No momento que dou início a esse texto o Brasil completa uma ano de pandemia, com todos os erros e do que poderia ter sido, coisas das quais não pretendo aprofundar aqui, a COVID 19 alterou a nossa vida diária. Seja você da área da saúde, da tecnologia, um estudante, dona de casa, entregador ou que for, as coisas estão, pra dizer no mínimo, tensas. Essa tensão psicológica constante, acaba refletindo na tensão muscular e em consequência o corpo responde com dores. No texto de hoje abordarei a relação entre as dores no corpo que estamos sentindo ultimamente e a pandemia, comentando também um pouco no que vem sendo chamado Long COVID.

A dor e suas variáveis 

A dor por muitas vezes é desagradável, é sendo um dos principais objetivos dos profissionais de saúde combatê-la, se está doendo é por algo não está certo. Sendo a dor uma experiência relativa e pessoal, uma definição única que englobe todas essas variações é impossível. De acordo com Associação Internacional Para o Estudo da Dor a forma mais abrangente, e atualizada no início de 2020, de caracterizá-la é “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão tecidual real ou potencial” (1). 

Tendo como principal aspecto doer, suas causas ainda são cheias de incertezas, não existe no cérebro uma central única de dor, podendo aflorar em qualquer uma de suas partes (2). Por exemplo: ao bater o dedo mindinho na quina do sofá várias regiões cerebrais serão ativadas, e, ao martelar sem querer o seu dedo da mão, a ativação no cérebro será diferente, e, se por acaso no dia seguinte você bater o mesmo dedo, na mesma quina de sofá, as regiões ativadas serão diferentes das vezes anteriores.

 

O motivo desse fenômeno da-se por a dor envolver muitas variáveis, entre elas sensoriais, sensitivas e cognitivas. Conhecida como “Matriz de Dor”, essas variáveis também são acionadas de forma semelhante quando se tem uma rejeição emocional, por isso uma dor de relacionamentos românticos podem se igualar a dores físicas. A dor está relacionada mais com a importância dos eventos dolorosos do que com ela em si (2). 

Os fatores emocionais presentes no momento influenciam de forma bastante particular, voltando ao exemplo anterior de bater o dedo na quina por dois dias seguidos, o nível de dor que sentirá e as regiões estimuladas, dependem do seu estado emocional, se estiver de bom humor a dor vai ser uma e se estiver em um dia ruim a dor vai ser outra.

Segundo Irene Tracey, da Universidade de Oxford, “A dor só acontece quando o cérebro percebe (…) Ela pode ter começado no dedão, mas o ‘Ai!!!’ só é produzido no cérebro, até lá não é considerado dor.” Ainda de acordo com Tracey que pesquisa a forma de como o nosso Sistema Nervoso entende a dor “Não entendemos totalmente esse mecanismo de construção” (3).

fonte: Tony ingram

O que hoje já temos compreensão é que a dor começa numa camada pouco abaixo da pele, nas terminações nervosas, os chamados nociceptores. Local no qual se tem a percepção do estímulo doloroso, seja ao tocar numa superfície quente, bater o braço numa parede até uma dor muscular ao levantar algo pesado (3). Essa informação é levada até a medula espinhal e ao cérebro por dois tipos de fibras :

  • Fibras A-delta. de condução rápida (revestida de mielina), são elas que dão a dor no momento do trauma, exemplo ao bater o braço na parede é quando saiu o “P@#%$#!!”
  • Fibras C. de condução mais lenta, usando o exemplo anterior é a dor que fica depois da pancada. 

Uma curiosidade antes de seguir, o primeiro pesquisador a identificar o que hoje conhecemos como nociceptores foi Charles Scott Sherrington (1857/1952). Ele também foi o primeiro a falar na teoria de – ao contrair um músculo o oposto a ele relaxa, e também sendo o primeiro a definir propriocepção, que é a noção do corpo de se localizar no tempo e espaço (3). Dois temas dos quais já abordei aqui no Portal Deviante em “O que são os tão famosos pontos gatilhos?” e “Você pode até nem saber mais, não vive sem a propriocepção.”

A dor se classifica de acordo com o tipo (3):

  • Nociceptiva – sendo a mais comum, os exemplos anteriores se encaixam nessa definição;
  • Inflamatória –  quando o tecido fica inchado e avermelhado, ex. uma torção de tornozelo;
  • Disfuncional – uma dor sem motivos aparentes, que não tem estímulo externo nem inflamação dos nervos;
  • Neuropática – se dá por uma lesão nos nervos, podendo ser resultado de um trauma ou sem nenhum motivo inicial, um exemplo são as dores no membros fantasma.

A dor também se define com o tempo, a que prolonga-se deixa de ser aguda e torna-se crônica. A literatura aponta que, caso permaneça acima de 3 meses, a dor cronifica-se. Uma dor aguda está relacionada a um trauma como queimadura, ou ter passado por um processo cirúrgico recente (4). Já crônica “é mais que um sintoma é a doença que persiste; não desaparece após a cura da lesão ou está relacionada a processos patológicos crônicos” (5), exemplos: processo de alterações no nervo, como pode vir a ocorrer na Hérnia de disco avançada, e no Câncer. 

As dores musculares decorrentes de pontos gatilhos, falando resumidamente. por exemplo: o pescoço se encontra dolorido após uma noite mal dormida, o cérebro entende que a região está tensionada, alterando a circulação sanguínea no local e o Sistema Nervoso Central manda o músculo em questão relaxar, o que acaba não ocorrendo, devido aos já citados pontos gatilhos na região, o que acaba resultando em dor. Caso queira saber mais desse fenômeno sugiro a leitura do meu texto já citado anteriormente (link).      

O início da dor, a intensidade e a duração reflete o momento que estamos vivendo, trazendo para um contexto pandêmico, algo que grande maioria da população jamais viveu, pode-se entender como natural estar com algo doendo.

Dores nas costas em mais um dia de EAD

Em Março de 2020 o Brasil virou de cabeça para baixo. Se não bastasse a pandemia, temos a incompetência/negligência do governo federal. O que para alguns seria apenas 15 dias, tornou-se meses, agora torna-se um ano e, o pior, sem perspectiva para acabar. Tivemos que ficar em casa, fazendo home office ou EAD, isso sem citar o desemprego, a frustração de não poder sair, o constantemente medo de contrair a covid-19, a paranóia e o estresse nos tomou.

Como já falado na primeira parte, o nosso emocional afeta a forma como sentimos a dor. De acordo com DeSantana da Universidade Federal de Sergipe, os aspectos psicoemocionais somados aos socioeconômicos contribuem no aumento dessa incidência,  como por exemplo: ansiedade, depressão, baixa eficácia, alterações de humor e sono. aflição com o emprego, acúmulo de dívidas, falta de privacidade e preocupações com amigos/familiares (7).

Indícios de que a população em geral vem apresentando mais dores deu-se logo no mês de março de 2020, quando de acordo com a The IQVIA institute a compra de analgesicos, que não precisam de prescrição médica, cresceu 60% e de pomadas para dores de 10%, quando comparado ao mesmo período do ano anterior no Brasil. Em pesquisa desenvolvida pela UFMG revelou que cerca de 41% da população brasileira apresentou dores na coluna com a pandemia. 

De acordo com o Google Trends, ferramenta que analisa as buscas em sua plataforma, houve o aumento de 76% de busca por “dores nas costas”, tendo seu pico no mês de Maio de 2020. Analisando os dados mais recentes, com o mesmo termo, nota-se novamente o aumento desde o final de Fevereiro de 2021 (link). De acordo com o artigo da revista VEJA saúde “As muitas dores dores da pandemia”, a procura por profissionais de saúde em 2020 devido a dores no corpo foi menor, dado esse por estarmos no período de isolamento social e os pacientes evitarem ambientes médicos optando pela automedicação.

Citando novamente o meu texto sobre Pontos Gatilhos, o estresse tem importante função na sua formação. Por exemplo, ao acordar cedo, em mais um dia na pandemia, para ter que assistir aula em EAD na frente do computador, tende a gerar os pontos gatilhos.  Pois os seus músculos vão se encontrar em um estado de tensão constante, somando-se a falta de ergonomia no seu local de estudo. Os ombros vão ficar flexionados, as costas mal apoiadas, o pescoço em hiper flexão tudo isso contribui para o quê? isso mesmo mais dores.  

Ainda tem mais, em recente artigo da Nature, o autor relata uma pandemia de bruxismo que estamos vivendo nos últimos meses, afirmando que o aumento do desemprego, isolamento e  mudança brusca na nossa rotina, os impactos na saúde mental torna-se inevitável. “Consequentemente, tem havido um aumento de pacientes que apresentam características dentais, atribuídas a ranger e apertar a mandíbula. Estudos indicam os níveis crescentes de bruxismo e disfunções temporomandibulares em pessoas que sofrem de um estado psicoemocional agravado” (6).

As dores e a Long Covid

Fonte: Marta Zubieta

Muitos estudos vêm sendo realizados analisando sintomas que persistem em pacientes pós COVID-19, por ser uma doença nova muita coisa ainda continua incerta, porém com estudos mais recentes pode-se concluir que muitos sintomas irão permanecer por um tempo e dentre eles a dor. 

A Long COVID, ou Síndrome do pós covid e até mesmo de COVID crônica, vem sendo cada vez mais investigada, botando em questão se pessoas continuam com sintomas mesmo após “curadas” do vírus pode se dizer mesmo que ela estão curadas. Apesar de não ser consenso entre pesquisadores e profissionais, os critérios para se considerar recuperado da COVID-19 devem ir além de um teste que diz se estão ou não com o vírus.  

Independentemente da conclusão desse debate, que deverá ser feito no futuro próximo, o que tem de ser levado em consideração é a voz das pessoas que se encontram dentro da classificação. Existem inúmeros relatos de que ao se “recuperarem” da COVID os pacientes apresentam dificuldade em suas atividades de vida diária, com dores, cansaço e problemas para dormir.

O mais completo dos estudos da “long COVID-19” entrevistou mais de 3700 pessoas ao redor do mundo, concluiu que as sequelas permanecem no mínimo de 6 meses, sendo as mais comuns: Fadiga (80%), Mal estar pós esforço (75%) e Disfunções cognitivas (59%) (11). Ainda não se tem uma pesquisa, com um grande público, que aborda como está a questão no contexto brasileiro, quando se analisou 120 pessoas que ficaram internadas no Hospital das Clínicas em SP, observou-se que ao menos 20% dos pacientes “recuperados” apresentaram dores crônicas (link).

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fonte

Antes mesmo da pandemia já era comum o relato de dores em alguma parte do corpo, entre muitos os fatores podem ser citados – trabalharmos por mais tempo sentado em frente ao computador, a forma que usamos o celular, a falta de ergonomia no nosso dia a dia. Estima-se que ao menos 80% da população mundial apresentará dores nas costas ao menos uma vez ao longo da vida (10). Em pesquisa realizada em todo o território brasileiro concluiu-se que por volta de 52% sentiram dores nas costas no mínimo uma vez no decorrer do ano, em estudo semelhante feito na Alemanha o resultado foi de 60% (8,9).

Trago esses dados para citar que, mesmo não tendo ainda grandes estudos brasileiros relacionando as dores com a covid-19, seja no período de isolamento social ou mesmo na Long COVID, a situação provavelmente será agravada pela a recuperação da doença e os diversos fatores, sociais e/ou psicológicos, que esse período nos proporcionou. 

Muita coisa irá mudar após pandemia, e especialmente no nosso entendimento de saúde em todos os seus níveis o que mostra a importância de reforçar e fortalecer os princípios do SUS:

  • Universalidade – onde todo mundo deve ter direito e acesso à saúde, debate esse que felizmente vem se fortalecendo ao redor do mundo (que pretendo abordar aqui futuramente);
  • Equidade – sempre temos que levar em consideração os aspectos individuais do paciente na hora de o atender;
  • Integralidade –  Talvez esse seja o principal, como já vimos no decorrer do texto pacientes `’recuperados” da Covid continuam a apresentam sintomas que os impedem de voltar a sua vida normal. Esse princípio ressalta a importância de acompanhar o indivíduo antes, durante e após contrair qualquer doença é assim que a saúde deve ser feita.

FONTE:SHUTTERSTOCK

Escrevo aqui no final de março de 2021, tudo segue muito incerto no Brasil, principalmente em relação a COVID-19, e sim entendo que é difícil ver uma saída para momentos sombrios. As coisas vão ficar bem, apesar de Bolsonaro a pandemia vai acabar, nossos avós, pais, amigos e até a gente vai se vacinar. Principalmente essa dor, cansaço e angústia que agora sentimos vai passar. 

Acho que é isso, dúvidas, críticas e comentários são bem vindos. Sempre vale uma olhada nos link e referências ao longo do texto. Quantas vezes você ajeitou as costas enquanto lia?

Links, textos complementares e afins:

Fonte da imagem de capa link

Texto da revista Nature sobre a Long COVID: link 1

Mais um texto sobre relatos de pacientes recuperados agora da BBC Brasil: link

Textos meus aqui no Deviante sobre –

Postura ao usar o celular: link 

Postura ao dormir: link

Ergonomia ao usar o computador: link 

REFERÊNCIAS:

(1). RAJA, S.N, et. el;  Definição revisada de dor pela Associação Internacional para o Estudo da Dor: conceitos, desafios e compromissos. Força Tarefa da Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP)REVISÃO DE NARRATIVA. 2020. 

(2). MARKIN, S. Imaging: Show me where it hurts. NATURE, 2016. (link)

(3). BRYSON, B. Corpo um Guia para usuários. Companhia das letras, 2020.   

(4). SALLUM, A. M; GARCIA, D.M; SANCHES, M. Dor aguda e crônica: revisão narrativa da literatura. Acta Paul Enferm. 2012;25(Número Especial 1):150-4 

(5). OLIVEIRA, J. T. Behavioral aspects of chronic pain syndromes. Arq Neuropsiquiatr. 2000; 58(2A):360-5.  

(6). DADNAM, D;  DADNAM, C; AL SAFFAR, H. Pandemic bruxism, NATURE, 2021. (link).

(7). DESANTANA, J, M.  O que falar com pacientes com dor durante e após a Pandemia da COVID-19.  Sociedade Brasileira de Estudos para Dor, 2020 (link)

(8). MATOS M,G; et. al. Dor lombar em usuários de um plano de saúde: prevalência e fatores associados. Cad Saúde Pública. 2008;24(9):2115-22.

(9). SCHNEIDER S. et. al. Workplace stress, lifestyle and social factors as correlates of back pain: a representative study of the German working population. Int Arch Occup Environ Health. 2005.

(10). SILVA M.C; FASSA, A.C; VALLE, N. C. Dor lombar crônica em uma população adulta no Sul do Brasil: prevalência de fatores associados. Cad Saúde Pública. 2004;20(2):377-85.

(11). DAVIS, H. E. Characterizing Long COVID in an International Cohort: 7 Months of Symptoms and Their Impact. 2020. (link)