No clipe da música Absolutas, Linn da Quebrada declara:
“Eu entendo a minha vida e o meu corpo principalmente, como esse espaço de experimentação estética radical”
A partir dessa fala de Linn, começo a refletir sobre a percepção da sociedade sobre as existências trans. Mas para além disso, também me pergunto: quais são os posicionamentos que pessoas trans assumem (artisticamente, socialmente)? O que nossa comunidade faz para lidar com e para questionar a espetacularização das nossas vivências? É sobre isso que venho falar.
O texto a seguir contém alguns palavrões, que compõem nomes de livros e trechos de algumas obras. Não os censurarei.
O lugar da pessoa trans
Em 12 de abril de 2019, tive a oportunidade de ver Amara Moira na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Amara é travesti, autora e doutora em Letras pela Unicamp. Em 2019, ela estava relançando seu primeiro livro, renomeado como “E se eu fosse pura”.
Em frente ao público bastante colorido que foi prestigiar sua fala, Amara nos contou que havia decidido pela mudança porque o título original de 2016, “E se eu fosse puta”, havia causado muito constrangimento às livrarias. Não havia como colocar em exposição um livro com a palavra “puta” na capa. O público não compraria.
Ainda assim, o livro esgotou e exemplares até foram roubados por todo território nacional… O público não quer comprar o livro da travesti puta, mas definitivamente quer ler. Esta explicação sobre o novo nome do livro, inclusive, aparece logo no início da nova edição:
Livro de puta vende, (…) mas vende desde que saiba se comportar, se dar ao respeito. Uma coisa é a zona, aí você usa o linguajar que quiser, aqueles palavrõezões que o pai de família adora, ahã; outra bem diferente é nas livrarias, bibliotecas, nas prateleiras das casas, especialmente se você não é autor homem, branco, rico, bem reputado. (…) Houve reclamações, houve sim, gentes e mais gentes que queriam conhecer o livro e que ou não tinham coragem de comprá-lo (muitos chegaram a roubar, tal a vontade de ler e a vergonha de passar no caixa), ou de carregá-lo em público, no metrô, ônibus (teve quem tratou de encaderná-lo, vê se pode), ou até mesmo de o deixar nas prateleiras da sala, aí o que foi que eu fiz? Isso mesmo, mudei o título. (MOIRA, 2018, p. 6)
O caso de Amara serve como indício do paradoxo ocupado por pessoas trans no Brasil; ao mesmo tempo em que a sociedade recebe nossas vivências com curiosidade pela sociedade, nossos corpos e nossas existências representam algo tido como abjeto ou, no mínimo, indigno de ocupar o espaço público.
O freak show e a sociedade do espetáculo
De uma maneira geral, a sociedade evita falar sobre as existências trans: na maior parte do tempo, ela ignora nossa existência. No entanto, existimos, e já que isso não pode ser evitado, a sociedade do espetáculo encontra maneiras de usar nossas vidas (e nossas mortes) como parte do seu bem engendrado controle social.
Em A Sociedade do Espetáculo, Guy Debord discute como a sociedade capitalista engendra o espetáculo para alienar os indivíduos, despojando-os de sua agência social e, assim, dobrando-os aos interesses dos poderosos. É assim que valores sociais são ensinados e ensaiados, e o status quo fica garantido, pela naturalização desses valores.
Nessa perspectiva, podemos entender que o diferente (ou seja, o que não está de acordo com os valores ocidentais capitalistas, cis-heteronormativos, brancos, cristãos , etc) também é espetacularizado para demarcar valores. Há “o certo e o errado”, “o natural e o artificial”, “o bom e o ruim”. Além disso, essa diferença é muitas vezes espetacularizada como um freak show, ao qual as pessoas assistem com o objetivo de se entreter através da repulsa e do medo.
Pessoas trans na Sociedade do Espetáculo
Vez por outra, a mídia direciona seu olhar sobre as pessoas trans: o homem trans da novela (interpretado por uma atriz cisgênera), a travesti que virou meme por causa de uma reportagem policialesca, o escárnio às tentativas de neolinguagem que propõem desinências de gênero neutras…
Muitas das narrativas sociais construídas sobre nossas pluralidades se amparam no escândalo e na espetacularização de nossas existências. São esses os momentos em que a existência trans se torna mais um espetáculo para a sociedade — mas um tipo específico de espetáculo: o freak show.
Tal como nos shows de aberrações, o que atrai o interesse do público em geral para as histórias de pessoas trans não é a pessoa em si. Pelo contrário, o que interessa é a imagem incomum, bizarra e pouco afeita às convenções sociais que o imaginário coletivo atribui a quem não se reconhece com o gênero que lhe foi designado no nascimento.
Enquanto alguns encaram a figura trans com espanto e incredulidade, outros a interpretam como um monstro que desafia a natureza e a própria Criação. Em ambos os casos, o freak show cumpre com sua função de mostrar o outro como um espetáculo macabro e anormal, reiterando o status quo e as práticas sociais estabelecidas como o padrão a ser seguido.
Para romper com a espetacularização das nossas existências, é preciso, então, que nossas vozes superem a lógica do espetáculo. A seguir, discuto como diferentes artistas trans têm subvertido a norma do freak show.
Vozes trans(gressoras)
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que os nomes de artistas trans citados a seguir são alguns exemplos entre vários que existem. Felizmente, é impossível listar todos em um único texto, quanto mais discutir suas obras. Assim, me limitarei a citar dois nomes individuais e um projeto coletivo.
Linn da Quebrada
Quando penso em vozes trans se contrapondo ao freak show, o primeiro nome que me vem à cabeça é Linn da Quebrada. Suas músicas exploram o orgulho de ser quem se é, apesar do olhar de escárnio da sociedade, como na letra de “Bixa Preta”:
Bixa Preta
Bixa estranha, louca, preta, da favela
Quando ela tá passando todos riem da cara dela
Mas, se liga macho
Presta muita atenção
Senta e observa a tua destruição
Que eu sou uma bixa, louca, preta, favelada
Quicando eu vou passar e ninguém mais vai dar risada
Se tu for esperto, pode logo perceber
Que eu já não tô pra brincadeira
Eu vou botar é pra fuder
Nos versos de Linn, ocorre uma transformação no sentido das palavras que são usadas como armas contra ela. Abraçando os rótulos que a sociedade lhe atribui de forma pejorativa, a travesti demonstra orgulho de ser quem é. Para além disso, ela desafia o “macho” a rir daquela que sempre foi oprimida, porque ela não vai mais aceitar ser colocada como subalterna.
Em outro trecho, ela canta: “A minha pele preta é meu manto de coragem / Impulsiona o movimento / Envaidece a viadagem”. Assim, vemos que Linn tem orgulho de ser preta, de ser bixa, de ser da favela. Esse orgulho explícito tira a força dos eventuais xingamentos e, mais que isso, tira poder do freak show e dá poder a Linn, quando ela ressignifica essas palavras.
Bixa Preta é de 2017, no início da carreira de Linn. De lá para cá, a presença de Linn na mídia mainstream só se intensificou. Agora em 2023, ela está “dentro da casa da Família Brasileira™”: depois de participar do Big Brother Brasil 22, sua presença é frequente nos programas da TV Globo. Nessa exposição de si, sem esconder sua travestilidade, Linn tem explorado o freak show em seu favor, para demarcar seu espaço e se fazer ouvida. À sua maneira, Linn contribui para a ressignificação de símbolos sobre as existências trans.
Ressignificar talvez seja a palavra mais importante (para mim) na produção artística trans. Isso me leva a outro nome dentro da luta contra a espetacularização de nossas vidas:
João W. Nery
João W. Nery (1950-2018) foi um transhomem brasileiro.
Em “Viagem Solitária: memórias de um transexual trinta anos depois”, João contou sobre sua trajetória, seu processo de entender-se como homem, de lutar para que seu corpo fosse ressignificado como um corpo de homem. Ao trazer sua história, João nos lembra de como os rótulos são limitantes:
Você nasce e morre dentro de caixas. Caixa da família, da escola, do casamento e depois vai para o caixão. Ponha o pé para fora disso e você já é estigmatizado. Tem que ter muita estrutura para segurar a peteca da marginalidade. (NERY, 2011).
Em plena ditadura militar, João ousou em ser quem era. Para viver autenticamente, abandonou a carreira de psicólogo, já que não podia retificar seu diploma com o nome morto. Arriscou-se para ter direito a um nome, ter direito ao próprio corpo, à própria vida.
E até o fim de sua vida, continuou apoiando e lutando pelos direitos de outras pessoas trans. João é uma inspiração a todo homem trans, transhomem e transmasculino brasileiro, porque ele narrou a sua própria vida em seus termos, sem permitir a espetacularização de sua existência.
Narrar-se enquanto pessoa trans é desafiar a lógica do freak show que espetaculariza nossas existências apenas para o entretenimento cisgênero.
Antologia Trans
Para encerrar este texto, não posso deixar de falar do livro “Antologia Trans: 30 poetas trans, travestis e não-binários”, livro que tenho estudado nos últimos dois anos.
A Antologia Trans surgiu a partir de oficinas de poesia do Cursinho Popular Transformação, em São Paulo. O livro conta com textos escritos por participantes das oficinas, poemas recebidos pela oficina e poemas de autoria coletiva, além de ilustrações feitas por artistas trans. Entre os poemas de autoria coletiva, destaco “Vida sem título”:
Vida sem título
O mundo é puro segredo.
Tudo é proibido.
É preciso, mesmo,
estar atento e forte,
porque de morte
a gente já tá cheio.
Na boca, gosto de medo.
Difícil mesmo temperar o silêncio.
No grito de dor, no prazer temporal
do sexo anal.
Preenchimento, satisfação.
Solitude.
O nascimento é o fim de tudo.
Ponto final. (CURSINHO POPULAR TRANSFORMAÇÃO, 2017, p. 27)
Em poucos versos, o poema elabora sobre questões recorrentes (mesmo que não onipresentes) na experiência das pessoas trans: o medo e a insegurança de enfrentar o que a sociedade proíbe; a ameaça de morte constante no país que mais mata trans (segundo os dados do Trans Murder Monitoring, 2022); a prostituição; o sexo; a solidão.
Até mesmo a referência à canção Divino, Maravilhoso contribui para expressar como as violências afetam vidas trans. Enquanto Gal Costa canta “é preciso estar atento e forte / não temos medo de temer a morte”, o eu lírico do poema expressa como as pessoas trans estão cheias da morte. E aqui podemos entender tanto que há muita morte na vida de pessoas trans, quanto que não queremos mais que essas mortes decorrentes da violência permeiem nossa existência enquanto comunidade.
Os outros textos presentes na AT, os poetas abordam tópicos diversos. Uma coisa, entretanto, perpassa todos eles: nós, pessoas trans, queremos que ouçam nossas vozes quando o assunto é nossas vidas. Não queremos sempre estar no espaço do “outro”, do “estranho”, da “aberração”. Queremos o direito de conduzir as narrativas sobre nós mesmes.
Para concluir
Quando consideramos as criações estéticas destes e de outres artistas trans brasileires, podemos perceber a ruptura com o freak show, porque não são produtos feitos para alimentar o espetáculo — pelo contrário: são criações que desafiam o status quo.
Não mais nos sujeitamos ao lugar do outro sobre quem se fala; nós falamos de nós. Nossas presenças perante à sociedade não são mais pautadas no bizarro de nossa existência, nem exclusivamente nas nossas dores; pelo contrário: demonstramos que o bizarro é a impossibilidade de transgredir ou de fluir.
Pensamos na potência que a vida pode ser quando ela não se amarra a rótulos.
Falar de nós é, portanto, ter liberdade.
—
Este texto é a atualização de um ensaio que escrevi em 2021, para avaliação na disciplina “Princípios Fundamentais de Linguagem, Cultura e Sociedade”, ministrada pela Prof. Dra. Dalva de Souza Lobo, no Mestrado em Letras, da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Essa versão expande um pouco as análises das obras comentadas, além de atualizar informações sobre Linn da Quebrada.
Referências:
Imagem em destaque: Imagem original de Igor Ovsyannykov por Pixabay, com edição por Allan. F. R. Penoni
CURSINHO POPULAR TRANSFORMAÇÃO (São Paulo) (org.). Antologia trans: 30 poetas trans, travestis e não-binários. São Paulo: Invisíveis Produções, 2017a. 112 p.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Editora Contraponto, Rio de Janeiro. 1997.
MOIRA, Amara. E se eu fosse pura. São Paulo: Hoo Editora, 2018. 192 p. Edição revista e atualizada.
NERY, João W. Viagem Solitária: memórias de um transexual trinta anos depois. São Paulo: Leya, 2011. 336 p.
TRANSRESPECT VERSUS TRANSPHOBIA (comp.). TMM Update: trans day of remembrance 2022. Trans Day of Remembrance 2022. 2022. Disponível em: https://transrespect.org/en/tmm-update-tdor-2022/. Acesso em: 21 fev. 2023.