Olá, leitoras e leitores, vocês já devem ter ouvido falar da decisão do ministro Alexandre de Moraes (STF) na ADPF 672 de proibir que o governo federal derrube decisões dos governos estaduais e municipais sobre o isolamento. Isso levanta questões de Ciência Política e Direito Constitucional e faz termos como “federalismo”, “pacto federativo” e “autonomia” apareçam no radar. Vamos compreender esses termos e falar sobre a decisão.

O que é o Estado federalista?

Cada país tem uma organização própria do Estado e do governo, mas a ciência política cria categorias pra tentar entendê-las. Uma dessas categorias é o federalismo.

Para falar do Estado federalista, primeiro vamos entender que o Estado pode ser visto de duas ópticas, a externa (ou internacional) e a interna.

Seja na óptica externa ou interna, o Estado tem um poder soberano, o que, basicamente, significa que ninguém manda nele.

Externamente, isso significa que ele não se subordina a nenhum outro Estado, independente de poderio militar, econômico ou de o crush do presidente ser o presidente de outro país. Por isso, todos os Estados são igualmente soberanos.

Internamente, a soberania significa que o Estado dá a última palavra sobre o que acontece dentro de seu território.

Por causa dessa soberania, se pode falar que o poder do Estado é indivisível, pois todo ele se concentra em um só lugar, o Estado.

Apesar disso, por questões de praticidade e para evitar abusos, é possível e desejável que o exercício desse poder seja dividido. Uma possibilidade de divisão é a separação de poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), outra é o pacto federativo.

Características do federalismo

O Brasil adota a forma de Estado chamada federalismo e, se você nunca notou, o próprio nome do país já entrega um pouco: “República Federativa do Brasil”. Mas o que é um Estado federalista?

O que define o federalismo é a divisão do exercício do poder entre um ente maior, a União, e entes menores, os Estados-membros, sendo que esses têm autonomia em relação àquele. Em alguns casos, como no Brasil, há entes ainda menores, os municípios.

Um pequeno destaque. Quando falamos em Estado soberano, estamos pensando em um país, como Brasil, Japão e Tuvalu, já Estados-membros (ou estados, em minúsculo) são os estados da federação, como Acre, Mato Grosso e Espírito Santo (caso ainda não tenha ouvido, confere o Scicast #190 sobre Estado e Nação).

A palavra-chave é autonomia. E é por isso que nós chamamos os Estados-membros de entes e não órgãos. É fácil de lembrar!

“Ente” significa “Ser”, ou seja, trata-se de uma pessoa (jurídica), portanto, o ente, como toda pessoa, tem autonomia.

De forma distinta, o órgão não tem autonomia, pois é parte de outro ser, de uma outra pessoa. Se a minha mão, que é parte do meu corpo, te der um soco, você vai processar a minha mão? Ela é a responsável pelo soco? Não, você vai processar o verdadeiro responsável, a pessoa por trás da mão: eu.

Do mesmo jeito, se a Secretaria Estadual de Saúde deixar sua cidade sem hospital, você não vai processá-la, porque ela é um órgão, parte de uma pessoa que é o estado em que você mora. Mas você não pode processar o governo federal por um ato do governo estadual, porque o Estado-membro é autônomo. Portanto, ao mesmo tempo em que toma suas decisões por si mesmo, também é responsável por seus próprios atos.

Quem é soberano? União ou Estados-membros?

Nisso pode surgir a seguinte ponderação: mas a União (o governo federal) é “mais forte” que os estados. A União seria soberana?

Não, a União não é soberana.

Para entender isso, é preciso voltar naquela diferença entre o Estado do ponto de vista interno e externo que falei antes.

O Estado Brasileiro se personifica na República Federativa do Brasil. Essa age como um corpo coeso quando visto de fora. Portanto, internacionalmente, qualquer ato do Estado, seja do Executivo, Legislativo ou Judiciário, seja a nível federal, estadual ou municipal, é considerado como um ato do Brasil como um todo.

Já do ponto de vista interno, o exercício do poder soberano do Estado brasileiro é dividido entre os três poderes e entre União, estados e municípios, cada um com certas funções definidas pelo maior instrumento do poder do Estado: a Constituição da República Federativa do Brasil.

Um erro comum é chamá-la de “Constituição Federal”, mas talvez já tenham entendido o porquê, o termo “federal” não está no nome.

Se a Constituição fosse só federal, ela se dirigiria apenas à União, mas ela fala dos poderes de todos os entes federativos, por isso Constituição da República Federativa.

Soberania X Supremacia

Como os Estados são autônomos, não há uma soberania da União sobre eles, mas há uma supremacia. Essa supremacia aparece só em alguns momentos específicos.

Um deles é o poder federal de modificar a Constituição, muito embora os estados tenham os senadores como representantes de seus interesses (já que a sempre excelente representante dos interesses do povo é a Câmara dos Deputados).

Outro caso interessante é a possibilidade de intervenção federal no estado, como a que ocorreu no Rio de Janeiro, embora exista quem diga que não se tratou de interenção (papo pra outro momento).

No mais, os estados tem arredação própria de tributos, autonomia financeira, força de polícia própria, administração própria e leis próprias, inclusive uma Constituição estadual.

O que é função dos estados e o que é função da União?

Quem define o que compete à União e o que compete aos Estados é a Constituição Federal da República e a quantidade de competências de cada um varia de país para país.

No berço do federalismo, os Estados Unidos da América (que você já deve ter percebido que é um nome bem federalista) os estados-membros tem muitas competências, podendo, por exemplo, legislar sobre o que constitui ou não um crime ou mesmo se algum crime pode ser punido com pena de morte.

Isso se explica por sua origem, em que as treze colônias, ao se declararem independentes do Reino Unido, queriam manter um alto grau de autonomia umas em relação às outras. Por isso, formaram, inicialmente, uma confederação, ou seja, uma união política e jurídica entre Estados, que se mantêm soberanos. Apenas alguns anos depois, com a Constituição estadunidense, é que se fundou a federação.

Por esse processo de formação, os Estuados Unidos são considerados uma federação centrípeta, ou seja, em que Estados soberanos se dirigiram a um centro comum para formar um só Estado. Ao fazer isso, mantiveram um alto grau de autonomia aos estados-membros.

E no Brasil?

O Brasil sofreu um processo inverso. Na época da colônia, não existia um vínculo forte entre o que hoje chamamos de estados brasileiros (há vários episódios do Fronteiras no Tempo tratam dessa transição do ponto de vista histórico, em especial o Fronteiras #9 Independência do Brasil).

Para impedir a fragmentação do território, como ocorreu na América Espanhola, Dom Pedro I implementou, junto com a construção de um sentimento de nação, o oposto de um Estado Federal, um Estado Unitário.

Estado Unitário, basicamente, é aquele em que não existem entes autônomos, mas sim um poder centralizado em um só governo. Podem até haver distribuições de competência para gestores regionais, mas esses sempre respondem ao governo central, ou seja, são órgãos desse governo. A palavra-chave, portanto é hierarquia.

Essa forma de Estado costuma aparecer tanto em Estados menores (como Chile, Angola, Bélgica, Gana, Japão, entre vários outros), ou quando o governo quer fazer mais presente sua autoridade em todo o território, como ocorreu no Brasil com a Constituição Imperial de 1824, com a Constituição à Polaca de 1934, na Era Vargas e com o enfraquecimento do federalismo durante a ditadura militar.

Em razão desse nascimento como Estado Unitário e posterior separação em estados-membros, com a proclamação da república, o Brasil é considerado uma federação centrífuga, formada de dentro (um poder centralizado) para fora (vários estados-membros), o que influencia na distribuição das competências.

O federalismo brasileiro capenga

Não quero entrar muito em questões técnico-jurídicas, então, em resumo, a Constituição brasileira, ao distribuir as competências dos entes federados, deixa muita coisa pra União, tanto em questões administrativas, quanto em legislativas

Em matéria administrativa, restam aos estados-membros e municípios algumas competências comuns com a União. Tratam-se de tarefas que podem ser desempenhadas por qualquer ente da federação, dentro de seus interesses. São exemplos saúde pública, meio ambiente, combate à pobreza, entre outros (ver nos links).

Em termos legislativos, os Estados-membros só podem tratar de assuntos que não sejam competência privativa da União e os municípios só de questões de interesse local ou suplementar as legislações federais e estaduais.

O resultado é que estados e municípios são autônomos, mas para pouca coisa. Por um lado, isso evita abusos de poder e um possível reforço do coronelismo em algumas regiões. Por outro, inviabiliza o que considero a maior vantagem do federalismo: a aproximação do povo ao centro de tomada de decisões.

Em outras palavras, é mais fácil ir reclamar na prefeitura da sua cidade que com o governo federal, em Brasília, mas, da forma como é no Brasil, a prefeitura tem pouco poder (e pouco dinheiro) pra resolver os problemas mais relevantes.

A atual crise no pacto federativo: queda de braço entre presidente e governadores na pandemia da covid-19

Uma crise no pacto federativo, geralmente, significa uma de duas coisas: ou um ou alguns estados querem se separar, ou há uma disputa entre União e estados sobre quem tem a competência para decidir alguma questão. Geralmente, nesse segundo, o problema é a União, que tem uma estrutura maior, interferindo nas competências dos estados. É o que acontece atualmente.

Vocês talvez não saibam disso, mas estamos passando por uma pandemia de um vírus, um tal de cor… que? Todo mundo já sabe disso? Beleza, apaga essa parte então. Como todo mundo sabe, estamos passando por uma pandemia e isso tem gerado alguns conflitos entre governo federal e governos estaduais a respeito de quem pode decidir sobre a quarentena, como em questões sobre o nível de isolamento e o fechamento dos transportes interestaduais.

A intervenção da OAB

Tendo em vista esse conflitos e por considerar que o governo federal tem tomado “ações irresponsáveis e contrárias aos protocolos de saúde aprovados pela comunidade científica e aplicados pelos Chefes de Estado em todo mundo”, a OAB ajuizou ação no STF.

Nessa ação, pede a atuação do governo conforme as diretrizes cientificamente embasadas da OMS, a desburocratização na tomada de medidas de combate à doença e auxílio socioeconômico e, no que diz respeito ao nosso tema, a não interferência nas decisões dos estados e municípios quanto ao funcionamento de atividades econômicas e regras sobre aglomeração.

Dentre os principais argumentos, a OAB levanta que  a saúde pública é de competência dos estados, ainda que em conjunto com a União (art. 23, II, e 24, XII, da Constituição) já que, nesse caso em específico, são justamente estados e municípios quem têm mais condições de fazer um diagnóstico regional e local para determinar o avanço da doença, a capacidade do sistema de saúde e, portanto, definir e fiscalizar quais medidas devem ser tomadas.

ADPF 672: a garantia do pacto federativo pelo ministro Alexandre de Moraes

Além de questões formais processuais, o governo alega que está tomando todas as medidas cabíveis para conter a pandemia (inserir meme do Bolsonaro com a máscara no olho) e que não cabe ao Judiciário intervir nas políticas adotadas pelo Executivo.

Primeiro, vou dar o devido crédito ao segundo argumento, porque o argumento de que o governo está tomando todas as medidas cabíveis já se anula só pelo vídeo do Bolsonaro saindo na rua e cumprimentando as pessoas. Em regra, o judiciário não deve intervir nas competências do Executivo e Legislativo. A exceção é quando esses poderes ultrapassam os limites que a Constituição lhes impõe.

Isso foi destacado na decisão de Moraes, que disse não poder interferir na discricionariedade do Executivo de escolher quais medidas são mais adequadas, desde que dentro dos limites constitucionais. Saber se as medidas presidenciais são constitucionais ou não é um assunto bem mais complexo em que Moraes não entrou e eu não entrarei nesse momento.

Ainda assim, resta uma questão. Precisamos saber quais são os limites da União e dos estados na competência comum de atuação para garantir a saúde pública e, em última análise, se o governo federal está respeitando o pacto federativo.

Para tomar sua decisão, além dos dispositivos da Constituição, o ministro se embasou, também, na Lei 13.979, no Decreto Legislativo 6 e nos Decretos presidenciais 10.282 e 10.292, todos de 2020, portanto da atual gestão.

Mas, além disso, percebe-se que a decisão tomou por base o próprio federalismo (olha que coincidência, eu passei a maior parte do texto explicando justamente isso).

Basicamente, a ideia é que os estados são autônomos dentro das competências que a Constituição lhes atribui. Assim, se tomassem como medida, por exemplo, a criminalização de promoção de aglomeração, estariam agindo fora de seus limites, pois cabe privativamente à União legislar sobre matéria penal.

O problema é que a atuação na saúde pública é de competência comum.

Nesse caso, compete à União tomar medidas que digam respeito a atuação no território nacional como um todo, como distribuição e direcionamento de recursos, limitação de transporte interestadual ou internacional (sem excluir países altamente infectados como EUA) ou importação de respiradores e remédios sem eficácia cientificamente comprovada.

Já aos estados, cabe determinar as medidas de impacto regional, como transporte intermunicipal, gerenciamento da saúde pública regional, funcionamento do comércio, suspensão de atividades de ensino e demais políticas públicas de isolamento, não podendo a União interferir nessas medidas.

Portanto, é acertada a decisão do ministro Alexandre de Moraes em manter a autonomia dos estados, impedindo que o governo federal afaste as importantes decisões que estados e municípios têm tomado no combate no vírus. O STF fez cumprir o pacto federativo e a Constituição.

Leituras adicionais:

Os pedidos e argumentos da OAB podem ser lidos aqui.

A decisão do ministro Alexandre de Moraes, que é um pouquinho menor e faz um resumo da primeira, pode ser lida aqui.

Não consegui encontrar a íntegra da defesa do governo federal, mas seu resumo também está no link acima.

Ambos os links foram retirados do site de notícias jurídicas, Conjur.

Sobre o Federalismo, recomendo o livro “Ciência Política” de Paulo Bonavides.

 

Nota da Editora:

Aproveito para lembrar a todos da #desafioredatoresdeviante, pelo twitter ou pelo e-mail [email protected], para enviar perguntas para os redatores do Portal responderem!