Provavelmente você já se deparou com algum trailer da série da Netflix, Altered Carbon. Comecei a assistir sua primeira temporada, e terminei, nessa semana. E vários aspectos dela me instigaram a escrever esse texto.
Não pretendo deixar nenhum spoiler ou crítica neste texto (já escrevemos uma aqui). Caso você não tenha assistido, talvez esse texto venha a dar outro ponto de vista para a sua decisão. E caso você tenha assistido, espero complementar sua experiência com algumas impressões que talvez lhe tenham passado despercebidas.
Mas, do que trata a série?
O personagem que liga todos os pontos da trama é Takeshi Kovacs, interpretado por Joel Kinnaman, um Emissário. Após aguardar sair do limbo por 250 anos, ele é ressuscitado para solucionar um crime.
Laurens Bancroft, uma das pessoas mais ricas nesse universo, é aquele que compra a consciência de Kovacs. Ele o tira da escuridão para que ele resolva um caso aparentemente sem solução: o seu próprio assasinato.
Como você deve ter percebido nessa breve introdução, essa é uma ficção científica cyberpunk. Ela é construída sobre os desdobramentos de um mundo onde a tecnologia que possibilita a imortalidade foi criada. Na trama, essa imortalidade é alcançada através de um dispositivo que guarda a consciência humana. Ela, assim, permite que a vida não esteja mais presa fisicamente ao seu corpo.
Mas, vamos descer alguns níveis da superfície que nos é apresentada. Vamos chegar a alguns aspectos interessantes que a série utiliza para construir esse mundo.
A simbologia por trás da história
Como é de se esperar, naturalmente, toda história de Kovacs é preenchida com diversas experiências que o formam. E, do início da temporada até o seu fim, uma marca característica ganha um significado mais profundo a cada episódio.
A alegoria do infinito, a Lemniscata de Bernoulli, é encontrada com uma forma de serpente, ou dragão. Vemos essa representação de forma mais clara no colar deixado pela mãe de Kovacs e na tatuagem que ele leva em seu corpo.
Essa representação é chamada de ouroboros – aquele que devora a própria cauda. Segundo o Dictionnaire des symboles [1] o ouroboros simboliza o ciclo da evolução voltando-se sobre si mesmo e contém a ideia de movimento, continuidade, auto fecundação e, em consequência, o eterno retorno.
Não precisamos de muito esforço para encontrar a conexão do “eterno retorno” com a tecnologia desenvolvida dentro da ficção.
A representação das serpentes são vistas pelos gnosticismo hiperbóreo no ouroboros presente no caduceu de Mercúrio (mitologia romana), simbolizando a alma elevada, extasiada no nirvana, aquela que atingiu seu ponto de perfeição [2].
A perfeição da consciência, nesse contexto, pode ser vista ao atingir a liberdade da mente sobre as limitações do corpo.
Os recortes mitológicos
Além da visão simbólica carregada na tatuagem de Kovacs, podemos traçar mais alguns elementos. Quanto à mitologia grega, o papel de Hermes – análogo ao Mercúrio romano – é bem claro. O mensageiro do Olimpo possui um papel muito importante na trama mitológica. Ele é o ponto que liga os deuses aos humanos.
Nessa ficção científica, Kovacs é um Emissário que atua como o ponto central dessa simbólica comunicação. Ele é o encontro das duas linhas que se cruzam, a ligação entre os céus e a terra.
Nos voltando dessas analogias das mitologias gregas e romanas para o cristianismo, Jesus Cristo também pode ser visto nesse contexto de comunicação. E, ao contrário do que se pode imaginar, o cristianismo possui uma conexão com as demais culturas. O símbolo do infinito, por exemplo, também está presente em diversas imagens cristãs retratadas no período da renascença. Essa, por sua vez, identifica a natureza eterna de Deus que existe independente de tempo ou espaço [3].
As religiões em contraste
Logo no início da série somos conectados com uma ideia do catolicismo “popular”. Chamados na série de NEO-C, ou neo-católicos, essas pessoas representam o que seria a cultura mexicana.
No México, nos voltando à nossa realidade, há um sincretismo das crenças básicas da fé cristã com as manifestações espirituais mesoamericanas.
Logo no início do primeiro episódio, vemos essa representação cultural explicita nos rostos pintados. A representação da Santa Muerte – figura sagrada venerada praticamente em todo o país [4] – é vista naqueles que protestavam na saída de Kovacs da clínica de re-encapamento.
Esse protesto é a representação do posicionamento religioso dessa comunidade contra a Resolução 653: Deem voz aos mortos. Essa resolução propõe que pessoas mortas possam ressuscitar em novos corpos para depor contra os culpados de seus assassinatos.
Indo contra essa iniciativa, o protesto religioso se posiciona para resguardar aquilo que julgam ser inviolável; a alma humana e o ciclo natural da vida, a morte.
A discussão ética sobre a moralidade da imortalidade está presente em vários aspectos desse universo. As consequências tecnológicas da dinâmica social que privilegia aqueles que possuem o poder são muito bem exploradas nesse contexto.
Os aspectos éticos levantados pelos NEO-C falam sobre a degeneração da “alma” pelos pecados da carne. É comum pensar que, quando o ser humano alcança a imortalidade, muitos dos valores que antes eram guiados pelo ciclo natural da vida, em consequência da morte, passam a ser colocados em cheque. E essa discussão moral está diretamente ligada à percepção humana dessas implicações. Impactos, esses, discutidos pelo espectro religioso, das convicções de muitos daqueles que são afetados pela tecnologia.
A morada dos céus
Uma das implicações sociais abordadas na série, além das já mencionadas aqui, é a da criação de castas dentro da sociedade. Essa mudança tecnológica cria uma sociedade dividida entre mortais e imortais, criando um patamar, digamos, divino.
Na série a nova casta de humanos é chamada de Matusaléns, em uma referência ao personagem bíblico do Antigo Testamento conhecido por ser o mais longevo (969 anos) [5].
Essa desconexão como os “humanos comuns” também transparece no local de exílio dos poderosos. Eles passam a viver acima dos problemas mortais, como na representação do Olimpo dos antigos deuses.
Acima das nuvens vemos Aerium, uma entre tantas outras moradas da nova casta, a casa de uma das famílias mais ricas da trama, os Bancroft.
As representações artísticas
E aqui eu chego ao ponto que me perseguiu durante toda a série e que motivou essa publicação. O desespero pelo poder, a cegueira ocasionada pela ganância dos novos deuses pela imortalidade, muitas vezes é representado por uma pintura de Francisco de Goya.
Essa representação é de grande importância para a forma com que se constrói a história. Ela faz parte da colcha de retalhos que é costurada para formar a imagem com a qual se finaliza a primeira temporada.
E aí?! Espero ter contribuído um pouco sobre esse espectro da série. E se você ainda não assistiu e ficou curioso para descobrir o desfecho dessa história, consulte a classificação indicativa, e depois comente as suas percepções nos comentários.
Antes de ir embora, claro, não poderia deixar de mencionar um amor que nasceu em meu coração no decorrer da série. Poe, a inteligência artificial representada por Chris Conner! Minha inclinação Asimoviana não poderia deixar isso passar em branco.
Referências
[1] Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Robert Laffont, 11ª impressão, Paris, 1990, pág. 716.
[2] Gustavo Brondino. O Yoga Hiperbóreo. OCTIRODAE, 2011. p. 56.
[3] Símbolo do Infinito, através do link.
[4] Wikipédia – Catolicismo no México, através do link.
[5] Wikipédia – Matusalém, através do link.