Durante muito tempo, o papel das mulheres nos estudos históricos foi um objeto relegado a um segundo plano. Diante de uma visão equivocada, que enxergava significado histórico apenas nos grandes personagens e nos grandes fatos, os nomes de mulheres apareciam de maneira escassa nos manuais escolares e nos livros de história. O pior é que essa abordagem nos levou a acreditar que as mulheres de fato aceitavam um lugar subalterno nas relações públicas e de poder.
Porém, isso está muito longe de ser verdade e a história dos EUA é um bom exemplo para entendermos como tal compreensão é equivocada. Se olharmos para o momento de surgimento da nação, a época da independência dos EUA, a imagem que nos vem à cabeça é justamente a de homens, brancos, que lutaram contra a tirania de uma metrópole “opressora”. Não à toa, até hoje são chamados de Pais Fundadores.
Mas será que isso foi exatamente assim? Será que não existiram mulheres que participaram dos combates, que enfrentaram as guerras, ou que participaram ativamente do debate público sobre o futuro do país?
Quando olhamos mais de perto, atrás de respostas para isso, logo encontramos o nome de Abigail Adams que nos ajuda a reconstituir um cenário mais complexo, como uma ponta solta de um novelo que nos leva a outras mulheres que compõe um quadro ainda maior.
Abigail Adams foi a esposa de John Adams, o segundo presidente dos EUA. Porém, ao contrário do que possa parecer, esteve longe de ocupar um papel secundário nessa história. A sua relação com o marido era feita não apenas de cumplicidade, mas de ideais comuns compartilhados, o que fez com que ela fosse a sua principal conselheira.
Por conta dessa relação de respeito entre os dois, ela nunca deixou de expressar ao marido o seu ponto de vista em torno da maneira equivocada pela qual as mulheres eram vistas pela sociedade e eram tratadas pelo Estado. Não são poucos os momentos em que encontramos sua manifestação em cartas ao esposo, bem como em manifestações públicas.
Aliás, Abigail escrevia muito bem, com estilo e personalidade. Em uma época em que as mulheres não tinham acesso às escolas, ela se educou sozinha, recorrendo à biblioteca da Igreja em que seu pai era pastor. Por conta do convívio naquela comunidade, aprendeu a estudar a Bíblia, história e literatura, lendo autores como Shakespeare e Alexander Pope.
É verdade que, naquela época, principalmente na Nova Inglaterra, onde ela nasceu, não era incomum que mulheres soubessem ler, afinal de contas eram elas as responsáveis pelas primeiras instruções aos filhos e, por isso, deveriam ter conhecimentos básicos de letras e literatura.
Porém isso era pouco para Abigail. Ela acreditava que, sendo as mulheres responsáveis por formar os homens do futuro, a chance de uma nação prosperar aumentava quanto mais acesso à educação as mulheres possuíssem.
Justamente por isso, quando o momento da revolução americana chegou e a separação com a metrópole se mostrava inevitável, Abigail se animou. Para ela, se havia uma hora para garantir mais direitos às mulheres, aquele era o momento.
Assim, no dia 31 de março de 1776, ela escreveu para o marido. Adams estava na Filadélfia e era um dos nomes mais importantes do Segundo Congresso Continental que estava prestes a declarar a Independência. Na carta ela dizia.
“Eu tenho a esperança de ouvir que vocês declararam a independência. E, por isso, nesse novo código de leis que suponho seja necessário fazer, desejo que você se recorde das senhoras e seja mais generoso e favorável que seus ancestrais. […] Caso não se dê cuidado e atenção especial às damas, nós estaremos determinadas a por em marcha uma rebelião, e não estaremos obrigadas por nenhuma lei na qual não tenhamos voz e nem representação”.
Porém, quando a declaração veio em 4 de julho de 1776, escrita por Thomas Jefferson, mas com a ajuda de seu marido, Abigail não poderia ter ficado mais decepcionada. Naquele documento, os autores eram claros em dizer que todos os homens eram criados iguais… mas nenhuma menção às mulheres foi feita. Por isso, ela lançou mão de sua pena e escreveu uma nova carta ao seu esposo, agora em 14 de agosto, dizendo:
“Se você reclama da negligência da educação dos filhos, o que direi a respeito das filhas, que todos os dias experimentam a falta dela. […] Eu sinceramente desejo que algum plano mais ousado possa ser traçado e executado para o benefício da nova geração e que nossa nova constituição possa se destacar pelo aprendizado e pela virtude. Se pretendemos ter heróis, estadistas e filósofos, deveríamos ter mulheres educadas”.
As cartas de Abigail são de fato um tesouro para a história dos EUA e elas não foram escritas apenas para Adams. A troca de correspondência entre ela e Jefferson são bastante famosas. Principalmente porque ela não se furtava a confrontar as ideias de seu interlocutor por meio de suas missivas.
E não pensem que Abigail Adams é um nome solitário nessa história. Durante a crise imperial, o boicote à lei do Chá, em Boston, foi liderado primordialmente por mulheres. Mesmo durante as guerras de independência, na frente de batalha, no combate de campo, várias mulheres ocuparam papel de destaque e ganhariam o apelido genérico de Molly Pitcher. Entre elas, destacam-se o nome de Mary Ludwig Hays, Sybil Ludington e Deborah Sampson que se vestiu de homem para se alistar no exército revolucionário. Isso, sem falar de Betsy Ross, que mesmo não tendo participado dos conflitos, era responsável por costurar bandeiras para os navios de guerra, e foi a responsável por dar o formato básico que conhecemos à Bandeira Americana hoje.
Porém, é no campo das letras que elas tiveram ainda mais destaque, o que demonstra uma circulação de seus escritos entre a opinião pública. Phillis Wheatley, uma mulher negra escravizada que se tornou poetiza, publicou sua primeira coleção de poemas em 1773, tornando-se a primeira mulher afro-americana a ser publicada na América. Ficaria ainda mais famosa quando escreveu seu poema dedicado ao General George Washington e que leva o nome de “To His Excellency, George Washington”, de 1775.
Em 1790, Judith Sargent Murray publicou seu ensaio sobre On the Equality of the Sexes, onde, assim como Abigail Adams, defendia o direito à igualdade entre as mulheres, principalmente no que dizia respeito ao acesso à educação. Quinze anos depois, Mercy Otis Warren, foi a responsável por escrever um dos primeiros livros a contar a história da independência dos EUA, o History of the Rise, Progress, and Termination of the American Revolution.
E essas são apenas algumas das muitas personagens daquela época, o que nos deixam evidente que, mesmo diante de uma sociedade que dava prevalência aos homens, as mulheres souberam construir o seu espaço e fazer a sua voz ser ouvida.
Existe uma versão em vídeo desse texto e que você pode assistir aqui:
*Texto escrito em Parceria com a Profa. Dra. Cláudia Regina Bovo.