Imagine-se sozinha numa cidade de 25 mil habitantes na Amazônia, vendo o ônibus que te trouxe desaparecer sacolejante pela rodovia enlameada das chuvas de verão. Ao seu redor, apenas seu celular, seu notebook e a mala com roupas que tentam gritar “mulher casada!”, compondo elegantemente com a aliança no dedo. Tendo financiamento para pesquisas de campo na época (saudades eternas!), você encontrou um hotel em conta para passar seus dias entre baratas, hóspedes e funcionários. Agora você nada tem para fazer senão iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja apenas uma principiante e todos que poderiam te auxiliar se encontram a centenas ou milhares de quilômetros. Isso descreve um pouco minha iniciação em 2013 como mestranda em Sociologia e Antropologia 1 na pesquisa de campo em Novo Progresso, cidade-sede do município de mesmo nome no Sudoeste do Pará, cortado pela BR-163, que liga Cuiabá (Mato Grosso) a Santarém (Pará).
Caso isso tenha te lembrado das “queimadas da Amazônia”, não é por acaso. Foi nessa região que grileiros, fazendeiros e empresários combinaram por Whatsapp os incêndios intencionais para mostrar ao presidente Jair Bolsonaro que “querem trabalhar” e “produzir”2.
Voltando ao trabalho de campo, lembro-me bem do cansativo percurso na rodovia desde o Cerrado seco em Mato Grosso… Da janela do ônibus Ouro e Prata via passar o amarelado da soja e milho que dava lugar ao tom verde-capim para o gado. Das outras três vezes que retornei à cidade de Progresso, como chamam, preferi descer a BR-163 a partir de Santarém, cidade formada no encontro dos rios Tapajós e Amazonas. Nesse sentido Santarém-Cuiabá, visualize a paisagem fluvial dando lugar à estrada cercada de pastos, onde nos últimos anos irromperam silos de armazenamento de grãos e paradas de caminhões.
Já em Progresso, imagine-se andando por ruas de terra procurando moradores dispostos a conversar sobre a história local e os problemas cotidianos que enfrentam, tendo que responder a recorrentes indagações sobre o que diabos você, uma “branquinha não tão branca”, está fazendo lá, vinda do longínquo Sudeste do país. “Cadê o marido? Ele não se importa de você estar sozinha aqui não?”, questionavam. Lembre-se que a desconfiança para conversar é palpável, afinal, é da sua região natal que percebem vir os malditos “ambientalistas”, sejam agentes do IBAMA, do ICMBio e da Polícia Federal, sejam “ongueiros” ou jornalistas da Band, Globo e Folha de São Paulo. Somado a isso, quando enfatiza ser antropóloga e não “ambientalista”, te recomendam conhecer os Kayapó, que circulam diariamente entre a cidade e a aldeia, embora você pergunte sobre as ações e relações entre produtores rurais, garimpeiros, comerciantes e madeireiros.
A brevíssima descrição acima das minhas viagens para Novo Progresso foi inspirada na introdução do livro “Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922), do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942). Por um lado, sua proposta teórico-metodológica de conhecer o “ponto de vista nativo” e sua habilidade literária de fazer leitoras(es) dos grandes centros se imaginarem em sua pesquisa nas ilhas entre a Austrália e Nova Zelândia, tornou mais compreensível a vida dos “selvagens” para os “civilizados”. Por outro lado, a sua descrição da extenuante viagem até lugares radicalmente diferentes da civilização europeia, onde se formou, dava continuidade à visão vigente de que o objeto de estudo dos antropólogos se limitaria à análise de sociedades “outras”.
Apesar de toda a reformulação da Antropologia contra a visão colonialista que a fundou – graças em grande parte à publicação póstuma do diário pessoal do próprio Malinowski (ver figura abaixo) – as cicatrizes desse olhar para os “outros não civilizados” se reproduzem na prática de muitos antropólogos. Esse é o argumento da antropóloga, nascida e criada em Santarém, Telma Bemerguy no artigo Antropologia em qual cidade? Ou por que a “Amazônia” não é lugar de “antropologia urbana”: mesmo depois de reformulações teóricas a partir da crítica pós-colonial, antropólogos dos grandes centros continuaram fazendo pesquisas como se o “urbano” (que anda ao lado da ideia de civilização) não pertencesse à paisagem amazônica. Ou como se fosse restrito a Belém ou Manaus. Como mostra, isso só começou a mudar na prática com as políticas (hoje ameaçadas) de expansão de vagas e de interiorização das universidades em direção às periferias, sertões e fronteiras.
Não à toa, foi o imaginário da “fronteira” que me motivou a realizar a pesquisa na BR-163 paraense, que me chamou a atenção por meio das notícias e dados sobre a impunidade da violência contra pequenos agricultores, do roubo de terras públicas (a grilagem) e dos altos índices de desmatamento. De acordo com diferentes pesquisas, tudo isso está vinculado a empreendimentos que atuam entre legalidades e ilegalidades tendo por fim a produção e exportação de commodities: a pecuária de corte, a extração de madeira e ouro e, nas últimas décadas, a expansão do cultivo de soja e milho.
Embora mal fazendo menção à violência e raras vezes se fundamentando em pesquisas, imagens fragmentadas dessa “fronteira” são atualizadas cotidianamente nas manchetes sobre aquela suposta “terra sem lei”, onde viveriam “piratas da selva” que desmatam, devastam e chegam a realizar um “dia do fogo”. Mais recentemente ainda, me deparei com esse imaginário nas recomendações para que eu assistisse ao filme Bacurau porque teria tudo a ver com essa região. Me perguntei então: por que um filme que se passa no “sertão nordestino” nos faz lembrar da “fronteira amazônica”? O antropólogo João Pacheco de Oliveira nos dá uma pista:
Tudo o que se passa fora destes espaços sociais [europeizados] é definido como “sertão” ou “fronteira”, locus de recursos que podem vir a ser apropriados pelos cidadãos da metrópole que para ali se desloquem de forma permanente ou eventual. Os moradores dessas regiões, caracterizados como “outros” [são] desprovidos de direitos e investidos em obrigações não claramente estabelecidas. (Pacheco de Oliveira, 2016, p.18).
Tentando não dar spoilers, uma possível sinopse de Bacurau diz muito: faroeste sobre um povoado fictício retratado como abandonado em termos de políticas públicas, cuja população é tratada como matável, à margem da cidadania, mas contabilizada como voto. Fazendo jus ao seu nome (um pássaro “brabo”) e provando ser gente, os desconfiados bacurauenses se unem contra forasteiros – uma carioca e um paulista vistos eles mesmos como “outros” pelos gringos americanos liderados por um alemão – que querem exterminá-los e o prefeito que incentivou sua chegada. Na rebelião, contam com os jagunços locais ao fazerem uso da memória de lutas passadas, materializada nas armas guardadas no museu do povoado – aquele que os estrangeiros não se prestam a visitar.
Muito distante, mas nem tanto, em Progresso – nome que revela o sonho colonizador de seus “fundadores”, para quem o projeto de futuro é o agronegócio mato-grossense – ouvi muitas vezes que são pacíficos até se revoltarem por causa do “abandono do governo”. Muitos repetiam que violento é o Rio de Janeiro, onde tiroteios matam qualquer um, enquanto na BR-163 a bala tem alvo certo – porém, para os ameaçados de morte de lá, isso é muita covardia, como dizem3. Nas mobilizações por políticas públicas e variadas formas de acesso à terra e recursos naturais (que reúnem agentes bastante desiguais socialmente, diferentemente de Bacurau), ou nas resistências dos pequenos à pistolagem, recorrem a memórias de lutas transmitidas na reconstrução contínua de suas histórias em conversas, livros biográficos, fotos, entrevistas etc.
Com suas insistentes perguntas sobre o que diabos eu fazia lá reafirmavam que, pequenos ou grandes, grileiros, pistoleiros ou ameaçados de morte, todos já vivenciaram a tensão entre “eles” e pessoas como eu, que para lá viajariam apenas para retornar aos grandes centros. Ao passo em que desconfiavam de mim por vir de um dos lugares onde é produzida sua representação enquanto “outros”, confiavam que eu poderia, quem sabe, levar o “conhecimento da realidade” deles para o centro. Quem sabe assim deixariam enfim de estar à margem da cidadania ou do progresso?
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Disclaimer básico: esse é um primeiro texto sobre minha pesquisa para o Deviante e está longe de dar conta do que é a situação dos progressenses, de Bacurau ou do que é antropologia. Espero continuar escrevendo mais – mesmo em meio a incêndios de museus, florestas, direitos, políticas públicas e financiamento de pesquisas. Me ajudem mandando perguntas e comentários 😉
NOTAS
[1] Fiz mestrado no PPGSA/ IFCS/ UFRJ. Atualmente curso o doutorado em Antropologia Social no PPGAS/ Museu Nacional/ UFRJ.
[2] Em outro texto abordei diferentes vivências com o fogo em Novo Progresso. Para informações sobre a organização do “dia do fogo”, veja a reportagem da Globo Rural.
[3] A excelente série de reportagens da Agência Pública sobre as queimadas em Novo Progresso revela resistências e violências muitas vezes minimizadas ou silenciadas quando se fala sobre a região.
REFERÊNCIAS
BEMERGUY, Telma de Sousa. Antropologia em qual cidade? Ou por que a “Amazônia” não é lugar de “antropologia urbana”. Ponto Urbe, n.24, p.1-21, 2019.
MALINOWSKI, Bronislaw. [1922]. Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. Rio de Janeiro: Abril Cultural, Col. Os Pensadores, 1978.
______. [1967]. Um diário no sentido estrito do termo. Celina Falck (Trad.). Rio de Janeiro: Record, 1997.
PACHECO DE OLIVEIRA, João. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.
Renata Lacerda. Antropóloga feminista sincerona. Pesquisadora de política, movimentos sociais e conflitos socioambientais. Defensora apaixonada da universidade pública para todas e aprendiz de variadas formas de conhecimento. Ama ver, ouvir e ler histórias bem contadas e sonha em conseguir contá-las.