Eu tenho uma promessa minha comigo mesmo de pelo menos escrever dois textos em 2020 sobre a situação do SUS (Sistema Universal de Saúde) em um Brasil onde o governo prega a privatização. Porém o que ninguém esperava acontecer era que um vírus viria explicitar a fragilidade de um mundo capitalista e mostrar que saúde jamais deveria ser um negócio.
No texto de hoje comentarei o que vem ocorrendo no SUS nesse início de ano, como o sistema privado norte americano é cruel e alguns pontos da saúde pública que devemos ficar de olho.
O SUS em 2020 pré-Corona
Lembro de um meme compartilhado logo no início de março sobre uma provável chegada do Coronavírus ou COVID-19 no Brasil. Era uma parte do filme Vingadores: Ultimato (2019) em que o Capitão América sozinho, cansado e abatido representando o SUS enfrenta o exército de Thanos representando o Corona. É apenas um meme, até engraçado, porém real. Já falei em outros textos e volto a repetir neste: desde o governo Temer, e seguido de um governo “neoliberal”, o SUS vem enfrentando cortes e desmanches.
Assim como o Capitão América, mesmo cansado e abatido, o SUS não está sozinho. Temos muitas pessoas, profissionais e políticos, trabalhando para mantê-lo em funcionamento. Porém, antes mesmo da chegada do COVID-19, o SUS vinha levando golpes pesados nesse primeiro trimestre do ano.
Já em janeiro o teto de gastos imposto ainda em 2017 foi mantido e ampliado na atual gestão, significando que nesse ano o gasto em saúde até então era menor do que no ano anterior.
Não para por aí, desde a retirada dos profissionais cubanos, no final de 2018, muitos municípios de pequeno porte continuam sem assistência médica até hoje. Como apurado pelo jornal El País, as cidades brasileiras em média perderam ⅕ dos médicos. Por não conseguir suprir a carência de profissionais, as vagas foram encerradas pelo governo federal, fazendo com que os municípios abram por conta própria, não conseguindo atrair médicos.
E aqui talvez o pior golpe tomado pelo nosso sistema universal: no dia 30 de janeiro de 2020, um suposta “nota técnica” foi autorizada pelo Otávio Pereira D’Ávila, que está à frente do Departamento de Saúde da Família da Secretaria de Atenção Primária, decreta o fim do NASF (Núcleo de Atenção à Saúde da Família), autorizando assim que os municípios julguem a melhor forma de carga horária e quais são os profissionais necessários. Acaba com a necessidade de equipes multiprofissionais (psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, TO, entre outros) na atenção básica de saúde.
No outro lado do planeta, a iminência de uma pandemia já assombrava o território da China. Entre janeiro e a primeira parte de Março, a crise do Corona batendo na porta do Brasil, o governo não só mantém os cortes de gastos como diminui as equipes de saúde primária.
COVID-19 evidenciando que saúde tem que ser Universal
Vamos ao caso real de um Norte-americano que saiu de Wuhan para os EUA logo no início da epidemia:
“ Frank e Annabel, sua filha de 3 anos, colocados em quarentena. Eles estavam em Wuhan e voltaram aos EUA quando o governo ofereceu o voo de repatriação. Annabel precisou ficar em quarentena em um hospital infantil, para a surpresa de Frank ele recebeu uma conta surpresa de 3.918 dólares. Não apenas essa conta, mas também a empresa de ambulâncias que os transportou cobrou à família 2.598 dólares por levá-los ao hospital. Outros 90 dólares foi cobrado de encargos do radiologistas que não trabalha no hospital.”
Casos assim são comuns de ocorrerem em lugares onde não existe universalidade da saúde. Pensem comigo, a quarentena é obrigatória e você deve notificar caso sinta algum dos sintomas do COVID-19, então, qual sentido cobrar alguém por isso. Não só os valores são exorbitantes, como fica uma subnotificação no sistema de saúde no geral, porque, se eu tivesse sintomas, eu nunca iria notificar tendo que pagar esse valor.
Como publicado pela Business Insider, metade dos Norte-americanos não podem pagar pelo diagnóstico do Corona. De acordo com a pesquisa o procedimentos relacionados ao coronavírus, incluindo diagnósticos e tratamentos, podem custar entre 441 dólares (cerca de R$ 2.153, segundo a cotação do dia) e 1.151 dólares (R$ 5.619).
Outra pesquisa publicada pela Kaiser Family Foundation, apontou que 26% dos adultos dos EUA deixaram de procurar o médico por causa de suas finanças, com 21% relatando que deixaram de realizar algum teste ou tratamento médico recomendado. O debate de um sistema universal de saúde nos EUA já é antigo e com o COVID-19 essa fraqueza foi mostrada. Entre os países desenvolvidos, os Estados Unidos é o único a não oferecer a universalidade.
Existe um movimento forte para a aplicação de um sistema de saúde universal em solo americano, e especialistas afirmam que será um fator importante nas próximas eleições (que deveriam ocorrer ainda em 2020), na fala de Bernie Sanders
“Infelizmente, os EUA estão em severa desvantagem porque, ao contrário de todos os demais grandes países do mundo, nós não garantimos o acesso à saúde como um direito humano. O resultado disso é que milhões de pessoas que não podem pagar por um médico neste país estão por conta própria para pagar por um teste de coronavírus.”
Paralelo a isso, na França, o presidente Emmanuel Macron afirmou
“O que essa pandemia nos mostra é que a saúde pública, sem condicionamento de ingresso, de história de vida ou de profissão, nosso Estado-providente, não representa custos ou encargos, mas um bem precioso e indispensável quando o destino nos golpeia.”
Saúde não pode jamais ser um negócio. Quando se fala em bem estar, encontrar-se saudável e manter-se vivo, não existe livre mercado com mão invisível e blá blá blá. Ter dinheiro não pode ser a diferença nessas horas.
Back in Brazil
De volta ao Brasil, aconteceu o inevitável, como já deve saber e talvez você esteja em casa nesse momento (por favor se possível fique em casa), o Coronavírus chegou e com ele voltou também a guerra de narrativas que o governo está tão acostumado a fazer para lidar com crises. Porém esse vai ser o foco de um próximo texto. Agora vamos discutir algumas ações em torno da saúde pública voltadas para o vírus.
–Colapso do Sistema Público de Saúde:
Ainda no mês eterno que foi março de 2020, o ministro Mandetta falou
“No final de abril sistema entra em colapso. O colapso é quando você pode ter o dinheiro, o plano de saúde, a ordem judicial, mas não há o sistema para entrar.”
Vamos usar de exemplo o caso a capital Manaus que afirmou estar a beira de um. Por ter poucos respiradores (ferramenta essencial para o tratamento e recuperação das pessoas com o COVID-19) em um momento próximo o número de pacientes irá superar o número de respiradores. Vale destacar que os respiradores não podem ser usados exclusivamente para o Corona a população em geral continua tendo outras patologias que necessitam de internação em UTI.
Agravando a situação do estado do Amazonas, nessa época do ano as chuvas aumentam, fazendo a internação por problemas respiratórios crescerem. Esses pacientes irão disputar espaço nos hospitais com infectados pelo coronavírus. “Nos próximos dias, a gente atinge a capacidade de 100% de leitos de UTI”, projetou o secretário Sousa.
-Enquanto isso no sistema privado de saúde:
O SUS faz o atendimento de pessoas beneficiárias de plano de saúde desde 1998 com o surgimento da lei que os regulamenta no Brasil, com o combinado de que o plano de saúde reembolse o SUS, porém não é o que vem acontecendo. Como apurado pela revista Piauí, os tais planos devem hoje ao SUS cerca de 1,7 bilhões de reais, por procedimentos feitos entre 2001 e 2018.
A guerra entre plano de saúde e SUS não é de hoje, falarei mais sobre isso em um texto no futuro. Recentemente a ANS (Agência Nacional de Saúde) liberou 10 bilhões de reais para os planos de saúde se preparem para atender pacientes com COVID-19 com a justificativa de não sobrecarregar o SUS.
Veja novamente no momento de crise que vivemos, quando o sistema público deve ser mais fortalecido, o governo decide liberar dinheiro para quem lhe deve. Quando seria a obrigação dos planos em uma pandemia atender conforme o estado necessita.
-Porém apesar dos pesares o ministério da saúde merece elogios sim:
Mesmo existindo uma guerra de narrativas no governo, ou seja, o ministério da saúde (MS) fala algo embasado cientificamente e o presidente da república vai em rede nacional jogar teorias conspiratórias para todos os lados, o científico e técnico está prevalecendo no MS.
Seria muito fácil tender para o conspiracionismo que toma conta do governo e ministérios. É triste existir esse embate em meio a pandemia, porém a saúde pública está do lado certo. Entendo que tem erros, alguns dos quais listei neste texto, todavia vale o elogio.
Muita coisa vai acontecer nessa crise do corona no decorrer dos próximos meses, infelizmente muitas pessoas irão morrer. Essa guerra entre esfera estadual e federal será usada como forma de autopromoção e a frente de tudo isso o SUS mais do que nunca deve ser valorizado.
Nota da Editora:
Aproveito para lembrar a todos da #desafioredatoresdeviante, pelo twitter ou pelo e-mail [email protected], para enviar perguntas para os redatores do Portal responderem!