências de uma tradição). A descoberta e o desenvolvimento das pílulas da inteligência, ou de outras drogas parecidas, são relativamente recentes e o caminho para virar (ou não) cultura ainda é longo. Mas não podemos descartar, é lógico, a hipótese de que daqui a alguns anos os especialistas dedicados ao tema venham a desaparecer e que essas cápsulas estejam sendo tomadas todos os dias, no café da manhã.

De que maneira as experiências vividas pelos seres humanos e suas habilidades específicas serão afetadas pelas tendências do processo medicalizador é impossível de prever. Quais questões surgirão? Como as novas tecnologias medicamentosas serão absorvidas pela sociedade e como isso impactará de vez nossas concepções de natureza e de cultura? Como estaremos nos relacionando com nosso próprio corpo daqui a 100 anos? Essas são algumas das perguntas que somente nossos colegas do futuro poderão responder, mas que de agora adianto: aconteça o que acontecer será polêmico, gerará discussões e não passará impunemente pelas mãos e mentes de nós, seres curiosos.