“Do or do not, there is no try”
~ Mestre Yoda
Fato 1: A armadura de Darth Vader não é uma UTI móvel.
Fato 2: As roupas de Mestre Kenobi não são trajes típicos dos Jedi, mas roupas típicas de habitantes de Tatooine, um planeta desértico, lugar no qual buscava refúgio após a caça às bruxas promovida pela Império recém-erguido.
Essas eram verdades tácitas até que foi lançada a trilogia prequel de Star Wars (episódios 1, 2 e 3). Ninguém pensava muito sobre esses fatos, porque eram interpretações meio óbvias.
Isso pode soar estranho para você que nasceu depois de Uma Nova Esperança e teve sua vida inundada por um universo expandido de outros filmes, prequels, quadrinhos e animações. Mas existe algo ainda mais controverso como legado dessa ampliação do mundo Star Wars.
Fato 3: Os Jedi são guerreiros devotados e disciplinados que dedicaram suas vidas a dominar mente e corpo para fluir com a Força, atingindo proezas marciais e sabedoria.
Numa virada histórica, na trilogia prequel, especialmente A Ameaça Fantasma, toda disciplina monástica desses cavaleiros foi transformada em predisposição biológica ligada aos midi-chlorians, microorganismos presentes em todos os seres vivos, que instanciariam a ligação de um Jedi com a Força. De cavaleiros monásticos, os Jedi foram convertidos em mutantes treinados na Mansão do Professor Charles Xavier. Suas habilidades existiam via dotação biológica.
Consequentemente, se você não tem midi-chlorians suficientes, esqueça a Ordem Jedi, jovem padawan.
O ponto é que a narrativa da trilogia clássica não existiu por acaso. George Lucas parece ter criado os cavaleiros Jedi com base na mitologia oriental, mas a evocação tardia do argumento dos midi-chlorians parece eclipsar essa referência essencial para entender o espírito de Star Wars e sua mitologia envolvendo a Força.
Numa perspectiva ainda mais ampla, também não parece ter sido mera casualidade que essa virada biológica tenha acontecido na década de 90. Essa foi a chamada Década do Cérebro, início do mapeamento estrutural e funcional de comportamentos e variáveis psicológicas, através de imagens do cérebro.
Midi-chlorians e mapas de atividade cerebral são frutos de uma época: ambos são tentativas de dar corpo a fenômenos cuja linguagem cotidiana nos leva a supor que são essencialmente incorpóreos, até platônicos. Academicamente essa é uma ruptura necessária com o cartesianismo que rege a compreensão popular da psicologia. O problema é que frequentemente o poder explicativo desse tipo de manobra é hipervalorizado e deturpado, principalmente pela cultura pop.
Assim como mitos clássicos são em parte reflexo dos valores e visão de mundo da Antiguidade, Star Wars é sintoma de uma cultura contemporânea confusa quanto ao papel causal desempenhado pela biologia nos fenômenos psicológicos.
Um Jedi nasce Jedi ou torna-se um? É a disciplina e treinamento que fabricam um Jedi, ou suas habilidades nascem com eles? Supérfluas à primeira vista, essas questões estão começando a moldar o destino da continuação da saga nos cinemas.
A arte cavalheiresca dos Jedi
Em Uma Nova Esperança, o público é apresentado aos confins de uma galáxia sem localização ou época claras. O tempo de Star Wars não é o tempo comum, mas o tempo dos mitos, cujos acontecimentos sempre ocorrem há éons atrás, o tempo antes do tempo. Talvez você não reconheça esse formato, pois o Ocidente tem se baseado na cultura judaico-cristã, que vê seus mitos como fatos históricos, ocorridos num tempo específico. Mas o formato do mito clássico ressoa profundamente — e ao mesmo tempo é reflexo — na psiquê humana.
Para além desse aspecto mitológico, George Lucas usou como base referências bem concretas.
Em Star Wars, presenciamos como pano de fundo um golpe imperial que depôs a República. Uma Ordem protegia essa estrutura republicana na galáxia com seus cavaleiros Jedi.
A vida desses guerreiros parece ter sido inteiramente retirada dos escritos de Eugen Herrigel, filósofo europeu que foi aluno de um mestre zen-budista e de kyudo. Seu testemunho narra a perplexidade perante a misteriosa simplicidade e perícia técnica de seu professor, que transformou o caminho do arco e flecha (do, caminho, e kyu, arco) também em caminho espiritual.
Esses Jedi não passam de “arqueiros zen”. Entender a história do zen no Japão e sua existência como herança da espiritualidade não-teísta chinesa parece ser o mesmo que refazer os caminhos da inspiração de George Lucas na composição da mitologia Jedi.
Fluir com o Dharma, com o Tao e com a Força
Inicialmente praticado na Índia, o budismo logo se alastrou pela Ásia. Chegando à China, recebeu denominação específica de budismo ch’an. Essa forma chinesa de budismo é uma amálgama muito bem digerida entre budismo dhyana, essencialmente indiano, e o taoísmo, tradicionalmente chinês. Aliás, dhyana, ch’an e zen significam a mesma coisa: meditação, meditativo.
Um dos ícones do budismo na China são os monges shaolin, confinados em templos, domando mente e corpo através de meditação e técnicas marciais. Eles são conhecidos por terem fundado o conjunto de técnicas conhecidas genericamente como wushu (apesar de os ocidentais as conhecerem sob a denominação errônea de kung fu). São monges budistas, pacifistas por definição, mas também guerreiros preparados para conter qualquer invasão aos seus templos, ou para se defenderem de assaltantes nas estradas — o que era muito comum há séculos atrás.
Na mesma linha, Marco Polo, série produzida pela Netflix, traz o chinês Hundred Eyes, sacerdote taoísta que empresta sua sabedoria e perícia marcial ao Império de Kublai Khan.
A combinação entre budismo e taoísmo foi fértil, dadas as óbvias semelhanças. Enquanto na Índia a ideia dos yogues sempre foi cessar o movimento da “substância mental”, para os budistas a ideia sempre foi contemplar e aceitar seu fluxo como algo natural, mas ao mesmo tempo observar contemplativamente a vacuidade por trás desses movimentos. Se a água de um rio flui sem cessar, a essência do rio é apenas sua vacuidade, o espaço de potencialidade que promove o eterno fluxo das coisas. Essa é uma das conclusões do Dharma, os ensinamentos budistas, que casaram tão bem com o Tao.
O tipo de sabedoria e religiosidade que nós, ocidentais, conhecemos e compreendemos facilmente tem a ver com a herança judaico-cristã e grega. Nessa visão, religião tem a ver com dogmas cosmológicos e crença em deuses milagreiros e julgamentos morais. É algo predominantemente cognitivo. A sabedoria seria uma amálgama entre essas crenças e uma capacidade de examinar racionalmente a vida, tanto exterior quanto interior — o que certamente é uma herança socrática. São cognição e lógica puras.
Existem muitos elementos cognitivos de crença nas religiões do Oriente, basta pensar nas discussões conceituais acaloradas de professores budistas. Mas o ponto é que no Extremo Oriente a religiosidade e as noções de sabedoria preservaram cada vez mais o caráter de pragmatismo dialético psicológico. São práticas contemplativas acima de tudo.
Caracterizar a expressão mitológica do Oriente é basicamente descrever o caminho Jedi, uma espécie de Jedi-do (Caminho Jedi, em japonês). Eles apenas parecem ter sido deslocados para outro cenário. Samurais praticavam o zen para aumentar a perícia no manejo de uma katana, enquanto os Jedi meditam para se tornarem unos com seus sabres-de-luz. São os mesmos fenômenos etiquetados com diferentes nomes.
Midi-chlorians insuficientes, esqueça a Ordem Jedi, jovem padawan
Tao, Dharma, Força são caminhos abertos para quem quiser trilhar suas estradas. Algumas pessoas vão ter mais facilidade que outras, evidentemente.
Não era uma questão para as tradições milenares dar explicações causais em termos físicos, biológicos para essas diferentes qualidades das pessoas. Talvez alguma explicação sobre hábitos (karma) que tornam x mais complicado para uma pessoa y, mas nunca algo como “a pessoa y tem maior talento porque tem a constituição biológica z que ajuda”.
Esse tipo de justificativa é mais comum talvez do século XX para cá. Isso parece ter se alastrado com a genética — que mapeia genes correlacionados com comportamentos e predisposições — e a neurociência — que mapeia a estrutura funcional de comportamentos e predisposições. Antigamente, mestres budistas poderiam orientar o progresso da prática de um discípulo observando suas ações, sua postura, sua vida. Hoje, sabe-se que a prática meditativa modifica estruturalmente o cérebro, então a tendência é que as consequências de uma prática sejam cada vez mais verificadas através de avaliações biológicas, não só o comportamento, mais sujeito a vieses.
Até certo ponto isso não significa nada em termos de maior poder explicativo. Psicoterapia, tiro ao alvo, escrita e prática de meditação modificam a estrutura neural. Taxistas ingleses apresentam um adensamento neuronal nas áreas cerebrais associadas ao raciocínio espacial. Isso é efeito prolongado de qualquer prática, não um sinal de que tal prática tem poderes mágicos.
Na medida em que a mente não é uma substância pertencente a uma realidade e o corpo, a outra, é trivial constatar que o que chamamos de mudança psicológica se traduza automaticamente em mudanças físicas no sistema nervoso. Qual seria a alternativa? A mente como uma gosma ectoplasmática alheia ao corpo físico?
Mas é compreensível a animação. Existe certo fetiche contemporâneo em ver um comportamento ou uma mudança de hábitos e dizer “olha só, é tudo por causa do cérebro”.
Midi-chlorians e correlatos neurais explicam melhor?
Yuval Harari, autor dos magníficos Sapiens e Homo Deus, mostra um insight sobre a causa da felicidade. Segundo ele, assim como Buda propôs, não são os eventos externos que causam a felicidade ou o sofrimento, mas o modo como reagimos a eles. Quando dizemos que chocolate é bom, na verdade estamos tomando como referência as sensações corporais que esse alimento causa. O corpo é a fonte das dicotomias que criamos, incluindo prazer e desprazer, felicidade e sofrimento.
Mas Harari usa essa argumentação para alegar que a causa da felicidade, portanto, é fisiológica. Se tornaria válido afirmar que estou feliz porque existe muita serotonina e dopamina nas minhas sinapses. O poder causal seria puramente biológico.
Em entrevista, o escritor Daniel Galera fez críticas a esse tipo de mentalidade. Para ele, tudo tem sido reduzido a números, imagens e procedimentos. Transes religiosos não são nada mais que a ativação de determinadas partes cerebrais, o altruísmo não é nada mais do que um mecanismo produzido por genes egoístas selecionados ao longo da evolução por fazer seus portadores terem mais filhos.
Não é tecnicamente correto dizer, entretanto, que necessariamente explicações biológicas reduzem fenômenos psicológicos.
Sendo filosoficamente mais rigoroso, existem vários tipos de redução. A experiência religiosa pode ser descrita em termos de uma esfera de análise mais básica que a psicológica, a neurobiologia. Ou que a experiência religiosa nada mais é que um evento neurobiológico, sendo a linguagem psicológica uma ilusão. A primeira explicação não retira o status de realidade da esfera psicológica, mas a segunda, sim. Críticos parecem inferir que só existe essa última forma de redução.
Essas são discussões conceituais muito próprias dos filósofos. Cientistas geralmente passam direto por esses dilemas, afirmando uma ou outra versão de reducionismo, tanto faz. Stephen Hawking e Neil Degrasse Tyson, por exemplo, divulgadores científicos pop, acham que a ciência ultrapassou a filosofia — como se ambas estivessem competindo por um osso. A cultura pop eleva a imprecisão conceitual a alturas acrofóbicas. Cientificamente isso é muito prejudicial.
Frequentemente pesquisas descobrem correlatos neurobiológicos para determinada emoção, cognição ou comportamento e é divulgada como se tivesse sido descoberta a explicação ou a causa para determinado fenômeno. É um erro cometido por cientistas, mas na maior parte das vezes é culpa da mídia.
Todos esses casos parecem surgir como manifestações de um erro conceitual: a diferença entre explicação causal e explicação estrutural.
Não foi um hipocampo — área cerebral responsável pela memória e orientação espacial — privilegiado que causou o excepcional raciocínio espacial de um taxista inglês — foi seu treinamento sendo taxista que causou sua proficiência em ser taxista, o que é instanciado por um sistema nervoso, afinal, não somos fantasmas cartesianos encarnados.
Ora, é claro que, se ele perdesse o hipocampo num acidente, sua orientação seria prejudicada gravemente, mas isso só confirma a condição de possibilidade fornecida pela estrutura. Atribuir uma relação causal seria como dizer que o que causa um soco é a mão. Isso soaria no mínimo estranho.
Da mesma forma, a felicidade não tem exatamente como causa uma série de hormônios que estruturam um funcionamento em relação ao seu meio interno e externo, que chamamos de felicidade. Hormônios e áreas cerebrais podem ser a estrutura que dão condição de existência para um fenômeno psicológico como a felicidade. São explicações estruturais, não causais. A causa poderia ser o treinamento budista, para enumerar uma possibilidade.
Esse é um terreno filosófico pantanoso.
O que “causa” um Jedi? Treinamento ou loteria biológica? O futuro de Star Wars
A virada que ocorreu na trilogia prequel de Star Wars é um exemplo pop desse fetiche por explicações biológicas. Os Jedi passam de guerreiros espiritualizados e treinados, para mutantes com quantidades anômalas de midi-chlorians, organismos vivos que vivem em todas as células — uma espécie de mitocôndria própria do universo Star Wars. A interação do organismo hospedeiro com esses micróbios habilita o organismo a uma conexão especial com a Força. O Jedi já nasce Jedi, ou no mínimo com algumas habilidades extraordinárias.
Seguindo a coerência das referências da saga, seria como afirmar que Sidharta Gautama se tornou o Buda porque nasceu com uma peculiaridade genética que proporcionava maior controle de suas sensações fisiológicas ou algo assim. Suas realizações seriam inacessíveis a qualquer um sob o manto estatístico de uma curva normal.
Os novos filmes, Rogue One, O Despertar da Força e O Último Jedi parecem estar ensaiando a expansão da mitologia Jedi, mas mais nos dois primeiros. No primeiro existe um sacerdote da Força que não recebeu treinamento Jedi, mas parece ter reflexos e confiança típicos de um. No segundo, a protagonista vence um espadachim da Ordem dos Ren pelo simples fato de ser predisposta a sentir a Força, sem ter treinamento adequado para usar sabres.
Aparentemente, a narrativa das pessoas especiais cujo treinamento só aprimora e amplia suas habilidades extraordinárias já existentes vai continuar, mesmo que o termo midi-chlorian nunca mais seja dito.
Se somente esses mutantes — aka Jedi — conseguem fluir com a Força, qual a relevância de haver templos de adoração da Força, que são frequentados também por não-Jedi? Seria como budistas que assumem que só mutantes podem obter proveito da meditação. Não sei até que ponto faz sentido montar um culto em cima de algo que aparentemente já se sabe que não passa de um mecanismo biológico que faz alguns indivíduos terem certas habilidades e outros, não. Talvez a narrativa religiosa da Força seja o último refúgio de uma interpretação mística e menos mecanicista.
De qualquer forma, mesmo sem uma menção específica aos midi-chlorians, a ideia parece ter deixado sua marca. No entanto, o que é menos pior, o legado das referências orientais pareceu ser mantido também, muito embora a mistura dos dois elementos tenha tirado um pouco do brilho da analogia sensível desses monges guerreiros — shaolin, samurais, que seja.
Graças à Década do Cérebro e ao otimismo fetichista que a acompanhou, explicações neurocientíficas foram infladas em seu poder explicativo às custas de uma distorção filosófica (estrutura erroneamente identificada como causa). A cultura pop é em parte reflexo da moda intelectual, enquanto a cultura pop é um liquidificador que tritura intelecto e banalidade cotidiana, produzindo suas próprias quimeras. Star Wars, para o bem ou para o mal, é apenas um dos sintomas do funcionamento desse sistema.