Dando continuidade ao texto que trata sobre controle de infecção, superbactérias e o que a gente tem a ver com isso, hoje resolvi diferenciar essas duas classes de remédios que têm objetivos completamente diferentes, mas que ainda geram uma certa confusão na cabeça de quem recebe uma receita.

Quando o organismo identifica que existe algo errado ocorrendo, invariavelmente ele desencadeia um processo inflamatório. A inflamação pode ocorrer por causa de um corte na pele, uma infecção bacteriana ou viral e até mesmo pelas altas taxas de colesterol no sangue. No início da inflamação, uma série de moléculas são liberadas no local, como histaminas, bradicininas, que tem como função desencadear reações cujo objetivo é resolver o problema. Nessa hora, os glóbulos brancos do sangue (os leucócitos) são recrutados para lutar contra o agente agressor.

Como forma de sinalizar e pedir apoio de outras moléculas para a batalha, tanto as células do local afetado como os primeiros leucócitos a aparecerem no local (os macrófagos) liberam diversas substâncias. Entre elas estão as prostaglandinas (PG), tromboxanos (TX) e leucotrienos.

Os anti-inflamatórios comumente utilizados têm como função inibir a ação dessas substâncias, em especial as PG e TX. Temos dois tipos diferentes de anti-inflamatórios: os esteroidais (corticoides como prednisona, dexametasona) e os não esteroidais – AINE (como diclofenaco, nimesulida, entre outros). Especificamente sobre os AINE, eles inibem a ação das PG e TX atuando em uma enzima chamada ciclo-oxigenase. Essa enzima também está presente no estômago e aqui ela tem uma ação de proteção das células. Por isso os AINE são conhecidos pelos seus indesejáveis efeitos estomacais. Alguns AINE mais modernos não agem nas enzimas estomacais, o que acaba por diminuir consideravelmente esses efeitos colaterais. Daqui a pouco você vai entender por que é desejável controlar a inflamação.

Esses medicamentos agem apenas nas vias inflamatórias da resposta a uma agressão, não tendo ação alguma sobre bactérias, fungos, vírus ou parasitas. Para o tratamento das infecções precisamos de medicamentos com ação voltada para esses agentes: os antimicrobianos. Alguns remédios têm ação em vários germes: alguns antibióticos têm ação contra fungos, assim como há antibióticos com ações contra parasitas. O que não há hoje disponível é antibiótico com ação contra vírus.

A maioria das infecções que as pessoas têm ao longo da vida são virais. São os casos dos resfriados, gripes, infecções de garganta e diarreias (o famoso piriri). São também para tratamento dessas infecções que boa parte dos antibióticos são prescritos de forma inadequada. Infecções virais, na maioria das vezes, são autolimitadas. Ou seja, resolvem sozinhas e normalmente em torno de 7 dias (um adendo: estou falando dessas infecções rotineiras que citei anteriormente. Alguns casos precisam de tratamento com antiviral ou não possuem cura, apenas controle). Para essas infecções utilizar medicamentos não altera o curso natural da doença, o que significa que ela irá durar o mesmo tempo com ou sem remédio. Por isso, nesses casos estão indicados os sintomáticos, que apenas melhoram o mal-estar. É aí que entra o anti-inflamatório. Ele ajuda a diminuir a inflamação desencadeada pela resposta do sistema imunológico ao agressor, nesse caso o vírus, ajudando também a controlar dor e febre.

Eventualmente, a infecção viral pode complicar com uma infecção bacteriana, assim como a infecção pode começar já bacteriana desde o início. Nesses casos, o médico ou dentista precisa levar em conta uma série de fatores antes de prescrever um antibiótico: a idade do paciente, se é gestante ou se está amamentando, o local da infecção, quais são os principais agentes prováveis daquela infecção, se há alguma condição associada que possa dificultar o tratamento (por exemplo uma prótese numa infecção óssea), a via de administração, o estado geral do paciente, o custo (sim, porque de nada adianta prescrever um remédio que o paciente não tenha condições de comprar)… São vários os fatores a ser levados em consideração.

Entre eles, um que diz respeito ao antimicrobiano é o mecanismo de ação. Temos diferentes formas de um antibiótico agir: seja impedindo que as bactérias filhas se desenvolvam corretamente, impedindo as bactérias de se reproduzir, entre outras formas. E é através de mudanças no alvo do antibiótico ou arranjando formas de se livrar dele que as bactérias desenvolvem a resistência. Veremos mais sobre isso no próximo texto.

Voltando aos antimicrobianos, eles devem ser seguros o suficiente para que possam ser utilizados na prática. Precisamos lembrar que o alvo deles também é uma célula viva, que compartilha de vários elementos iguais aos das nossas células. Por isso, a dose do antimicrobiano capaz de atingir a bactéria, fungo ou parasita não pode ser tóxica para células humanas. Um exemplo bastante discutido atualmente é sobre o uso da ivermectina. Em estudos de laboratório, a ivermectina foi capaz de reduzir a replicação do SARS-CoV-2, o vírus que causa a COVID-19. Entretanto, para que obtenhamos esse resultado num paciente, a dose teria de ser em níveis tão altos que certamente causariam danos irreversíveis, como problemas no fígado. Cabe ainda ressaltar que o uso desenfreado da ivermectina pode inclusive selecionar parasitas resistentes, pois ela é utilizada para tratar uma série de doenças (como a escabiose, conhecida popularmente como sarna).

Outra questão sobre o uso dos antimicrobianos é que, para que eles sejam eficazes, eles precisam ser administrados de forma adequada: no tempo certo, na dose certa, pelo período certo. Alguns precisam da regularidade na tomada para que se mantenham em níveis adequados no sangue e dessa forma consigam eliminar o agressor; outros precisam ser tomados de uma só vez para fazer um pico de concentração. E o período de utilização do medicamento também é de extrema importância. Não é na primeira dose que todas as bactérias serão eliminadas. Se deixamos de tomar o remédio quando nos sentimos melhor (lá pelo terceiro ou quarto dia) quando a indicação era de tomar pelo menos cinco dias, as cepas que apresentavam algum grau de resistência serão selecionadas e perpetuarão a infecção. A diferença é que agora temos uma população de bactérias que não respondem mais ao antibiótico usado. Isso significa que precisaremos de um antibiótico que age por uma via diferente.

E, para finalizar, precisamos lembrar que no nosso corpo também temos um monte de bactérias, mas que são amigas. Elas estão ajudando a fazer a barreira de proteção da nossa pele ou a regular nosso intestino. Quando ingerimos um antibiótico, com ou sem indicação, todas as bactérias suscetíveis a ele serão atingidas, sejam elas boas ou más. Isso pode favorecer o aparecimento de outras infecções causadas muitas vezes por outros microrganismos que se aproveitam desse desbalanço. Um exemplo muito comum é o caso de vulvovaginite por um fungo denominado Candida sp. em mulheres. A flora da região vaginal é afetada pelo uso dos antimicrobianos, gerando um desequilíbrio da flora natural, composta de fungos e lactobacilos (não são os mesmos daquele leite fermentado). Isso provoca um crescimento descontrolado dos fungos, causando o corrimento e desconforto da infecção.

Por isso, quando for ao médico, lembre-se de que nem sempre é necessário sair com a receita de um antibiótico de lá. E se sair, pergunte ao profissional que te atendeu porque ele está prescrevendo aquela medicação. Assim como ninguém toma quimioterapia sem ter câncer, não há por quê tomar antibiótico sem infecção. Como todo remédio ele não é isento de efeitos colaterais, muitas vezes indesejáveis. E o maior interessado na sua saúde é você.

 

REFERÊNCIAS:

Goodman & Gilman: As Bases Farmacológicas da Terapêutica. 11ª edição. Rio de Janeiro, McGraw-Hill, 2006,2112 p. Rang, H. P.; Dale, M. M.; Ritter, J. M.; Flower, R. J.; Henderson G.

Caly L, Druce JD, Catton MG, Jans DA, Wagstaff KM. The FDA-approved drug ivermectin inhibits the replication of SARS-CoV-2 in vitro. Antiviral Res. 2020 Jun;178:104787. doi: 10.1016/j.antiviral.2020.104787. Epub 2020 Apr 3. PMID: 32251768; PMCID: PMC7129059.

Schmith VD, Zhou JJ, Lohmer LRL. The Approved Dose of Ivermectin Alone is not the Ideal Dose for the Treatment of COVID-19. Clin Pharmacol Ther. 2020;108(4):762-765. doi:10.1002/cpt.1889


Karin R. Kolbe. Médica infectologista, fã de Assassin’s Creed, rock, gatos e quebra-cabeça. Não necessariamente nessa ordem.