Privatização, palavra da moda no Brasil, por vezes tratada quase como algo mágico, que gera emprego e resolve todos os problemas do país. Desde empresas públicas, correios a bancos, todos estão na sua mira. No texto de hoje discutirei um aspecto específico que vem aos poucos sendo discutido, a possível privatização do nosso Sistema Único de Saúde (SUS) e por que isso é um absurdo.
O SUS como conhecemos atualmente foi conquistado por meio de muita luta, e é algo que deveríamos ter orgulho, pois, acredite, se reclamamos das filas em postos de hospitais, sem o SUS, a situação seria muito pior. Vivemos em tempos loucos em que pessoas defendem a destruição do planeta Terra. Não é difícil achar quem acredite que, ao acabar com nosso sistema de saúde, o meio privado ficará mais acessível para a população. No texto comentarei vários aspectos da saúde pública desde como era o período pré-SUS, o sucateamento do sistema até como funciona o sistema de saúde em países onde a saúde não é universal.
Antes do SUS a saúde era um privilégio para poucos
Para entender como o Brasil ficaria caso ocorra uma privatização do SUS, precisamos voltar alguns anos antes de sua criação. Vamos fazer um exercício imaginativo no qual uma senhora, de classe baixa, tenta atendimento médico para seu filho no ano de 1970 (bem antes da criação do SUS). Senta que lá vem história.
“Dona Maria, morava com marido, Olavo e filho Juca de 8 anos. Enquanto seu Olavo passava semana fora, trabalhando como ajudante de caminhoneiro, Dona Maria complementava a renda da casa lavando roupas da vizinhança, uma vida simples, porém não tinha do que se reclamar.
Para lavar a roupa, todos os dias ela descia a ladeira da sua cidade junto a seu filho, já que o mesmo não tinham com quem ficar. Em uma dessas descidas, ao correr diante sua mãe, Juca tropeçou e caiu. Na queda, ao tentar proteger seu rosto, colocou a mão na frente, o impacto junto com movimento o levou a sofrer uma fratura, conhecida atualmente como Fratura de Colles, ruptura da região distal do osso chamado radio. De forma simples entende-se que quebrou o punho.”
Uma pausa na história, caso um acidente como esse ocorresse atualmente, o procedimento no SUS seria:
- Encaminhá-lo ao posto de saúde mais próximo, provavelmente uma UPA (unidade de pronto atendimento), onde receberia o atendimento inicial;
- Levá-lo ao centro especializado de fraturas na região, geralmente em municípios vizinhos;
- Caso necessário, se realizaria cirurgia, para dar início o procedimento de recuperação. No exemplo específico da fratura de Colles, engessar a região para que seja estabilizada e possa dar início a recuperação;
- Na fase de recuperação, o paciente tem o acompanhamento médico, até o período de retirada do gesso;
- Na última fase a volta da funcionalidade, o paciente é encaminhado para o centro de reabilitação onde se trabalha fortalecimento, diminuição da dor e recuperação da região, para que possa reintegrar 100% as suas atividades diárias.
Na prática isso deve acontecer, ao ler, talvez você conheça relatos de casos que não aconteceram como dito, porém, seriam evidências anedóticas na qual não podemos desqualificar todo um Sistema devido às experiências ruins. Todas as fases explicadas anteriormente são totalmente gratuitas (entendo que nada é de graça, tem impostos), incluindo transporte, raio-x, consultas e tratamento. Voltando a história que se passa em 1970, quando o SUS ainda não existia.
“Ambos os pais de Juca tinha trabalhos informais, ou seja não possuíam carteiras assinadas e não contribuíam para previdência, pré requisito na época para se ter acesso a saúde pública. Sabendo disso, Dona Maria vai a Igreja mais próxima, onde a maioria da população ia quando algo grave acontecia. Lá o padre consegue por meios de algumas ligações uma vaga para o garoto ser atendido na Santa Casa da Misericórdia, serviço esse mantido por meios de doações da comunidade.
Porém, como Dona Maria e seu filho chegariam a Santa Casa, que fica a 150 km de onde moravam? entre uma ligação e outra, conseguem um amigo do primo do vizinho que se disponibiliza para dar um carona até o local, já que o mesmo fazia essa rota todos os dias a trabalho.”
Caso não lembre, o Brasil nos anos 70 vivia no período da Ditadura Militar, dentre tantos absurdos que ocorreram na época, a saúde também ia de mal a pior. A mesma sofreu cortes de verbas, houve o aumento de mortalidade infantil e epidemias (como malária, meningite).
Como falado anteriormente, no período militar as pessoas que tinham acesso a saúde eram as que pagavam a previdência. Essa exclusividade aos trabalhadores, segundo Hêider Aurélio Pinto, médico sanitarista e mestre em Saúde Coletiva, “surge de uma pressão de indústrias e grandes empresas do País para que seus funcionários não perdessem dias de trabalho e que, caso doentes, pudessem retornar ao serviço com mais agilidade. Ou seja, era uma política com viés econômico, e não pelo bem-estar do cidadão.” Saúde até então não era considerada um direito é sim um problema particular. Retomando a última parte da história.
“Ao chegar na Santa Casa, o serviço, apesar de ser feito com carinho, por profissionais de boa índole, era precarizado e superlotado. Ao realizar um exame rápido em Juca, o médico o encaminhou para a estabilização da área, indicou a Dona Maria como fazer a retirada do gesso após 2 meses e lhes desejou uma boa sorte. Agora Maria e Juca só pensavam em como voltar para casa, mais isso já seria outra história.”
Antes de dar continuidade é importante comentar o que se considera saúde atualmente. No período que a história de Dona Maria, saúde era baseada unicamente na ausência de doença. Essa definição foi alterada no ano de 1988, por meio da Reforma Sanitária que reformulou como era a saúde no Brasil, agora focando na qualidade de vida, ou seja desde o médico até uma quadra de futsal no bairro, tornado-se um direito universal, previsto na Constituição Federal (Art. 196).
Atualmente o SUS cobre em torno de 190 milhões de pessoas no país, cerca de 75% de brasileiros se utilizam da saúde pública de forma geral. O exemplo dado anteriormente fala de uma operação relativamente simples na qual pessoas dependem todos os dias. Imagina no período pré SUS, como faziam pessoas diagnosticadas com câncer ou que necessitavam de medicamentos para viver? Hoje esses e muitos outros serviços são gratuitos.
Sucatear para Privatizar?
Em julho de 2019, o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, suspendeu contratos de sete laboratórios públicos nacionais, atingindo a produção de 19 medicamentos distribuído gratuitamente pelo SUS para mais de 30 milhões de pessoas. O senador Paulo Paim (PT-RS) afirmou a seguinte frase, em sua conta pessoal do Twitter “ Há uma clara intenção de sucatear o sistema (SUS) para privatizá-lo.”
Tal afirmação tem um fundo de verdade, tendo em vista a diminuição dos gastos recentes na área da saúde. A regra do teto de gastos imposta em 2017, no governo Temer, e que vem sendo mantida na atual gestão, de forma resumida, limita o crescimento dos gastos públicos em um ano a taxa da inflação no ano anterior. Tendo como objetivo reequilibrar a economia. Tal proposta, prevê que no ano que vem (2020) a área da saúde terá o corte em torno de 9.6 bilhões. Confirmado que a saúde terá menor recurso do que no ano de 2019.
As implicações da redução no financiamento em saúde são várias, algumas já listadas no texto “O que vêm acontecendo com o SUS nesse governo?”. Na coluna de Alexandre Padilha, o autor usa de exemplo a vacinação, afirmando que “Numa situação de reemergência de sarampo, aumento de demanda de vacinas tríplice que protege da doença, Bolsonaro ao invés de ampliar os recursos do Programa de Imunização reduz em cerca de 500 milhões de reais.”
Com o envelhecimento da população brasileira, em 2015 tínhamos 24 milhões acima dos 60 anos, estima-se que em 2050 esse número chegue a 64 milhões. Cria-se um desafio para a saúde, já que a população idosa tende a necessitar mais dos serviços oferecidos pela área.
Com os cortes impostos, o Brasil faz o caminho oposto, ou seja, quando o gasto na saúde deveria ser maior e mais bem utilizado, em programas de prevenção de doenças e promoção de saúde, acaba sendo menor e com precarização de pilares básicos como vacinação e distribuição de remédios. O que deveria ser a principal meta do governo, a diminuição da desigualdade, no Brasil ao envelhecer ficamos mais pobres.
Recentemente o SUS se prepara para sofrer outro golpe, chamada de “Plano mais Brasil”, o texto desse plano é longo e tem muitos pontos a serem votados e recuados. Falando especificamente na área da saúde, inicialmente ele prevê que os estados unam os gastos para saúde e educação e o distribuam da forma que acharem melhor.
De acordo com o ministro Paulo Guedes, em entrevista na Folha, “Vamos supor que da receita sejam 25% para educação e 15% saúde. Passa a ser 40% para as duas e assim abre margem para escolher onde gastar mais”. A proposta é polêmica é existe um apagamento histórico das emendas que destinavam um gasto mínimo para saúde. Vale a pena ficar de olho no que vai decorrer desse debate.
No site Outra Saúde, o economista Carlos Ocké analisou os impactos da PEC. Segundo ele, ela cria uma competição entre saúde e educação. Afirmou que “O governo federal se utiliza de argumentos demográficos para dizer que, com o aumento da população idosa e a diminuição da taxa da natalidade, a tendência é que haja demanda maior por saúde do que por educação e isso poderia ser calibrado lá na frente. Mas, na verdade, você vai acabar prejudicando esses dois segmentos populacionais. (…) Não podemos perder de vista que a crise econômica e o próprio ajuste fiscal vêm piorando as condições de vida e saúde da população, como atestam estudos sobre austeridade fiscal no Brasil e na Europa. E isso inclusive tem feito com que a pressão sobre o SUS aumente, como se já não bastasse a pressão decorrente do aumento da violência, da pobreza e da desigualdade. Diante dessa maior demanda por ações e serviços públicos de saúde, surge uma proposta que vai diminuir o gasto com essas ações e serviços, assumindo contornos preocupantes do ponto de vista da qualidade de vida da população, sobretudo das classes médias e populares.”
Com a privatização do SUS o acesso a saúde ficaria mais barato?
Os defensores de uma provável privatização do SUS usam de argumento: “os planos de saúde ficariam mais baratos” ou “tentei algo no posto aqui perto e não consegui e fui pro particular e foi mais fácil”. Argumentos que em grande parte vêm de indivíduos que são ignorantes ao o que o sistema público faz ou são apenas mal intencionados por em suas cabeças nunca terem necessitado do SUS.
Ainda no governo Temer foi posta a ideia de “planos de saúde populares”, de forma bem resumida, passariam algumas demandas do SUS para o privado por meio de convênios mais acessíveis, a proposta foi polêmica e logo descartada. O interesse na privatização da saúde já vêm de muito antes e citando rapidamente o músico Criolo “se o Brasil fosse um país sério, saúde jamais seria um negócio.”
Mais afinal, privatizar tornaria a saúde mais barata? a resposta curta e simples é: Não!!
Na realidade ocorre o oposto, por existir uma saúde pública que cobre todo cidadão brasileiro, os planos de saúde tendem a se baratear. O próprio SUS garante o meio privado em alguns pontos, por exemplo, todas as clínicas legais particulares devem ter a aprovação do sistema público. Outros serviços como vigilância epidemiológica, sanitária e ambiental, são serviços que a saúde pública oferece para toda a população. Independente de seu status e classe social, o SUS lhe beneficia sim.
Alguns pontos aos quais quem defende sua privatização não se atentam:
- O mais fundamental princípio do SUS é o da universalidade, que dá direito a todo cidadão em território brasileiro aos serviços de saúde. Independente se você pague ou não um plano, nunca perderá o direito de utilizá-lo.
- Citando novamente o art. 196 “é dever do estado garantir as ações e serviços de promoção, proteção e recuperação na saúde”. O meio privado tem como foco o que chamamos de complementar ou seja, ajuda naquilo que o SUS já lhe garante. O SUS é focado na saúde primária, tem como meta principal evitar que o indivíduo adoeça.
- No caso da vacinação, ainda no art. 196., o Estado lhe garante que você tenha acesso. Surtos de doenças já erradicadas que temos ultimamente, seriam ainda maior no caso de uma possível privatização, em que só seriam vacinados os que tivessem acesso a planos de saúde, já citado no texto, uma minoria.
Os pontos citados estão no campo especulativo é difícil visualizar claramente o que ocorreria caso o SUS chegasse a seu fim. Existem outros aspectos que também não ficariam claros, exemplo: como funcionaria o investimento do governo na saúde repassando para o meio privado, como ficaria os municípios de pequeno porte ou como seria a distribuição de médicos no país já que é bem menor do que necessário. Acredite, são muitos os pontos que devem ser avaliados quando se diz que ‘o SUS tem que ser privatizado’.
Como funciona países que não possuem saúde pública?
- Estados Unidos:
No mês de agosto (2019), uma notícia bastante comentada passou pela minha timeline, a de que um casal de idosos nos EUA, por não poderem pagar o tratamento médico necessário, cometeu suicídio. A notícia gerou um forte debate na área, de como o modelo de assistência à saúde americano é falho.
Nos EUA, diferentemente do Brasil, o acesso a saúde não é universal, tudo se baseia em seguros de saúde, ou por meio de planos ou trabalhando em uma empresa que ofereça o benefício aos funcionários. Apesar de o governo subsidiar o seguro, para grupos específico (pessoas acima de 65 anos, com deficiência e de baixa renda) eles ainda necessitam pagar por medicamentos, hospital e tratamentos especiais.
O debate sobre saúde pública para os norte americanos ganhou força em 2010, no governo Obama com a criação do Obamacare (tendo o SUS como inspiração), porém, desde a nova gestão de Donald Trump, vêm sendo cortados fundos para divulgação e incentivo de cadastro com novos benefícios.
Pessoas que não possuem convênio médico enfrentam dificuldades para conseguir acesso. No exemplo de uma perna quebrada o tratamento custaria em torno de 7.500 dólares (R$ 31.000 convertendo atualmente para moeda brasileira). Os altos custos em saúde dos EUA, vêm levando as pessoas a falência, e o número é ainda mais alarmante no caso de idosos.
- Chile:
Vamos ao nosso vizinho Chile, que, enquanto escrevo esse texto, suas ruas estão pegando fogo tendo como principal reivindicação a desigualdade social no país. Existe um modelo Neoliberal chileno que entrou em colapso nos últimos dias, o assunto é complexo, vou frisar numa das reivindicações principais a saúde.
Uma olhada rápida na saúde chilena não difere muito da brasileira. Filas em hospitais públicos, falta de médicos especialistas, falta de infraestrutura. A grande diferença entre os dois países é que a saúde no Brasil é vista como um direito universal já no Chile a saúde é tratada como mercadoria. De forma simples, os que pagam mais têm uma atenção excelente os que pagam menos não.
Ainda sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), foi imposta uma contribuição obrigatória para os assalariados e aposentados, que pode ir para o serviço público ou privado. O país tem o terceiro maior gasto com saúde privada na OCDE, só atrás de Estados Unidos e México. Para se ter acesso a saúde no Chile é preciso ter plano, existindo duas formas possíveis o privado – Isapres; é o público conhecido como Fonasa.
- Isapres: O sistema privado dá acesso exclusivos a programas de saúde. O preço varia de indivíduo, por exemplo mulheres e idosos pagam mais.
- Fonasa: Todo cidadão que se utiliza do sistema público deve destinar 7% de sua renda mensal para financiar a saúde. Aos que não podem pagar, a Fonasa oferece algumas modalidades de acesso.
O que ocorre no Chile no exemplo da Fonasa, as pessoas que não podem pagar provavelmente terão o atendimento mais precarizado. O acesso que se tem a saúde depende do seu status social. Escolhas neoliberais como estas aumentam a desigualdade entre os povos. Esse panorama é aumentado no caso de uma família de classe baixa, na qual necessite de um atendimento específico como câncer ou uma doença rara com o tratamento caro.
De acordo com Victor Farinelli “o debate sobre saúde no Chile passa por analisar a arquitetura do sistema em países desenvolvidos que dá maior tamanho ao Estado. Permitindo tratar saúde como um direito universal do cidadão.”
O SUS tem que ser valorizado e não privatizado
Volto a dizer vivemos em tempos loucos, parte da população brasileira está aceitando e às vezes defendendo agrotóxicos, a destruição da Amazônia, o fim das Universidades públicas. Talvez eu seja muito jovem (nunca vi isso antes), mas parece que vivemos num delírio coletivo. O SUS tem sim seus defeitos e muita coisa precisa melhorar, não estou negando, a visão idealizada na saúde proposta em 1988 talvez nunca tenha chegado, porém, a nossa saúde pública serve de modelo para o mundo e isso é algo que temos que valorizar.
Um relato pessoal: moro no interior do CE, numa cidade com um pouco mais de 30.000 habitantes, onde estou escrevendo esse texto. Eu tenho acesso a saúde pública e a particular, de certa forma eu sou uma pessoa privilegiada. Na mesma cidade tem distritos bem mais afastados e de difícil acesso com menos de 2000 moradores, e lá o SUS consegue chegar, muitas vezes, indivíduos que nunca tiveram acesso a saúde na vida, com as políticas públicas do SUS eles conseguiram.
O que diferencia eu e você de habitantes que moram em lugares como esse é apenas uma sorte geográfica. Impossibilitar essas pessoas do que é um direito universal previsto na constituição, com a desculpa de que a privatização melhoraria a economia, é no mínimo covarde.
Caso queira saber mais do assunto vale uma olhada nos links do textos e nas referências. Críticas, sugestões e comentários são sempre bem vindos. Paz!
Links:
Podcast sobre o tema: Sistema Único de Saúde – SUS (SciCast #304)
Conhecendo o SUS part. I, part II e part III
Você pode não perceber, mas utiliza o SUS todos os dias
O SUS aos poucos vai deixando de ser universal
Fonte da imagem da capa: Foto: Joana Berwanger/Sul21